O Sínodo da Juventude: uma síntese dos tempos de crises

Foto: Vatican Media

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 08 Novembro 2018

Quando o Sínodo dos Jovens foi convocado em 2016 pelo Papa Francisco, a expectativa da contínua sinodalidade do seu pontificado, e legada do Vaticano II, era por uma assembleia transformadora. O Sínodo da Família, em 2014 e 2015, resultou na exortação Amoris Laetitia. Pouco digerida e aceita nos setores conservadores, acentuou uma oposição pública a Francisco.

O conflito que despertara na Igreja intensificou ao longo dos três anos. Casos de corrupção, abusos e encobrimentos foram sendo revelados e dando corpo aos problemas a serem enfrentados pelo Papa. Os erros e acusações sobre o pontificado de Francisco e seus antecessores, os crimes da alta cúpula romana e das igrejas locais chegou deixar o Sínodo da Juventude em suspeição – sugestão do arcebispo da Filadélfia Charles Chaput, para o cancelamento, um mês antes da abertura oficial.

O potencial transformador e renovador do processo sinodal foi posto à prova, afirmativamente, pelo próprio Papa Francisco. Em março mais de 300 jovens se encontraram em Roma para discutir e elaborar as diretrizes para o Instrumentum laboris. Pela internet, outros 15 mil jovens de todo mundo participaram propondo ideias, expondo os seus anseios e desejos como Igreja.

Papa Francisco com os jovens na reunião Pré-Sinodal. Foto: Vatican News

Concomitante a maior crise política internacional desde a Guerra Fria, os receios de grandes guerras, líderes autoritários e com inspirações totalitárias ascendendo ao poder em grandes centros do mundo, Francisco insistiu na descentralização. O conflito de ideias que jus à uma democracia, a correlação de forças entre diferentes grupos, esteve presente, como em qualquer instituição política. “A crise de participação na Igreja espelha a crise de participação na política e na sociedade. Uma coisa é certa: uma Igreja paralisada pela polarização intraeclesial será severamente impedida de seguir o caminho rumo à sinodalidade”, alertou o historiador Massimo Faggioli, em artigo publicado pela IHU, em junho.

Diante das tensões, o Papa convocou um mês de oração contra os ataques que a Igreja sofria. “O diabo é um sedutor. Por isso, sem nos darmos conta, deixamo-lo entrar nas nossas vidas. E também na vida da Igreja. Para lutar contra a força do mal e proteger a Igreja, o Papa pede-nos neste mês de outubro que rezemos o Rosário à Virgem Maria e a oração ao Arcanjo São Miguel”, foi o clamor de Francisco a poucos dias de iniciar a assembleia com os bispos.

 

No coração dilacerado de Jesus na cruz está guardada uma pequena semente

Francisco deu início ao Sínodo no dia 03 de outubro, uma quarta-feira ensolarada em Roma. Na missa de abertura esteve com um báculo de madeira presenteado por jovens italianos. “No coração dilacerado de Jesus na cruz está guardada uma pequena semente, aquela semente que morre para dar fruto e nossa esperança. E nos revela o segredo para fazer com que floresça a vida, o amor”, apresentou Elena, a jovem italiana que entregou o presente.


O báculo do Papa no Sínodo. Foto: L'Osservatore Romano

O gesto dos jovens italianos com o Papa Francisco foi de sensível reciprocidade aos movimentos atentos que o pontífice expressou em relação ao processo sinodal. De forma insistente, o Papa afirmou aos jovens que não estariam sozinhos, da necessidade de serem corajosos para expor suas ideias, anseios, cobranças aos padres e bispos, e serem participantes ativos na Igreja. Na homilia de abertura, fez questão de contrapor a confiança no Espírito aos “profetas de calamidades e desgraças”.

O Papa se emocionou durante a missa ao anunciar a presença de dois bispos chineses no Sínodo, pela primeira vez na história. O acordo histórico da Santa Sé com a China, que fora assinado 10 dias antes do Sínodo, foi uma investida insistente do pontificado de Francisco.

 

As controvérsias do Sínodo: periferias, abusos, mulheres e sexualidade

As três semanas de trabalho se desenvolveram ora na assembleia com os delegados, ora em pequenos grupos divididos por idiomas. Além dos padres sinodais, a Assembleia contou com a presença de 34 jovens auditores, religiosas e representantes de outras religiões cristãs.

O relator do Sínodo foi Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília e presidente da CNBB. A presidência do Sínodo foi composta com uma maioria de bispos e cardeais do Terceiro Mundo, reforçando o destaque para as periferias:

Francisco escolheu Louis Raphaël I Sako, Patriarca da Babilônia dos Caldeus, chefe do Sínodo da Igreja Caldéia no Iraque; o cardeal Désiré Tsarahazana, Arcebispo de Toamasina em Madagascar, o cardeal Charles Maung Bo, SDB, arcebispo de Yangon, em Mianmar; e o cardeal John Ribat, MSC, arcebispo de Port Moresby em Papua Nova Guiné

Presidentes delegados, o Papa Francisco, e o cardeal Lorenzo Baldisseri na abertura do Sínodo, 03-10-2018. Foto: Vatican Media

O início do Sínodo mesclou silêncio e protestos sobre a crise de abusos sexuais. Por parte do episcopado, os primeiros discursos do Papa e bispos sequer fizeram menções aos casos de abusos. Ao lado de fora do Castel Sant'Angelo vítimas de abusos protestavam. "A Igreja tem um papel muito importante no mundo, sobretudo na educação de crianças e jovens. Para servi-los bem e ser um lugar seguro. As mudanças que estamos falando servem para fazer da Igreja um lugar assim", afirmou Mattias Katsch, um dos líderes da manifestação, membro da organização alemã Eckiger Tisch para sobreviventes de abusos por parte de clérigos.  

Não obstante, o tema era de urgência para não entrar na discussão sinodal. Nos debates internos o assunto foi levantado pelos padres sinodais desde a primeira sessão. As intervenções vieram com pedidos de perdão aos jovens pelos crimes cometidos. Nos pequenos círculos de debate o assunto também veio à tona e foi presente nos relatórios dos grupos.

Ao final do Sínodo, houve a expectativa, sustentada pelo cardeal Gualtiero Bassetti, de o documento final dar mais ênfase ao assunto. Em um título específico cita-se o repúdio a todas as formas de abuso - sexual, econômico e de poder - e o reforço às palavras do Papa no confronto ao clericalismo, visto como a raiz do problema.

Outra polêmica deu-se em relação ao voto das mulheres. O número de mulheres participantes era de 10% em relação ao número de homens, todas sem direito a voto. Um campanha surgiu nas ruas do Vaticano e nas redes sociais a "Vote for Women".


Foram 267 votantes, incluindo religiosos e membros das Igrejas orientais, porém nenhuma mulher

Diversas organizações se manifestaram sobre o tratamento desigual entre homens e mulheres. Nem todos os aptos a votar eram bispos ou padres, como apresentou o teólogo Andrea Grillo, em artigo publicado pela IHU On-Line: "Porque, no Sínodo “dos bispos”, de acordo com o regulamento, também votam alguns sujeitos que não são bispos. Portanto, o argumento pode ser invertido: se sujeitos diferentes dos bispos também votam, por que nenhuma mulher pode votar? Por que o sexo é 'impedimento'?". O recente documento Episcopalis communio, que orienta sobre a sinodalidade, apresenta a possibilidade de voto por religiosos, escolhidos por suas congregações, mas não versa sobre religiosas.

Campanha "Votes for Women". Fotos: Women's Ordination Conference

Uma petição pública foi elaborada para cobrar o direito de voto para mulheres. As organizações Catholic Women Speak, o New Ways Ministry, a Voices of Faith, a Women’s Ordination Conference e a FutureChurch coordenaram o movimento, que não causou mudanças, mas impulsionou o debate durante e pós o Sínodo. O cardeal holandês, Everard de Jong, respondeu às organizações, defendendo a manutenção do atual sistema: "os bispos são responsáveis na Igreja. Não posso fazer nada; é a escolha de Jesus”.

A partir de uma leitura teológica e canônica da Igreja Católica, a teóloga italiana Donata Horak, deu continuidade ao debate e expôs a radicalidade necessária para transformar a regra. "É a partir das periferias que a Igreja é movimentada e impulsionada pelo Espírito. As mulheres são uma periferia que pede participação."

A dificuldade em avançar sobre as questões de gênero, foram expressas também no debate da sexualidade. O Instrumentum laboris despertou a atenção ao citar discussões sobre homossexualidade e aborto. O termo LGBTs também apareceu pela primeira vez em documento eclesial. Não obstante, o Sínodo não soube desenvolver esse debate, como apontaram os jesuítas Thomas Reese e James Martin e Francis DeBernardo, articulista de diversas revistas católicas e diretor-executivo do New Ways Ministry, um ministério gay-positivo que atua na defesa e justiça para LGBT católicos.

A baixa compreensão dos bispos em relação ao tema transpareceu nos relatórios aprovados nos pequenos círculos de debate. DeBernardo, que participou do Sínodo como auditor, fez um levantamento de conteúdos que tangenciam a temática, sem aprofundamentos. Pelas conclusões dos grupos de língua portuguesa, espanhola e inglesa, por exemplo, o diretor do New Ways Ministry opina que "destacam quão importante seria para a juventude LGBT ser representada no Sínodo. E, mais importante, quanto os bispos, em geral, precisam dialogar com as pessoas LGBT para aprender sobre a realidade de suas vidas e de sua fé". 

Uma manifestação emblemática desse desentendimento deu-se pela intervenção do cardeal guineense Robert Sarah, no dia 16-10-2018, afirmando que em contraposição aos comentários expressados no Instrumentum laboris de outra compreensão doutrinal acerca da orientação sexual e liberdades individuais, a Igreja não deveria "diluir seus ensinamentos para atrair jovens".

O bispo camaronês Andrew Fuanya, de Camarões, fez coro à opinião do cardeal Sarah. Segundo Funya, as igrejas católicas na África estão cheias "porque não diluíram os valores tradicionais, não contaminaram e não usaram de linguagem ambígua para ensinar os jovens".

O documento final reforçou esses entendimentos morais. Na seção 150, aponta para a necessidade de aprofundamento maior sobre questões antropológicas e sociológicas sobre a homossexualidade. Entretanto, afirma que os indivíduos não devem identificar-se por sua orientação sexual e que o modelo heterossexual é o ideal, e abandonou o uso da sigla LGBT. O Sínodo destacou a necessidade de acolhida aos homossexuais na Igreja, bem como o combate à violência e leis que os criminalizem.

 

A sinodalidade é global (?)

O entendimento controverso sobre as questões de gênero são características de uma Igreja global, geograficamente espalhada e culturalmente diversa. Uma das principais chaves do pontificado de Francisco é o olhar para as periferias em um mundo que desloca seu eixo de poder geopolítico. O Sínodo assim precisou expandir o olhar para além do Ocidente.

As conferências episcopais dos países não Ocidentais levaram à Assembleia a discussão sobre as mudanças culturais propiciadas pela globalização. A expansão dos "valores do individualismo, consumismo, materialismo e hedonismo e em que dominem as aparências" preocupam os povos que se pautam "pela solidariedade e pelos laços comunitários e a espiritualidade".

Segundo o jovem auditor Joseph Sapati Moeono-Kolio, samoano, houve uma preocupação geral em não construir um documento ocidentalizado ou eurocentrado: "Posso garantir que, em meio a esse processo, todos que tem participado do Sínodo estão sendo claros em garantir que não seja um ato eurocêntrico". 

O bispo congolês Bienvenu Manamika Bafouakouahou também apontou que havia "uma universalidade de temas" centradas em como eles afetam todos os jovens e não apenas aqueles na Europa ou no Ocidente. Discussões, como as que dizem respeito aos católicos que se identificam como LGBTs, não são uma questão importante na África, em comparação com a Europa, disse Manamika.

O cardeal indiano Oswald Gracias destacou, em entrevista após o Sínodo, que os diferentes continentes e países deverão finalizar e incorporar o documento.

O papel da América Latina também foi destaque no Sínodo. Segundo o bispo porto-riquenho Ruben Gonzalez Medina, em entrevista à Catholic News Service, "ao longo do (sínodo) documento, especialmente para nós da América Latina e do Caribe, há algumas pistas nas quais estamos claramente identificados, porque, claro, o papa é latino-americano".

 

Um Sínodo On-Line

O Sínodo ficou marcado por ser constantemente registrado nas redes sociais. Cardeais, bispos, jovens auditores e inclusive o Papa fizeram-se presentes na rede durante a assembleia. Foi também pela primeira vez que a Igreja abriu a possibilidade da participação nos eventos prévios via internet. Segundo o cardeal Lorenzo Baldisseri, todo o processo teve ampla participação online, foram mais de 220 mil pessoas que acessaram os questionários online do Pré-Sínodo, e mais de 100 mil jovens enviaram respostas (58 mil mulheres e 42,5 mil homens).

O cardeal filipino Luis Antonio Tagle, aproveitou as mídias para postar um vídeo dançando com os jovens participantes .

O bispo brasileiro Vilsom Basso, enviou ao portal Jovens Conectados, da CNBB, um vídeo explicando a emenda 119 do documento final, que foi de sua proposição. A emenda é uma diretriz pastoral que marca a opção da Igreja pelos jovens e a demanda de tempo, pessoas e recursos financeiros para a sua evangelização.

O jovem brasileiro Lucas Barboza Galhardo, que participou como auditor, gravou uma mensagem do papa Francisco ao Brasil.

O bispo auxiliar de Lyon Emmanuel Gobilliard, foi outro participante ativo do Sínodo e das redes. Durante toda a assembleia, gravou e transmitiu entrevistas com participantes via Youtube.

Robert Garron, bispo auxiliar de Los Angeles, lançou a Word on Fire, uma "plataforma online de evangelização", com diversos documentos, artigos e materiais multimídia.

 

Um documento "descafeinado"?

Para alguns o documento final acabou "descafeinado", para outros significou "uma virada do pontificado à direita". Em comparação às expectativas de transformação para a vida juvenil na Igreja e as discussões abordadas no Instrumentum laboris o documento não apresentou mudanças doutrinais da Igreja. Porém reforçou diretrizes pastorais de acompanhamento à juventude.

Um ponto atendido pelo Sínodo a partir dos protestos é em relação a participação das mulheres. No parágrafo 148 fala de um "transbordamento sinodal" e a necessidade da "presença feminina". A irmã salesiana Alessandra Smerilli afirmou que "este sínodo é um divisor de águas para a jornada das mulheres".

O debate da migração também apareceu com relevância, ao afirmar a necessidade de acolhimento dos jovens migrantes. "Os migrantes, oportunamente acompanhados, poderão oferecer recursos espirituais, pastorais e missionários às comunidades que os recebem. De particular importância é o compromisso cultural e político, a ser continuado também através de estruturas apropriadas, para lutar contra a propagação da xenofobia, o racismo e a recusa dos migrantes", é a asserção do parágrafo 147.

No último capítulo, o documento fala da Formação Integral dos Jovens para o discernimento vocacional. Vale destacar três propostas apresentadas para a formação sacerdotal:

1. Formação conjunta de leigos, pessoas consagradas e sacerdotes;

2. Inserção no currículo de preparação para o ministério ordenado e a vida consagrada de uma preparação específica sobre o cuidado pastoral dos jovens;

3. Avaliar a possibilidade de verificar a jornada formativa em um sentido experiencial e comunitário.

Outros elementos em relação à estrutura da Igreja, sugere a criação de organismos para acompanhamento dos jovens, o trabalho das diferentes pastorais de forma integrada e a perspectiva de trabalho missionário, de Igreja em saída.

O Sínodo da Juventude, embora apareça com resultados menos transformadores que o último Sínodo, foi movimentado, tanto nas suas discussões quanto seus bastidores e aquilo que o prenunciava.

Na missa de encerramento os Padres Sinodais enviaram uma carta aos jovens do mundo, lida pelo cardeal Baldisseri: "Sejam companheiros de estrada dos mais frágeis, dos pobres, dos feridos pela vida. Vocês são o presente, sejam o futuro mais luminoso", foram as últimas palavras da Assembleia em Roma. Agora o Sínodo continua na prática, em cada conferência, diocese e paróquia. 

 

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