03 Abril 2020
Colaboração e concorrência definem a ciência e emergem com força na pandemia do novo coronavírus. Por um lado, estudos gigantescos como o Solidarity reúnem uma dúzia de países para encontrar terapias contra a COVID-19, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS). Por outro, centenas de ensaios clínicos testam em paralelo diversos medicamentos para reduzir o vírus SARS-CoV-2.
A reportagem é de Núria Jar, publicada por El Cultural, 01-04-2020. A tradução é do Cepat.
As investigações desses tratamentos serão as primeiras a dar resultados, que hoje são compartilhados abertamente - e quase diretamente - para toda a comunidade científica. Esse gesto, para o qual milhares de artigos podem ser consultados de forma gratuita, ainda não está generalizado no avanço do conhecimento. O acesso às descobertas da ciência de fronteira, que muitas revistas publicam diariamente, costuma ser pago.
Por outro lado, no campo da prevenção, levará meses até que cheguem as primeiras vacinas. No momento, existem pelo menos 44 candidatas nas primeiras fases de desenvolvimento, segundo o editorial da última edição da revista Science.
A opinião, assinada por Seth Berkley, diretor geral da corporação suíça Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVI, sigla em inglês), defende “o desenvolvimento de uma vacina global de maneira coordenada”.
Em vez disso, a imagem é diferente. Agências governamentais, companhias farmacêuticas e de biotecnologia e até organizações independentes financiam vários projetos de pesquisa. Somente a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI, sigla em inglês), fundada em Davos pelos governos da Noruega e Índia, a Fundação Bill e Melinda Gates, o Wellcome Trust e o Fórum Econômico Mundial impulsionam oito projetos de vacinas.
Berkley considera que “os esforços fragmentados atuais não serão suficientes” para alcançar uma estratégia preventiva que evite os contágios do novo coronavírus. Nesta linha, o especialista clama por um Projeto Manhattan, em uma versão de vacina.
A analogia aérea belicista nos transporta para a Segunda Guerra Mundial. Isso já foi dito recentemente pela chanceler alemã Angela Merkel, que desde então não se havia enfrentado um desafio que depende tanto da solidariedade coletiva.
Precisamente nos anos 1940, o medo de que os alemães fossem os primeiros a desenvolver bombas atômicas levou os Estados Unidos a liderar um projeto internacional para obter, em tempo recorde, as primeiras armas nucleares. Os ataques contra as populações japonesas de Hiroshima e Nagasaki demonstrariam o “êxito” daquela missão, liderada pelo físico nuclear Robert Oppenheimer, do Laboratório Nacional Los Alamos (Estados Unidos).
Mas voltemos à vacina. “Seria conveniente organizar-se, principalmente para não repetir o mesmo tipo de experimentos”, diz Luis Enjuanes, diretor do laboratório de coronavírus do Centro Nacional de Biotecnologia (CNB-CSIC), cuja equipe está desenvolvendo uma vacina contra o SARS-CoV-2. No entanto, o especialista alerta que “consórcios muito grandes são problemáticos e muito difíceis de gerenciar”.
O virologista resume assim: “Bem-vindo ao Projeto Manhattan para que os pesquisadores se coordenem sem matar, nem eliminar a iniciativa privada e a criatividade dos cientistas que trabalham nos diferentes laboratórios”.
Em Barcelona, três centros também trabalham conjuntamente para desenvolver uma vacina para prevenir a COVID-19. Um deles é a IrsiCaixa, onde Julià Blanco - que também é pesquisador do Instituto de Pesquisa Germans Trias (IGTP) - lidera o grupo de virologia e imunologia celular.
O especialista em vírus acredita que o editorial da Science é “muito preciso”, mas acrescenta uma ponderação: “Provavelmente, a primeira vacina que conseguirmos não será a melhor, nem a mais segura, nem a mais eficaz, porque será feita com as informações que tínhamos no início da pandemia”.
A primeira sequência genética para o novo coronavírus foi publicada em 12 de janeiro deste ano, apenas duas semanas depois que as autoridades de saúde de Wuhan, na China, informaram alguns casos de pneumonia por causa desconhecida. Naquele momento, nem o novo coronavírus, nem a doença que o causou tinham nome.
Conhecer em detalhes as características do vírus é chave para o desenvolvimento de candidatas a vacina. Existem diferentes estratégias, mas a ideia é projetá-las a partir de pequenos pedaços de seu material genético atenuado para provocar a resposta imunitária nas pessoas.
Apenas dois meses após conhecer o perfil genético do novo coronavírus, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, sigla em inglês) anunciaram que estavam iniciando um ensaio clínico da primeira vacina em humanos. “Um marco nunca antes alcançado”, enfatiza Blanco sobre o tempo recorde.
No dia seguinte, o Ministério da Defesa chinês respondeu com outro comunicado, no qual o país afirmou ter iniciado - também em pessoas - testes de uma vacina desenvolvida pela Academia Militar de Ciências.
Os anúncios das duas superpotências ressoavam na história mundial, que já havia passado por outros episódios semelhantes, como a corrida dos Estados Unidos e da União Soviética, durante a Guerra Fria, para se tornar os pioneiros da exploração espacial.
O último editorial da revista Science não menciona este capítulo da história contemporânea, embora fale de “uma corrida sem precedentes”. No entanto, seu autor se lembra de outras proezas da humanidade, como o Projeto Genoma Humano e o CERN: pesquisadores de todo o mundo fazendo ciência básica em seus laboratórios, coordenados internacionalmente.
Tanto Enjuanes como Blanco concordam que existem muitas estratégias possíveis para desenvolver vacinas, daí a importância de “ser muito seletivo” naquelas que seguirão seu curso experimental. A chave é decidir quais protótipos vão avançar.
No caso de outros vírus, como o HIV, existem iniciativas internacionais para coordenar esforços titânicos, como a obtenção de uma vacina para o vírus da Aids. Blanco, que também investiga o HIV, acredita que o mesmo poderia acontecer com a COVID-19. “Seria o mais lógico”, diz sobre a possível coordenação final por parte de uma instituição supranacional como a OMS, tal como também aponta Berkley em seu artigo.
Uma das vantagens na hora de projetar uma vacina contra o SARS-CoV-2 é que o novo coronavírus sofre pouca mutação, como pode ser visto no monitoramento do patógeno ao redor do mundo, em tempo real. Mas uma vacina não só requer o desenvolvimento do antígeno, a peça central da terapia preventiva, como também necessita de adjuvantes para melhorar as defesas do organismo e de um veículo que a apresente diante do sistema imunológico. “São vários aspectos complementares, todos contribuem para o sucesso de uma vacina”, ressalta Enjuanes.
Apesar da urgência em conseguir uma vacina, o processo de obtenção leva ao menos 18 meses. Os ensaios clínicos em humanos para testar sua segurança e eficácia são divididos em três capítulos, que são as fases I, II e III de qualquer investigação dessa natureza.
No entanto, a crise da saúde levou o processo a ser acelerado e algumas dessas etapas a serem puladas. Alguns dias atrás, a Universidade de Harvard (Estados Unidos) publicou um artigo no qual propunha infectar diretamente jovens saudáveis para testar a vacina mais rapidamente. “Isso nem me passou pela cabeça”, responde Enjuanes. Todo mundo que trabalha no desenvolvimento de vacinas sabe que primeiro é preciso desenvolvê-la e depois testá-la em modelos de animais experimentais”.
E continua com tom irônico: “Sugiro que o pesquisador de Harvard, que disse isso, que coloque seus filhos à disposição dos laboratórios para que testem. Se vê com tanta clareza, não terá nenhum problema, faça-a com seus filhos e com os filhos de seus filhos. Parece-nos que não é correto e nem prudente ir diretamente a testes em crianças pequenas, se não passaram por todos os procedimentos usuais anteriores, o que é chamado de testes pré-clínicos”.
Para decidir as vacinas que finalmente deverão ser testadas em humanos, outros fatores devem ser considerados. As candidatas devem funcionar e ter possibilidades de serem fabricadas em grande escala, algo essencial para garantir a acessibilidade a um preço reduzido.
“Estamos falando em imunizar toda a população mundial”, enfatiza Blanco. Por isso, considera tão importante o controle por parte de organizações como a OMS para poder negociar as condições da patente e sua produção sustentável.
De qualquer forma, o virologista acrescenta que certamente será necessária mais de uma vacina. “Nem todas funcionam da mesma maneira para todas as pessoas”, lembra. Por exemplo, os idosos - o grupo populacional de maior risco - responde muito pouco porque seu sistema imunológico envelhece.
Blanco continua sua explicação e dá um passo além. O cientista investiga para a vacina do coronavírus de hoje, mas já está pensando em estratégias parcialmente eficazes contra as “próximas pandemias”.
Enjuanes concorda. O veterano virologista aproveita a oportunidade para voltar os olhos aos seus 35 anos de estudo de diversos coronavírus e denuncia: “Toda a máquina trabalha quando há uma necessidade urgente e depois, quando desaparece, ninguém se lembra mais”. O SARS e o MERS também provocaram crises internacionais de saúde pública, mas o controle desses vírus foi retaliado com a recessão econômica e os fundos para suas pesquisas desapareceram, ressalta Blanco.
“Compreendemos, pois os recursos são limitados. Se o dinheiro é dado para um vírus, não há dinheiro para outro”, reflete Enjuanes. “Mas até a OMS disse que, quando superarmos essa pandemia, o que certamente vai acontecer, não podemos esquecer de continuar com as pesquisas em andamento, porque a experiência demostra que a cada 8 ou 10 anos surge um coronavírus mortal para os seres humanos.
Veremos se, desta vez, durante a próxima crise econômica, os Estados de todo o planeta priorizarão a investigação de vacinas, para estarem preparados contra os futuros vírus que ainda vamos viver.
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Colaboração frente à concorrência. Quem vencerá a corrida pela vacina contra o coronavírus? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU