''Tudo está interligado'': uma leitura comunicacional da Laudato si'

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25 Junho 2015

Em uma perspectiva geral, a Laudato si' tem uma visão ecológica da comunicação, reconhecendo-a inclusive como parte de um âmbito transcendente e não a restringindo meramente a uma prática social ou ao uso de aparatos tecnológicos.

A análise é do jornalista Moisés Sbardelotto, mestre e doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos, com estágio doutoral na Università di Roma "La Sapienza", e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). 

Eis o texto.

“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra.” Essas palavras de Francisco de Assis, no século XIII, são retomadas por outro Francisco, bispo de Roma, no século XXI, como inspiração para a sua nova encíclica, Laudato si' (Louvado sejas). 

Sendo um documento inovador e histórico – o primeiro texto pontifício totalmente dedicado à ecologia –, trata-se de uma verdadeira “virada ecológica” no âmbito católico, e muito já foi debatido sobre as contribuições epocais desse texto em torno daquilo que Francisco chama de “ecologia integral”.

Nesse sentido, o processo de construção do oikos (do grego, casa, morada, ambiente comum) tem como sua força motriz a comunicação, que permite que “tudo esteja interligado”, como reitera o papa na encíclica. É a comunicação que favorece a constituição e a manutenção desse ambiente comum. É por meio dela que o oiko umene (ecumenismo) se torna uma possibilidade, ou seja, a harmonia das diferenças em unidade. É a comunicação também que favorece o oiko logos (ecologia), uma fala/ação sobre a casa comum e a sua preservação. E é a comunicação que possibilita o oiko nomos (economia), a constituição de regras e consensos em torno da sustentabilidade dessa casa comum, dos seus membros e dos seus bens.

Por isso, aqui, queremos ler a encíclica a partir da comunicação, analisar os eixos comunicativos internos do texto, os circuitos comunicacionais aos quais se dirige e também a própria visão bergogliana sobre a comunicação que desponta em várias partes do texto de Francisco.

A comunicação da encíclica

A Laudato si' é um documento amplo, dividido em seis capítulos e 246 parágrafos, com 172 notas de rodapé. O idioma do título já é uma inovação, pois não se trata de uma expressão em latim, língua (cada vez menos) oficial da Igreja: a frase vem do italiano arcaico, do século XII, tempos de Francisco de Assis.

Por falar em latim, também pela primeira vez na história das encíclicas, ele não se encontra entre as oito línguas para as quais o documento foi oficialmente traduzido (alemão, árabe, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês e português). Assim, o documento não apenas fala sobre a cultura do descarte, mas a coloca em prática, evitando o desperdício de energia material e humana para a tradução de um texto tão contemporâneo para uma língua morta, sem falantes nativos.

Ao longo da encíclica, Francisco dialoga com inúmeros interlocutores, começando pela Sagrada Escritura, pelos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, passando por diversos santos e doutores da Igreja (de São Francisco de Assis a Santa Teresa de Lisieux), e pelos seus antecessores no papado, principalmente João Paulo II (citado 36 vezes) e Bento XVI (26 vezes).

Ele também retoma o pensamento de vários autores de ciências e experiências diversas, citados nominalmente, como o escritor Dante Alighieri, o filósofo protestante Paul Ricoeur, o teólogo Romano Guardini, o paleontólogo jesuíta Teilhard de Chardin, o teólogo jesuíta Juan Carlos Scannone e o mestre espiritual islâmico Ali Al-Khawwas. Assim, a encíclica assume diversas contribuições – religiosas mas também seculares, católicas mas também ecumênicas –, inserindo-as no magistério social da Igreja, dentro do qual o novo documento se insere, enriquecendo-o.

Também são inúmeras as citações de documentos das mais diversas Conferências Episcopais de todo o mundo, de um total de 15 países – como, por exemplo, a CNBB com o seu documento de estudo A Igreja e a questão ecológica (1992), citado duas vezes –, além do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (FABC), sinal de colegialidade também em nível magisterial.

De todas as citações, 22 são de órgãos episcopais, mais de 12% do total. Recolhendo e reunindo as reflexões das diversas Igrejas locais em um documento que passa a compor o magistério eclesial, Francisco, em primeiro lugar, diversifica e descentraliza o pensamento da Igreja, harmonizando as mais diversas perspectivas geográficas e culturais sobre o tema da Criação. E, segundo, também concede um peso maior a tais contribuições, reconhecendo e elevando as reflexões e as teologias locais como parte do próprio ensinamento de toda a Igreja, em um magistério concretamente sinodal e colegial.

Trata-se ainda de um documento fortemente ecumênico. Pela primeira vez em um texto magisterial, o pensamento não católico é citado e apropriado. Francisco dedica nada menos do que três parágrafos (n. 7, 8, e 9) do primeiro capítulo – reunidos no entretítulo "Unidos por uma preocupação comum" – ao pensamento e à ação do Patriarca Ecumênico Bartolomeu, da Igreja Ortodoxa, reconhecido pela sua atuação ecológica e apelidado, por isso, de “patriarca verde”.

A Laudato si' também não se restringe à Igreja, nem mesmo apenas a um público cristão: sinal disso é a primeira das duas orações finais da encíclica, escrita em linguagem inter-religiosa, podendo ser rezada por todos os fiéis de outras tradições religiosas que acreditam em Deus. Mas, principalmente, destaca-se a inédita presença do pensamento islâmico no interior do magistério católico: o mestre espiritual islâmico Ali Al-Khawwas é citado, mesmo que em nota de rodapé, dentro da reflexão sobre a presença do mistério em cada elemento da Criação, ou, nas palavras do pensador muçulmano, "o 'segredo' sutil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo". Também são citadas várias vezes declarações de organizações civis e órgãos governamentais internacionais, como a Declaração do Rio (1992) e a Carta da Terra (2000).

Além disso, o papa não dirige a sua carta de modo tradicional “aos bispos, aos presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas, aos fiéis leigos e a todos os homens de boa vontade”, a quem os papas anteriores haviam dedicado os seus textos. Tendo em vista a deterioração global do ambiente, Francisco se dirige explicitamente a um público muito mais amplo: “A cada pessoa que habita neste planeta” (n. 3).

Assim, Francisco “desce” da sua cátedra para “elevar” – reconhecendo e assumindo – a reflexão de outras culturas e de outros “fins de mundo” além da sua Argentina. E dá as mãos às mais diversas contribuições, de dentro e de fora da Igreja. Dessa forma, o papa pode se dirigir com credibilidade a todas as pessoas e a cada uma delas, cristãs e não cristãs, sem exclusões nem privilégios, para falar de um tema tão compartilhado quanto a “casa comum”.

No seu texto, a Laudato si' vincula ecologicamente as “três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra” (n. 66), inclusive no seu discurso. Sinal disso são as expressões mais utilizadas pelo pontífice ao longo da encíclica:

  • humano/a – 187 vezes
  • Deus – 158 vezes
  • mundo – 147 vezes
  • vida – 137 vezes
  • ambiente – 89 vezes

Para além desses aspectos gerais em torno da comunicação da encíclica, também vale a pena ver como Francisco pensa a comunicação na Laudato si'.

A comunicação na encíclica

Em uma perspectiva geral, a Laudato si' tem uma visão complexa (mas não complicada) da comunicação – e não é por acaso que se repete nada menos do que cinco vezes a expressão “tudo está interligado”. O documento reconhece a comunicação inclusive como parte de um âmbito transcendente, não a restringindo meramente a uma prática social ou ao uso de aparatos tecnológicos.

A “alta” comunicação

Na encíclica, em um primeiro nível, ao falar do trabalho e do “multiforme desenvolvimento pessoal”, o papa inclui a “comunicação com os outros” dentro das “muitas dimensões da vida” (n. 127), junto com a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, o exercício dos valores, a atitude de adoração. Assim, não restringe a comunicação a uma prática tecnicizante ou ao uso de aparatos controláveis e finalizáveis, mas a situa no âmbito de complexos fenômenos antropológicos.

Mas o papa também não reduz a comunicação ao “fator humano”. Ele afirma, por exemplo, que Francisco de Assis “entrava em comunicação com toda a criação” (n. 11); diz ainda que a depredação da biodiversidade fará com que milhares de espécies não “poderão comunicar-nos a sua própria mensagem” (n. 33). Assim, em um segundo nível, Francisco entende a comunicação como uma ação propriamente ecológica, não apenas humana, muito menos antropocêntrica, mas que envolve e liga os entes e agentes da Terra, quer humanos, quer não humanos, em um mesmo oikos.

Em um terceiro nível, o papa fala ainda da comunicação como de uma ação ampla e difusa por toda a Criação, pois o próprio universo, diz Francisco, é “composto por sistemas abertos que entram em comunicação uns com os outros” (n. 79). “Isso também nos leva a pensar o todo como aberto à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve”, continua. Portanto, mais do que humana e ecológica, a comunicação é um verdadeiro movimento cósmico, que une em um mesmo ambiente a natureza imanente (nas suas mais diversas expressões) e também gera “uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal” (n. 76).

Ou seja, para Francisco, a comunicação envolve um nível antropológico, um nível ecológico e até mesmo um nível cosmológico. Desse modo, a partir desses três âmbitos de reflexão, Francisco afasta a comunicação de qualquer “critério utilitarista de eficiência e produtividade” (n. 159) de caráter individual. Ela é vista como parte da lógica do “dom gratuito” da Criação, “que recebemos e comunicamos” (ibid.).

A “baixa” comunicação

A Laudato si' também aborda a comunicação a partir de um ponto de vista mais concreto e empírico. Quando relacionada às tecnologias, o papa afirma que “não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e comunicações” (n. 102). Quando fala dos grandes “meios de comunicação”, Francisco também percebe neles um papel pedagógico, incluindo-os entre os “vários âmbitos educativos” (n. 213), junto com a escola, a família, a catequese.

Entretanto, em diversos pontos, o papa critica fortemente a comunicação tecnoindustrial das grandes empresas informacionais. Por exemplo, quando denuncia que “muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe” dos excluídos (n. 49). Segundo a Laudato si', “essa falta de contato físico e de encontro (…) ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas” (ibid.). Na mesma linha, Francisco critica “o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social”, que obstaculizam a difusão de “um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza” (n. 215).

Em termos comunicacionais, a reflexão da Laudato si' se situa entre aquela “altíssima comunicação”, quase elevada a virtude teologal, e esta “baixeza comunicativa” da indústria cultural. Entretanto, perde-se de vista, em certo sentido, a riqueza precisamente ecológica da comunicação – que, por isso, inclui mas não se reduz aos grandes meios – como principal mediação da cultura, a partir da qual, justamente, o “protagonismo dos atores sociais” (n. 144), como aponta o papa, ganha impulso.

Acompanhando os processos comunicacionais de hoje, constata-se o surgimento de novas práticas sociais de construção de sentido em rede – quase “microbianas”, mas conectadas globalmente, superando limitações de tempo e espaço –, que vão além da indústria cultural e das grandes empresas tecnoinformacionais, produzindo outros circuitos simbólicos. As mobilizações sociais em rede que emergiram pelo globo nos últimos anos, as inter-relações mundiais de resistência ao sistema dominante, ou mesmo os coletivos de construção de sentido alternativos à indústria cultural também fazem parte de uma perspectiva ecológica da comunicação.

Contudo, justamente a revolução digital e o processo de conectivização social, como parte de uma conjuntura comunicacional complexa, passam ao largo dos argumentos da nova encíclica quando fala da comunicação. A ecologia comunicacional, para a Laudato si', muitas vezes, acaba se restringindo a um macroagente social, a indústria cultural, os “mass-media”, vistos quase como um dominador absoluto desse ambiente.

Embora a comunicação apareça pontilhada ao longo do texto, um parágrafo inteiro, o 47, é dedicado precisamente às “dinâmicas dos mass-media e do mundo digital”. O trecho faz parte da seção “Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social” do capítulo 1, intitulado “O que está acontecendo à nossa casa”. Merece ser lido na íntegra, para depois ser analisado mais especificamente.

A isto [aos “sintomas de uma verdadeira degradação social, de uma silenciosa ruptura dos vínculos de integração e comunhão social” abordados no parágrafo anterior] vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam onipresentes, não favorecem o desenvolvimento de uma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Nesse contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isso exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isso permite selecionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e, desse modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios atuais permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contato direto com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria nos surpreender o fato de, a par da oferta sufocante desses produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento.

Desde o início de tal parágrafo, fica sem explicitação a quais “dinâmicas dos mass-media e do mundo digital” o papa se refere especificamente e, sobretudo, por que a presença de tais meios não favoreceria o “desenvolvimento de uma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade”, especialmente no que se refere ao mundo digital.

Certamente, são valiosas as preocupações indicadas pelo pontífice, ainda mais levando-se em consideração o seu histórico pessoal de atuação pedagógica inaciana quando sacerdote. A busca de um “novo desenvolvimento cultural da humanidade” que não leve a uma “deterioração da sua riqueza mais profunda” é do interesse de todos. E, em um momento de “rapidación” (n. 18), como chama Francisco, muitos elementos culturais podem ser negligenciados e atropelados por tentativas de homogeneização globalizante dos grandes meios de comunicação dentro dos mesmos padrões e estilos de vida.

O mesmo vale para a constatação de que a verdadeira sabedoria “não se adquire com uma mera acumulação de dados”. Tal afirmação possui uma grande relevância no contexto atual. Sem dúvida, a mera coleção de dados não pressupõe conhecimento, muito menos sabedoria. É preciso todo um processo cognitivo de organização de tais dados, numa evolução crescente de conexões e inter-relações que tendam à harmonia criativa. E a “poluição mental”, de fato, prejudica a busca de clareza e organicidade na reflexão.

Mas chama a atenção por que as “dinâmicas do mundo digital” e os "meios atuais" aparecem principalmente no marco da “deterioração da qualidade de vida humana e degradação social”, como diz o entretítulo. Nesse âmbito, o parágrafo elenca uma longa lista de possibilidades pouco esperançosas:

  • a substituição das relações reais com os outros;
  • a seleção ou eliminação a nosso arbítrio das relações;
  • a geração de um novo tipo de emoções artificiais;
  • o impedimento de tomar contato direto com a complexidade da experiência pessoal;
  • o crescimento de uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais;
  • um nocivo isolamento.

As problemáticas apontadas pelo papa, certamente preocupantes, contudo, não dizem respeito apenas às tecnologias (sejam elas contemporâneas ou não), mas também a ações humanas e a processos sociais históricos que emergem com características próprias em cada ambiente e ecologia comunicacionais específicos. Em suma: não são uma novidade do século XXI.

Esses mesmos receios de Francisco poderiam ser afirmados ipsis litteris no século XV, com o surgimento dos primeiros livros manuais, portáteis, que davam mobilidade à prática da leitura, diferentemente dos grandes e pesados códices. À época, o medo também era de que os novos leitores individuais não teriam as capacidades necessárias para filtrar os conhecimentos, que passavam a estar facilmente acessíveis na própria casa, correndo o risco da saturação e da confusão. Daí a necessidade de censuras, índices, controles sobre o leitor, os livros e a leitura. Só os “esclarecidos” poderiam limpar o terreno do conhecimento para os “menos esclarecidos”.

Naquele tempo, também havia o medo de um “nocivo isolamento”, como afirma o papa, de um individualismo exacerbado, pois, de um processo coletivo e ritualístico como era, a leitura passava a ser uma prática individual, solitária, abscôndita, ao “alcance das mãos”, graças justamente aos manuais. Podia-se fugir, assim, do “diálogo e do encontro generoso entre as pessoas”, como diz Francisco, para se refugiar no íntimo da própria cela, tendo nas mãos um livro.

Mas a sociedade, em um processo longo e complexo, soube criar seus próprios dispositivos cognitivos, pedagógicos, educacionais para “harmonizar” – utilizando um conceito-chave para o papa – as diversas práticas e saberes, às vezes contraditórios, que entravam em ebulição com o surgimento do livro.

Hoje, estamos em plena fermentação da revolução digital: a internet pública e mundial como a conhecemos (a WWW) ainda não completou 10.000 dias de vida (C. Scolari). A sociedade em geral – e cada um de nós em particular – ainda está construindo e se apropriando dessa inovação tecnológica, pouco a pouco, “inventando-a” cotidianamente, muitas vezes artesanalmente.

Quanto à “mera acumulação de dados” a que o papa se refere, trata-se de um aspecto pedagógico de grande importância, e sabemos que, nisso, a internet pode ter um papel preocupante. Porque ter acesso a muitas informações não significa necessariamente saber relacioná-las e apropriar-se criativamente delas nas mais diversas situações da vida. É preciso educar para isso.

Contudo, dados e informações são elementos básicos para qualquer processo cognitivo – junto com outros diversos elementos de complexidade crescente, como experiências, intuições, relações, vivências. Sem dados e sem a sua acumulação organizada, o conhecimento torna-se inviável. Afinal, nem só de experiências vive o homem, mas também de informações, inclusive sobre aquela própria experiência – e a Wikipédia e o YouTube, por exemplo, nascem como expressão disso. Em um sentido mais político, a “acumulação de dados” sobre os governos ou instituições e a sua consequente divulgação pública em rede foram essenciais para uma mudança social, como demonstram as diversas “primaveras” e “wikileaks” espalhados pelo mundo nos últimos anos.

O papa também aponta para a “substituição das relações reais” mediante o uso de tecnologias nas relações sociais, que pode dar origem a um “novo tipo de emoções artificiais”, com a perda do “contato direto” com a experiência humana.

Há muito tempo, porém, os estudos comunicacionais abandonaram a perspectiva da substituição, optando por refletir sobre um processo de complexificação e articulação entre as experiências humanas diversamente mediadas. O online e o offline não se substituem como coisas opostas, mas se inter-retro-influenciam, articulando-se em um nível mais complexo de experiência, uma realidade “aumentada” e “diminuída” ao mesmo tempo, em aspectos diversos, mas nem por isso “não real” ou puramente “artificial”. As emoções vividas em um contato online são tão “artificiais” quanto “naturais” – e, vice-versa, as emoções vividas em um "contato direto" podem ser tão "naturais" quanto "artificiais". Pois assim se constituem todas as experiências humanas, visto que não estão dadas de antemão, definidas e delimitadas de uma só vez em um “éden” primordial, mas se constituem a partir dos condicionamentos de suas mediações históricas, sejam elas tecnológicas ou não.

A própria “natureza humana” que conhecemos hoje envolve inúmeras artificialidades que tomamos como óbvias e evidentes, por já se encontrarem historicamente instaladas na nossa cultura e sociedade – como o uso de roupas, por exemplo. A humanidade só existe na sua relação com as diversas animalidades e artificialidades com as quais o ser humano aprendeu a (co)existir – basta pensar que os períodos humanos primitivos são demarcados por tecnicidades como o domínio da pedra, do bronze, do ferro. Já a evolução comunicacional aponta justamente para a crescente assimilação de artificialidades mais inovadoras do que as anteriores para a percepção e expressão do mundo. Quanto mais novas e inovadoras, mais temor e receio nos causam, mas, no decorrer das práticas históricas de assimilação e apropriação social, poderão passar a fazer parte de um “fenótipo” humano mais complexo.

Isso está ligado ao receio papal de que as tecnologias poderiam bloquear um “contato direto” com a “complexidade da experiência humana”. Contudo, até que ponto um contato humano qualquer pode ser "direto" e “não mediado”? Um abraço seria um “contato direto”? Pensemos no contato que o próprio pontífice tem com a multidão da Praça de São Pedro. À primeira vista, não se trata de uma “comunicação mediada pela internet” – e, portanto, poderia ser considerada “direta”. Mas, mesmo aí, há inúmeras outras mediações: sociais (autoridade religiosa/pessoas comuns), religiosas (pontífice máximo/fiéis), físicas (papamóvel, câmeras, barreiras de proteção, vestes diferenciadas), organizacionais (regras e normas dos agentes de segurança, protocolos do evento) etc. Portanto, até que ponto tal contato é “direto”?

No fundo, a preocupação com a falta de contato com “a angústia, a trepidação, a alegria do outro” na cultura contemporânea não deveria se traduzir numa revolta contra as mediações maquínicas, numa espécie de "neoludismo". O problema é mais complexo – isto é, comunicacionalmente ecológico.

Do tecnocentrismo à ecologia comunicacional

Pensando a comunicação como um processo ecológico, é preciso compreender que todo ambiente comunicacional possui as mais diversas artificialidades e tecnicidades, as mais diversas mediações, os mais diversos agentes, gerando os mais diversos dispositivos de interação e relação, com especificidades próprias. Buscar uma suposta comunicação de “contato direto e natural”, sem quaisquer mediações, é buscar um paraíso perdido, é transformar as tecnologias em bodes expiatórios de problemas que não derivam delas, mas que, talvez, até possibilitaram a sua própria existência, como resposta a uma necessidade de contato e de relação. E, de certa forma, o problema é justamente este: pensar que as tecnologias são um problema cultural, ou pensar que as tecnologias poderão resolver os nossos problemas culturais.

O risco, em suma, é propor uma leitura apocalíptica e “tecnocêntrica” dos fenômenos comunicacionais contemporâneos, como se a cultura pudesse ser manipulada, dominada, determinada e direcionada (negativamente) pela existência e pela presença de tecnologias nas práticas sociais. Na reflexão comunicacional da Igreja, portanto, também é preciso superar um excesso “tecnocêntrico”, que acaba colocando “a razão técnica acima da realidade” cultural (n. 115).

E é aqui que a própria encíclica vem em nosso socorro. Ao criticar o antropocentrismo (ou o seu contrário, o biocentrismo), Francisco diz esperar “o desenvolvimento de uma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos” (n. 121). Cremos que outra falsa dialética é a que propõe uma divisão radical entre o humano e o tecnológico, como âmbitos opostos. Sendo um processo comunicacional, a cultura também deve ser entendida "especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo” (n. 143), envolvendo diversos agentes – humanos, sociais, tecnológicos, simbólicos – em uma ambiência complexa.

Como o próprio papa reconhece, “ao falar da relação do ser humano com as coisas [e, acrescentamos, com as tecnologias], impõe-se-nos a questão relativa ao sentido e finalidade da ação humana sobre a realidade” (n. 125). Afinal, o que estamos construindo ou queremos construir, como cultura, como sociedade, com as tecnologias que inventamos? Porque a comunicação também é uma atividade que implica uma “transformação do existente”, que pressupõe “uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo” (ibid.) – seja este “outro” um ser humano, uma construção simbólica ou um aparato tecnológico.

Em suma, as “dinâmicas do mundo digital” não estão inscritas de uma vez por todas nos aparatos tecnológicos, nem são determinadas pelos escritórios das grandes empresas tecnoinformacionais. A cultura, as suas diversas mediações comunicacionais, as suas práticas locais e os seus agentes microscópicos em rede também têm o seu papel na “ecologia comunicacional” e, por isso, podem (re)inventar as próprias tecnologias constantemente, dando-lhes novos usos e sentidos.

Criativamente, os “micróbios” da sociedade – os pequenos grupos e coletivos alternativos, os indivíduos resistentes – também são capazes de “inventar o possível” (M. Certeau), para além da tecnocracia dominante, criando e ocupando circuitos comunicacionais em que possam construir a sua liberdade e uma “cultura da vida compartilhada” (n. 213), na bela expressão de Francisco.

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