Estados Unidos e China. Meio século de guerra comercial?

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11 Julho 2018

 “Agora a China, em velocidade alucinante, está finalmente pronta a investir na projeção de seu próprio poder econômico. Como Harvey já observou há mais de uma década, o próximo passo para o capitalismo da Ásia Oriental seria 'afastar-se do muito que depende do mercado norte-americano', rumo ao 'cultivo de um mercado interno'”, escreve o jornalista Pepe Escobar, em artigo publicado originalmente por Asia Times e reproduzido na versão portuguesa por Duplo Expresso, 06-07-2018. A tradução é do Coletivo Vila Vudu.

Eis o artigo.

Muito mais que primeiro tiro à meia-noite de hoje do que pode converter-se em terrível guerra comercial, a queda de braços de tarifas entre EUA e China deve ser vista no contexto de grande virada no Grande Quadro geopolítico e econômico.

O jogo de passar adiante as culpas, e todos os tipos de cenários de especulação de como pode evoluir a disputa de tarifas, são questões periféricas. O alvo crucialmente decisivo do que hoje se inicia não é algum “livre comércio” que seria disfuncional; o alvo é o projeto Made in China 2025 – a China autoconfigurada como usina geradora de alta tecnologia equivalente, ou mesmo superando EUA e UE.

É sempre importante destacar que foi a Alemanha que, na verdade, forneceu o molde para “Made in China 2025″, mediante sua estratégia Indústria 4.0.”

Made in China 2025 tem por alvo 10 campos tecno-estratégicos: tecnologia de informação, incluindo redes 5G e cibersegurança; robótica, aeroespaço; engenharia oceânica; ferrovias para vagões de alta velocidade; veículos movidos a novas energias; equipamento elétrico; maquinaria para agricultura; novos materiais; e biomedicina.

Para que o projeto Made in China 2025 dê frutos, Pequim já investiu em cinco centros nacionais de produção de inovações e em 48 centros provinciais, parte de um projeto para chegar a 40 centros nacionais até 2025. E em 2030, via uma estratégia paralela, a China já deverá estar estabelecida também como líder no campo da inteligência artificial (IA).

O Sonho Chinês”, mantra do presidente Xi Jinping, também conhecido como “o grande rejuvenescimento da nação chinesa”, é estritamente ligado não só a Made in China 2025, internamente, mas também, externamente, à Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), conceito que dá organicidade à política exterior da China para todo o futuro planeável. E os dois tópicos – Made in China 2025 e ICE – são absolutamente inegociáveis.

Em agudo contraste, não se vê nem sinal no horizonte de qualquer projeto Made in USA 2025. A Casa Branca parece modular todo o processo como uma batalha contra a “agressão econômica dos chineses”. A Estratégia de Segurança Nacional define a China como principal força que desafia o poder dos EUA. A Estratégia de Defesa Nacional do Pentágono vê a China como “concorrente estratégico que usa economia predatória”. E como chegamos a isso?

Inovação ou morte

É indispensável conhecer um pouco do contexto-cenário.

David Harvey, em O Novo Imperialismo, recorre a The Global Gamble: Washington’s Bid for Global Dominance de P. Gowan, para chamar atenção para o quanto ambos veem “a radical reestruturação do capitalismo internacional depois de 1973 como uma série de jogadas, tentadas pelos EUA, interessados em manter a própria posição hegemônica nos assuntos econômicos mundiais contra Europa, Japão e, depois, contra o Leste e o Sudeste da Ásia”.

Antes de o milênio acabar, Harvey já enfatizava o modo como Wall Street e o Tesouro dos EUA eram operados pelo Estado como “instrumento formidável de governança econômica para impulsionar os processos de globalização e as transformações domésticas neoliberais associadas.”

A China por seu lado jogou magistralmente seu jogo de reorientação do capitalismo – investindo sem meias medidas no que se pode descrever como “neoliberalismo com características chinesas”, e lucrando o máximo possível da projeção de poder econômico dos EUA via mercados abertos e os membros da Organização Mundial de Comércio.

Agora a China, em velocidade alucinante, está finalmente pronta a investir na projeção de seu próprio poder econômico. Como Harvey já observou há mais de uma década, o próximo passo para o capitalismo da Ásia Oriental seria “afastar-se do muito que depende do mercado norte-americano”, rumo ao “cultivo de um mercado interno”.

Harvey descreveu o programa de modernização massiva da China como “uma versão interna de reorientação espaço-temporal equivalente ao que os EUA fizeram internamente nos anos 1950s e 1960s mediante a suburbanização e o desenvolvimento do chamado Cinturão do Sol”. Na sequência, a China estaria “gradualmente drenando o capital excedente do Japão, de Taiwan e da Coreia do Sul e, assim, reduzindo os fluxos para os EUA”. Já está acontecendo.

O presidente Trump não é exatamente o que se diria um estrategista geopolítico. A razão para as novas tarifas pode ser forçar as cadeias de suprimento das empresas norte-americanas a reduzir o muito que dependem, hoje, da China. Mas o modo como a economia global foi montada não aguenta o desmanche dessas cadeias de suprimento – com a produção sendo des-deslocalizada de volta aos EUA, como diz Trump. O local, local, local também rege a lógica do capitalismo turbinado: as empresas sempre privilegiarão a mão de obra mais barata e os menores custos de produção, não importa onde estejam.

Agora, comparem isso à China que investe em deslocalização da alta tecnologia integrada com centros de excelência norte-americanos. No que se trate da cabeça do combate na linha da inovação entre China e EUA, a estratégica do Zhongguancun Development Group (ZDG) é caso fascinante. O grupo ZDG estabeleceu vários centros de inovação fora da China. O principal Centro ZGC de Inovação está instalado em Santa Clara, Califórnia, bem perto de Stanford e dos campus de Google e Apple. Há agora um novo centro em Boston à distância de um grito de Harvard e do MIT.

Esses centros fornecem o pacote completo – desde laboratórios que são o estado da arte até – fator crucialmente importante – o capital, mediante um fundo de investimento. A matrix vem do governo de Pequim, pelo tecnodistrito da cidade. E nem é preciso dizer que o grupo ZDG está integralmente alinhado com a ICE e a ênfase que jamais é esquecida na expansão, para “aprender a experiência de outros países, de um ecossistema de inovação”

Isso, num microcosmo, é do que trata o projeto Made in China 2025.

Meio século de guerra comercial?

Assim sendo, o que acontecerá?

Sob o atual tsunami de histeria, a análise sóbria que nos vem de Li Xiao, decano da Escola de Economia da Universidade Jilin, é mais que bem-vinda.

Li vai logo à jugular. Destaca o quanto “a ascensão da China é, essencialmente, um ganho de status dentro do sistema do dólar.” Do ponto de vista de Pequim, é imperativo mudar, mas a mudança será gradual. “O objetivo da internacionalização do yuan não é substituir o dólar. No curto prazo, o sistema do dólar é insubstituível. Nosso objetivo para o yuan é reduzir o risco e o custo, sob o sistema do dólar.”

Com muito realismo, Li também admite que “o conflito entre as duas maiores potências prosseguirá por, no mínimo, 50 anos, talvez mais. Tudo o que está acontecendo hoje é apenas um show preliminar, antes do espetáculo principal da história.”

Implícita na metáfora do show preliminar, antes do espetáculo principal, é a ideia de que a liderança chinesa parece interpretar o primeiro tiro do tarifaço, à meia-noite de hoje, como um modo de reaquecer o que se lê na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA. A conclusão, para Pequim é uma só e inescapável: agora, os EUA começaram a ameaçar o Sonho Chinês.

Dado que o Sonho Chinês, o “rejuvenescimento da nação chinesa”, Made in China 2025, a ICE, o multipolarismo e a China como motor da integração da Eurásia são itens absolutamente não negociáveis, não surpreende que o cenário esteja montado para forte, inevitável turbulência.

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