A política do coronavírus: ativar os anticorpos do catolicismo. Artigo de Antonio Spadaro

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03 Março 2020

Diferentemente da globalização imposta pelo mercado, a visão católica é universal e coloca a pessoa e os povos no centro.

A opinião é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado na mesma publicação, em seu caderno 4.072, 15-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O coronavírus COVID-19 está se difundindo pelo mundo, gerando uma síndrome do contágio universal. O sistema de interconexão planetária da humanidade nos faz experimentar uma condição paradoxal: quanto mais conectados estamos, mais o contato pode se transformar em contágio; comunicação em contaminação; as influências em infecções.

O apocalipse está ao alcance das mãos. Disparam os anticorpos, que vão à loucura e se transformam em um sistema imunitário contra tudo o que tememos não reconhecer e não conseguir controlar. O vírus já é há muito tempo uma figura do imaginário: desde as pragas bíblicas até a peste de “Os Noivos” a aos ataques cibernéticos. As fronteiras da alma se restringem com a descoberta da nossa vulnerabilidade.

A pandemia nesses casos acaba sendo sempre a da insegurança e a da ansiedade. O coronavírus também parece ter se tornado hoje também um sintoma (e um símbolo) de uma condição de medo mais geral que carregamos dentro de nós.

Uma pesquisa recente da SWG ressaltou quanto medo os italianos sentem. Quais medos? Apenas um dado exemplar: 72% temem que seus filhos não consigam ter um padrão de vida decente, e 58% temem que não conseguirão criar uma família. O medo do futuro: esse é hoje o vírus da alma. Mas é possível rezar uma longa ladainha de medos.

Fazendo memória de Benigno Zaccagnini, o presidente italiano Sergio Mattarella lembrou recentemente a sua exigência de “oferecer aos jovens um horizonte de ideais, uma perspectiva de valores para evitar o ressecamento”. “Ressecar é o perigo que se corre”, disse ele. O medo resseca. O primeiro efeito do contágio pelo vírus do medo é a alma árida, a desolação. A primeira tarefa de um católico é, acima de tudo, a luta contra o ressecamento.

* * *

Quais são os sintomas do vírus? A reação imunitária que nos faz perceber o contato com o outro e o diferente como um risco de contágio vai se enraizando nas nossas sociedades e assume várias formas: uma concepção estreitamente securitária que comprime os direitos de liberdade e o Estado de direito; o soberanismo entendido como o oposto de uma política externa baseada no multilateralismo e na Europa; a hostilidade contra a integração; o uso político do cristianismo reduzido a “religião civil”.

O raciocínio é: se eu quero estar bem e estar seguro, devo usar uma máscara e me proteger do contato com o estranho. “Por toda a parte, o ser humano evita ser tocado por aquilo que lhe é estranho” (Elias Canetti). Isso vale para o nível pessoal, vale para o nível político. O algoritmo do Facebook nos ensinou isto: as relações se baseiam em um cálculo de afinidade. Os algoritmos nos garantem que encontraremos substancialmente aqueles que nos são afins, semelhantes e compatíveis.

Vivemos em um filtro-bolha de máscaras que reforça a nossa identidade e nos faz suspeitar do outro. É por isso que devemos desmentir a lógica do algoritmo que moldou as “máquinas de guerra” das mídias sociais em ação na propaganda nacionalista e soberanista do “homo homini lupus”.

Uma forma viral específica de “medo” é o nacionalismo, que também reduz a ideia de “nação” a um filtro-bolha. Pio XI, em 1938, ao receber os assistentes eclesiásticos do movimento Ação Católica, deixou claro como o catolicismo possui os anticorpos para debelar esse vírus. Ele disse: “Católico significa universal, não racista, não nacionalista, não separatista. Essas ideologias não são cristãs, mas acabam sendo sequer humanas”.

Ao contrário da globalização imposta pelos mercados, a visão católica é universal e coloca a pessoa e os povos no centro, reconhecendo o outro, o estranho e o diferente como “irmão” e “irmã”.

* * *

Os cristãos sentem que devem assumir as expectativas, as mudanças e os problemas do país, que o interpelam a agir. Como ativar concretamente, no âmbito da nossa vida social e política, os anticorpos contra o vírus da pandemia do medo, da ansiedade e do ódio?

Uma saída é romper fisicamente a bolha dos algoritmos que desencadeiam uma reação de medo. As “Sardinhas” (Movimento das Sardinhas) fizeram isso e – independentemente de qualquer outra avaliação de mérito – funcionaram como anticorpos contra as retóricas do ódio. Eles deram uma resposta física. As mídias sociais serviram para ser “social”, isto é, para se encontrar. Esta é uma saída: encontrar-se, fazer coisas juntos, do Erasmus às iniciativas de bairro, para revitalizar os territórios, as praças, onde hoje não se conversa mais, mas se fazem comícios.

É claro que as “Sardinhas”, assim como outros fenômenos semelhantes do passado e do presente, são interfaces, independentemente da definição das reivindicações das quais se fazem portadores, que permanecem em aberto (e, portanto, inevitavelmente vagas). A reação física, portanto, deve se tornar projetual e integrar também a emotividade e a inteligência política. A reação antiviral deve dar espaço para um processo de reabilitação e de reconstituição.

Mas como organizar as forças católicas dentro da vida pública? O Papa Francisco escreveu que o leigo, “imerso no coração da vida social, pública e política”, precisa de novas formas de organização. Mas “não é possível dar diretrizes gerais para organizar o povo de Deus dentro da sua vida pública” (carta ao cardeal Marc Ouellet, 19 de março de 2016).

Na Itália, estamos elaborando a saída desde os tempos das “diretrizes gerais”. É um processo delicado e importante, no qual o risco é o de oscilar entre duas opções opostas.

A primeira é que a vida de fé e as responsabilidades políticas não sejam mais vistas como um binômio inseparável. Trata-se de uma opção desastrosa, porque desconecta o sentimento religioso da construção da cidade.

A segunda opção é que a vida de fé seja instrumentalizada em função do consenso político. Isso tem um impacto nefasto precisamente sobre o anúncio do Evangelho. A opção que reduz os símbolos cristãos a elementos de propaganda política põe em causa a Igreja diretamente, que tem uma responsabilidade direta quanto ao anúncio, à educação, à edificação da fé cristã. Portanto, se configuraria “uma nova questão católica” (G. Brunelli).

Após o declínio das “diretrizes gerais”, hoje nos encontramos diante desses dois escolhos a serem evitados para continuar a navegação em mar aberto. Precisamente em um contexto como o nosso de crise da governança e da representação, a sinodalidade se apresenta à Igreja como o caminho a ser tomado para seguir em frente.

Certamente, a dinâmica sinodal é menos “governável” a priori, porque coloca no centro a assembleia de pessoas reais que “participam” e “representam” a Igreja. Mas ela é, em nossa opinião, o caminho para ativar os anticorpos próprios do catolicismo, encontrando uma resposta pastoral da Igreja aos vírus da nossa democracia.

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