Laudato Si' - Cinco anos - e a Covid 19. É um mal antropogênico, não um mal natural, que possui paralelos com as mudanças climáticas. Entrevista especial com Celia Deane-Drummond

A covid-19 é um mal antropogênico que pode ser compreendido à luz da ação humana e da crise ecológica e nos permite aceitar a crença em um Deus bom quando coisas más acontecem no mundo, diz a teóloga 

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | Tradução Isaque Gomes Correa | 20 Mai 2020

Reduzir a pandemia de covid-19 a um mal natural é “simplista demais”. A crise pandêmica é mais bem compreendida como um efeito das ações humanas e da interferência irresponsável na natureza, mas também como uma consequência das decisões políticas, sociais e econômicas que estão sendo tomadas nas últimas décadas. O coronavírus, nesse sentido, é um exemplo de “um mal antropogênico que possui paralelos com as mudanças climáticas, isto é, o mal que surge com as ações humanas, mas que se expressa através de um desastre natural”, afirma Celia Deane-Drummond, diretora do Instituto de Pesquisa Laudato Si’, da Universidade de Oxford, à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Segundo ela, o surgimento e a ampla disseminação da covid-19, apesar de ter pego a humanidade de surpresa, era um “desastre” previsível, “dada a prevalência de mercados ilegais em muitas partes do mundo que criaram oportunidades para a transferência de doenças entre espécies. Muitos destes animais comercializados para ganhos ilícitos são espécies vulneráveis à beira da extinção. Mas por trás deste desejo estão demandas de mercados ocidentais, mas também desigualdades sociais e econômicas que forçam pessoas em situações de pobreza a buscar uma forma de renda a partir destes empreendimentos comerciais”, adverte.

Na semana de aniversário dos cinco anos da Encíclica Laudato Si’, Celia explica como o texto publicado pelo papa Francisco em maio de 2015 nos ajuda a compreender a crise global que estamos vivendo e apresenta possibilidades para enfrentá-la. “A Laudato Si’ enfatiza a interconexão, o que é bastante óbvio nas circunstâncias em que nos encontramos; enfatiza a necessidade do diálogo e de trabalharmos em conjunto, o que está começando a surgir. Este documento destaca a necessidade de relações sociais genuínas em vez de uma confiança demasiada no uso da tecnologia”, destaca.

Na busca de soluções para a crise, ressalta, o conceito de ecologia integral empregado pelo papa na Encíclica é uma fonte de inspiração para solucionar problemas de diferentes dimensões, que estão interconectados. “A importância da ecologia integral é que ela se recusa a dividir as nossas necessidades espirituais e corporais; o dom da criação é fundamental para entendermos o motivo pelo qual precisamos reconhecer e valorizar uns aos outros e as demais espécies nela, e para vermos a Terra como um presente. Desse centro teológico advém o senso de que os aspectos humanos, ecológicos e sociais da nossa existência, incluindo os aspectos econômicos e políticos, estão amarrados e enredados entre si e que é deste entendimento que precisamos para agir de um certo modo que reflita um pensamento complexo e cuidadoso”.

Celia Deane-Drummond, responsável pela coordenação de pesquisas interdisciplinares a partir dos desafios apresentados pelo texto papal no Instituto de Pesquisa Laudato Si’, da Universidade de Oxford, também comenta a recepção da Encíclica entre diferentes atores sociais. “Muitos dos que leem a Laudato Si’ descobriram nela elementos de suas próprias visões e perspectivas, e assim a adotaram para defender uma abordagem particular”. Esta particularidade, no entanto, “vai contra o espírito da Laudato Si’, que visa o diálogo entre os que se encontram em desacordo, enquanto ao mesmo tempo pressiona por uma mensagem mais dura contra as injustiças de toda espécie”, assegura. E acrescenta: “Por vezes, ambientalistas e sociólogos não levam o religioso a sério o suficiente, muito embora 80% da população mundial é religiosa. Laudato Si’ abriu-se às demais tradições religiosas também, e isso precisa ser um marco importante em qualquer diálogo”.

Celia Deane-Drummond (Foto: Reprodução Youtube)

Celia Deane-Drummond é graduada em Ciências Naturais pela Universidade de Cambridge e doutora em Fisiologia Vegetal pela Universidade de Reading e em Teologia Sistemática pela Universidade de Manchester. Atualmente leciona Teologia Sistemática em relação à Biologia na Universidade de Notre Dame.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O coronavírus é parte da nossa casa comum?

Celia Deane-Drummond - Sim, em certo sentido, o coronavírus é parte da nossa casa comum, mas precisamos entender que o modo mais provável que o fez surgir é através das ações que nós tomamos enquanto seres humanos. Os vírus novos são oportunistas; este vírus saltou uma barreira entre espécies, mas foram as ações humanas que produziram a ocasião para que ele surgisse e então agisse.

IHU On-Line - A senhora disse recentemente que “não há nada explicitamente mal no covid-19” e que ele “está fazendo aquilo que foi criado para fazer: multiplicar-se em seus hospedeiros”. A partir disso, como temos que lidar e nos relacionar com o vírus? O coronavírus não é nosso inimigo e não temos que fazer guerra contra ele?

Celia Deane-Drummond - A meu ver, esta linguagem bélica contra o vírus é um equívoco na medida em que implica que o vírus é um inimigo, quando na verdade ele não possui um agenciamento moral como tal. Precisamos encontrar meios de conviver com este vírus e deter a sua propagação tomando medidas responsáveis e, eventualmente, tendo uma vacina.

Para proteger a vida humana, podemos matar o vírus e o fazemos corretamente. Mas, quando empregamos a linguagem do “inimigo”, damos um alvo específico às nossas emoções morais, porém esta atitude impede de enfrentarmos as decisões humanas que levaram à sua origem, à multiplicação e propagação. Melhor seria, se insistíssemos em usar uma linguagem antropomórfica e disséssemos: “fazer o vírus morrer de fome”.

Eis um exemplo de um mal antropogênico que possui paralelos com as mudanças climáticas, isto é, o mal que surge com as ações humanas, mas que se expressa através de um desastre natural. O exagero em eventos climáticos extremos que temos testemunhado e iremos testemunhar não são só males naturais, mas foram também desencadeados pelas decisões diárias de milhões de pessoas.

IHU On-Line - Quais são os aspectos políticos, sociais, morais e biológicos que explicam o surgimento da covid-19 no cenário global do século XXI?

Celia Deane-Drummond - Todos estes fatores se cruzam de um modo complexo. O surgimento da covid-19 era um desastre que aguardava acontecer, dada a prevalência de mercados ilegais em muitas partes do mundo que criaram oportunidades para a transferência de doenças entre espécies. Muitos destes animais comercializados para ganhos ilícitos são espécies vulneráveis à beira da extinção. Mas por trás deste desejo estão demandas de mercados ocidentais, mas também desigualdades sociais e econômicas que forçam pessoas em situações de pobreza a buscar uma forma de renda a partir destes empreendimentos comerciais. Em uma escala maior, uma vez que o vírus escapa entre a população humana, decisões políticas foram – e estão sendo – fundamentais para conter a maré de sofrimento decorrente ou para permitir a sua escalada. A falta de ação positiva dos governos em muitas regiões do mundo para proteger as populações mais vulneráveis é uma perversão grosseira da justiça.

IHU On-Line - A senhora tem chamado a atenção para dois fenômenos que estamos observando durante a pandemia de covid-19, os quais estão diretamente conectados no momento, a saber, que os fatores que levam à redução da pegada de carbono também abrem ameaças às necessidades humanas básicas, como temos observado em vários países. Como conciliar essas questões no debate a ser feito pós-pandemia?

Celia Deane-Drummond - Tais questões são realmente muito difíceis de conciliar. Por um lado, importa reduzir as emissões de carbono; por outro lado, sem o turismo em muitas partes do mundo, reduz-se a fonte básica de renda que sustenta as necessidades humanas básicas, levando a uma intensificação da pobreza e, talvez, da morte.

Há duas abordagens possíveis. Uma seria a de trabalhar no sentido de criarmos formas de subsistência alternativa àqueles países e comunidades que contam com o turismo. A outra é garantir que a abrangência deste mercado de turismo seja responsável, tanto em termos de contribuição para um bem-estar verdadeiro dos países que recebem visitantes quanto em termos ecológicos.

As empresas precisam encontrar um modo diferente de trabalhar a fim de reduzir a pegada de carbono. A covid-19 mostrou que é possível mudar hábitos que parecem arraigados quando há uma ameaça de doença ou morte, mesmo entre aqueles que desconhecemos. Talvez o vírus nos ensinou a pensarmos com mais cuidado sobre as ameaças à existência humana e a nossa interconexão uns com os outros.

IHU On-Line - Que novos desafios a pandemia de covid-19 lança para o debate sobre como resolver as ameaças à casa comum e enfrentar as mudanças climáticas?

Celia Deane-Drummond - A covid-19 afasta a atenção que damos aos outros países, voltando-se para a autopreservação interna nos níveis da saúde pública e econômica. Isso significa que o auxílio do governo e outros recursos para sustentar as mudanças climáticas estão sendo reduzidos e que estão alocando esses recursos diante das mortes de um número significativo da população.

IHU On-Line - Como a Encíclica Laudato Si’ nos ajuda a compreender o momento que estamos vivendo hoje?

Celia Deane-Drummond – A Laudato Si’ enfatiza a interconexão, o que é bastante óbvio nas circunstâncias em que nos encontramos; enfatiza a necessidade do diálogo e de trabalharmos em conjunto, o que está começando a surgir. Este documento destaca a necessidade de relações sociais genuínas em vez de uma confiança demasiada no uso da tecnologia.

A Laudato Si’ apresentou as tecnologias pelas ambiguidades que trazem: por um lado, a possibilidade de comunicação de uma forma que não transmite doenças; por outro, uma insatisfação com a substituição virtual das relações humanas. Ela apresentou também, mais claramente do que antes, que viver com relações saudáveis junto a outras espécies na forma praticada por muitos povos indígenas é um comportamento exemplar para o resto do mundo. Finalmente, a Laudato Si’ celebra o dom da vida, incluindo a miríade de espécies que compartilham a casa comum.

O que ela não fez de uma maneira clara foi enfrentar as ambiguidades associadas com os males naturais – mas isso faz surgir uma questão muito maior sobre como devemos aceitar a crença em um Deus bom quando coisas más acontecem no mundo. De novo, como já indicado, é simplista demais considerar esta pandemia um mal natural.

IHU On-Line - Por que e em que medida o debate da ecologia integral é importante para a Igreja? Nesse sentido, como compreende e qual é a centralidade do conceito de ecologia integral apresentado na Encíclica?

Celia Deane-Drummond - Ecologia integral é um termo empregado por biólogos e outros, mas frequentemente com uma sustentação filosófica diferente em comparação com a Laudato Si’. A importância da ecologia integral é que ela se recusa a dividir as nossas necessidades espirituais e corporais; o dom da criação é fundamental para entendermos o motivo pelo qual precisamos reconhecer e valorizar uns aos outros e as demais espécies nela, e para vermos a Terra como um presente. Desse centro teológico advém o senso de que os aspectos humanos, ecológicos e sociais da nossa existência, incluindo os aspectos econômicos e políticos, estão amarrados e enredados entre si e que é deste entendimento que precisamos para agir de um certo modo que reflita um pensamento complexo e cuidadoso.

Eis o verdadeiro significado da ecologia integral. Temos que tentar pensar de forma mais holística, por mais desafiador que possa ser, e por mais tentador que é trabalhar em busca de “soluções” isoladas para os problemas que enfrentamos. O verdadeiro desafio do cuidado da nossa casa comum é precisamente este: o comum a toda vida.

IHU On-Line - Que desafios a senhora tem encontrado ao trabalhar temas de ecologia, filosofia e teologia à luz da Laudato Si’?

Celia Deane-Drummond - O desafio mais significativo é sempre o de tentar nos remeter às questões mais importantes em relação ao todo, em lugar de estreitarmos muito rapidamente o olhar para temas específicos. A mente humana acha difícil fazer isso. Ao mesmo tempo, investigar às vezes os aspectos mais profundos de uma questão singular pode lançar luz sobre outros aspectos que não são, num primeiro momento, óbvios.

Trabalhar na interface entre os ativistas preocupados com as transformações sociais e ecológicas e com os filósofos e teólogos preocupados em entender e revelar as causas mais profundas dos problemas em jogo – e em encontrar maneiras de inspirar diferentes ações – é particularmente desafiador. Mas não impossível.

IHU On-Line - A senhora se refere às mudanças climáticas como um fenômeno moral, político e natural, mas que também tem um significado teológico. Como todas essas esferas se conectam na discussão sobre mudanças climáticas?

Celia Deane-Drummond - As mudanças climáticas são uma questão moral na medida em que representam, por serem mudanças climáticas antropogênicas, as decisões diárias de cada um de nós. Ninguém se isenta de responsabilidade. É uma questão política quando as prioridades dos gastos dos governos, diretrizes jurídicas e outros enquadramentos políticos impactam as mudanças climáticas. Precisa haver leis nacionais e internacionais para limitar a pegada de carbono nas construções de moradias, nas viagens e outras atividades, e não apenas uma confiança na boa vontade individual; podemos ir além destas leis em termos de haver um compromisso com a redução de emissões de gás carbônico, bem como estruturas governamentais robustas para implementar tais legislações. As reuniões das Conferências das Partes ocorrem na tentativa de pressionar por acordos internacionais, mas até agora não foram longe o suficiente.

IHU On-Line - Quais são os ganhos de compreender as mudanças climáticas também do ponto de vista teológico e não somente político, natural e moral?

Celia Deane-Drummond - A teologia nos dá uma compreensão que ajuda a lidar com o sofrimento advindo das mudanças climáticas, bem como o imperativo moral a agir de um modo diferente. A teologia política preocupa-se com a responsabilidade moral – ou a falta dela – na governança, incluindo questões como direitos humanos e justiça ecológica.

IHU On-Line - Muitos ambientalistas, economistas e sociólogos elogiam a Laudato Si’ e o debate acerca da ecologia integral e do cuidado da casa comum proposto pelo papa Francisco, mas nem todos comungam da visão cristã que fundamenta a Encíclica e tampouco compreendem as mudanças climáticas do ponto de vista teológico. Podemos dizer que eles aceitam a existência de uma interconectividade entre nós e as outras criaturas, mas nem todos aceitam a ideia de que nós e outras criaturas estamos interconectados com Deus. O esvaziamento teológico traz que consequências ou que desdobramentos para o modo de tratar essa temática?

Celia Deane-Drummond - A secularização da discussão ainda permite algum denominador comum em tarefas compartilhadas, mas não possibilita entender a profunda motivação que é possível aos fiéis para efetuar uma mudança. Por vezes, ambientalistas e sociólogos não levam o religioso a sério o suficiente, muito embora 80% da população mundial é religiosa. Laudato Si’ abriu-se às demais tradições religiosas também, e isso precisa ser um marco importante em qualquer diálogo.

IHU On-Line - Como a Laudato Si’ tem sido compreendida e recepcionada no debate sobre mudanças climáticas, no qual participam diferentes atores?

Celia Deane-Drummond – A Laudato Si’ não deixou uma fórmula de como agir, mas incentivou pessoas de perspectivas diversas a conversar e se engajar no diálogo. Seria um equívoco pensar que este documento foi unilateral, mas na prática ele foi adotado pelos que estão na esquerda política a fim de apoiar os próprios objetivos e metas.

IHU On-Line - Há uma instrumentalização da Laudato Si' por parte de alguns atores?

Celia Deane-Drummond - Muitos dos que leem a Laudato Si’ descobriram nela elementos de suas próprias visões e perspectivas, e assim a adotaram para defender uma abordagem particular. Esta particularidade vai contra o espírito da Laudato Si’, que visa o diálogo entre os que se encontram em desacordo, enquanto ao mesmo tempo pressiona por uma mensagem mais dura contra as injustiças de toda espécie.

IHU On-Line - Alguns teóricos alertam para o risco de uma sacralização da ecologia, da natureza, ao ponto de ela se tornar a nova religião daqui para frente. Como vê esse tipo de apontamento e em que medida é possível tratar das questões ecológicas sem sacralizar a natureza?

Celia Deane-Drummond - Sacralização é diferente de divinização. O mundo natural é sagrado no sentido de que reflete algo da Trindade, que é o que a Laudato Si’ atesta, mas ele não é divino.

IHU On-Line - A Laudato Si’ nos ajuda a tratar da questão ecológica sem sacralizá-la?

Celia Deane-Drummond - Aqui a linguagem é traiçoeira. É importante não divinizarmos o mundo natural como um objeto de culto. Ao mesmo tempo, a base para a sua proteção é que ele é criado por Deus e reflete algo da Trindade divina.

IHU On-Line - Que pesquisas interdisciplinares estão sendo feitas a partir dos desafios apresentados na Encíclica Laudato Si’ no Instituto de Pesquisa Laudato Si’, na Universidade de Oxford?

Celia Deane-Drummond - Em nosso Instituto, estamos explorando abordagens novas a alguns dos temas encontrados na Encíclica, incluindo, por exemplo, a interseção entre desigualdade e ecologia; a necessidade de trazer perspectivas indígenas na criação de uma epistemologia diferente; a importância de trabalharmos uma teologia da gratidão e a base do que se conhece às vezes como as virtudes ecológicas.

Temos o interesse de trabalhar com outros cientistas em problemas e questões centrais, incluindo questões fundamentais como aquela sobre a nossa natureza humana, bem como em trabalhos de pesquisa mais praticamente inclinados que percebemos na interseção da lacuna entre conhecimento e ação, tais como o papel e a importância das mulheres na interface da ecologia e privação.

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