Logística das pandemias. Artigo de Laurent de Sutter

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27 Março 2020

"Toda a história das epidemias repousa sobre algo como uma comunidade de destino: não há vírus senão onde os seres humanos se organizaram para viver em grupos mais importantes que punhados de indivíduos", escreve Laurent de Sutter. A tradução é de Murilo Duarte Costa Corrêa.

Laurent de Sutter, é filósofo belga francófano, professor de Teoria do Direito na Vrije Universiteit Brussel - VUB, dirige a coleção Perspectives critiques da Presses universitaires de France - PUF e a coleção Theory Redux da Polity Press de Londres. Também é membro do Conselho científico do Collège international de philosophie.

 

Eis o artigo.

 

A) Peste

 

O agente Smith estava exasperado. Fazia então muitas horas que ele interrogava Morpheus de forma brutal, sem conseguir quebrá-lo. Ele jamais esteve tão perto do objetivo de sua missão: arrancar de um ser humano o saber sobre o meio de chegar a Zion, a última cidade resistente. No entanto, ele estava a ponto de cumpri-la. Mas a vontade de Morpheus permanecia intacta, mantida pela convicção de que ele encontrara o Eleito - aquele que permitiria a Zion sublevar-se contra o reino das máquinas representadas por Smith. Em um gesto inesperado, o agente decidiu endereçar-se ao capitão rebelde de forma direta, privada – e desconectara seu fone de ouvido da Matrix.

“Adoraria compartilhar uma revelação a que cheguei durante o tempo que passei aqui”, diz-lhe depois de acomodar-se sobre a poltrona. “Ela me acometeu tão logo eu procurei classificar a sua espécie. Percebi que vocês não são verdadeiramente mamíferos. Todo mamífero, neste planeta, desenvolve de forma instintiva um equilíbrio natural com seu ambiente - mas não vocês, os humanos. Vocês se instalam em um lugar e se multiplicam, e se multiplicam, até esgotar todos os recursos naturais. A única forma que vocês têm se sobreviver é dispersar-se para outro lugar.

Há um outro tipo de organismo nesse planeta que adota esse comportamento. Sabe qual? O vírus. Os seres humanos são uma doença, um câncer desse planeta. Vocês são uma peste. E nós somos o remédio”. Foi um monólogo agressivo e implacável, que pretendia testemunhar uma lucidez superior – e desmoralizar seu interlocutor. Claro, era de fato possível dispensá-lo com um simples gesto, como faríamos com um discurso esclarecido demais, ou com uma caricatura como a que se esboça de vez em quando na boca dos grandes misantropos.

No entanto, o agente Smith não estava de todo errado. Se nós deixássemos de lado a retórica do desprezo, havia algo de verdadeiro na descrição de uma humanidade que possuía mais de um traço em comum com os modos de operação de um vírus. Dois pontos de seu discurso, em particular, faziam eco à verdade: aquele que dizia que o que caracteriza os seres humanos e os vírus seria a sua tendência ao deslocamento; e aquele de acordo com o qual essa tendência estaria ligada à gestão das consequências de sua multiplicação selvagem – isto é, de sua quantidade. Uma palavra sintetizaria esses dois pontos: “logística”.

 

B) Coabitação

 

De fato, toda a história das epidemias repousa sobre algo como uma comunidade de destino: não há vírus senão onde os seres humanos se organizaram para viver em grupos mais importantes que punhados de indivíduos. A partir disso que se continua a chamar de “revolução neolítica” (que remonta a cerca de 9.000 a 7.000 a.C.), novas técnicas de exploração das terras mais férteis localizadas ao redor de certo número de bacias hidrológicas, como o delta do Tigre e do Eufrates, permitiram a criação das primeiras instalações sedentárias. Inicialmente compostas por algumas famílias, elas vão crescer com o tempo e terminar por formar os primeiros povoados, as primeiras vilas – os primeiros espaços de coabitação em massa da história.

Ora, essa coabitação não implicava somente os humanos: ela implicava também todas as criaturas que acompanhavam sua sedentarização em nome das exigências de alimento, equipamento etc. As comunidades neolíticas eram comunidades compostas tanto de não-humanos, animais e vegetais, como de humanos – talvez até mesmo de populações microscópicas vivendo em simbiose com eles: insetos diversos, micro-organismos, bactérias etc.

A organização neolítica das comunidades constituiu a primeira experimentação de coabitação em grande escala entre espécies, e mesmo entre regimes, que não eram necessariamente feitos para viver juntos – ou, em todo caso, para viver juntos de maneira pacífica. De forma sintomática, as primeiras epidemias da história remontam também a esse período. É a partir do neolítico que vemos aparecer os rastros de desaparecimentos repentinos de cidades inteiras. Desaparecimentos cuja única explicação possível é a de que elas se devem a ataques brutais de doenças.

De fato, a estreita coabitação com os não-humanos, assim como com suas populações parasitárias, favoreceu os intercâmbios entre espécies, tanto para o melhor quanto para o pior, de modo que se descobre a afinidade de certas doenças animais pelo meio biológico humano. Muito cedo, então, o fato de que os homens descobriram técnicas que permitiam assegurar um modo de vida mais estável, e uma exploração mais eficaz do ambiente, conduziriam paradoxalmente ao reforço de outros tipos de ameaças à sobrevivência: os vírus, que também se beneficiavam dos resultados das inovações humanas.

 

C) Circulação

 

Isso não é tudo. Ao lado da instalação de uma nova ecologia, cujos efeitos secundários não eram controlados por aqueles que seriam seus principais beneficiários, as técnicas de exploração do mundo desenvolvidas a partir do neolítico favoreceram a sua difusão. Desde que certos recursos estivessem presentes (essencialmente, a água), era possível aclimatar as tecnologias e as estratégias desenvolvidas nas grandes bacias férteis. Para tanto, bastaria adaptar as redes logísticas (de início, as primeiras estradas, bem como os primeiros sistemas de irrigação e de canalização de água) ao contexto local.

Desde sempre, os humanos foram nômades: eles conheceram melhor que ninguém a importância da circulação – de sorte que no momento em que eles decidiram instalar-se em um lugar específico, eles se contentaram em reverter o movimento dele. Ao invés de passar seu tempo a se deslocar, eles organizaram progressivamente os meios que possibilitariam fazer com que as coisas chegassem a eles – seja a água ou, mais tarde, cereais, gado, trabalhadores, e assim por diante.

Os primeiros grupos humanos se transformaram rapidamente em atratores logísticos – em nós mais ou menos importantes em uma rede de circulação de seres e de coisas sem os quais a vida local ficaria limitada. O crescimento dos grupos passa a se condicionar pela extensão da posse sobre seu ambiente e, portanto, pela capacidade de assenhorear-se à distância tudo o que necessitam para assegurar sua subsistência – sem falar de seu desenvolvimento. Para poder viver aqui, era preciso que houvesse também a vida lá, e tanto uma como a outra pudessem se comunicar de sorte a se sustentarem reciprocamente.

Como era de se esperar, essa extensão progressiva da gestão da vida não foi isenta de consequências sobre a forma como as populações parasitas de seres humanos organizaram seu lugar. Com as matérias-primas, o gado ou os próprios comerciantes, as criaturas que faziam do microcosmo neolítico sua residência acompanharam também os meandros dos deslocamentos geográficos. Se as epidemias nasceram da concentração interespecífica organizada pelos seres humanos, as pandemias apareceram com a disseminação daquela concentração por toda a superfície do planeta. Elas foram a marca do sucesso em sua colonização.

 

D) Modernidade

 

É preciso dizê-lo: não há nada de novo nas pandemias contemporâneas. Elas acompanharam a história da humanidade como sua sombra projetada – ou melhor: como a sombra projetada dos sucessos, mais ou menos brilhantes e mais ou menos inconscientes, que ela encontrou no caminho de sua própria difusão. Seria mesmo possível traçar um tipo de linha das pandemias, que serviria de contraponto à narração tradicional das etapas consideradas como as mais decisivas da conquista humana do planeta. As grandes pestes que afetaram todo o mundo desde a época de Antonin le Pieux, no século II d. C., testemunham um estado específico do desenvolvimento logístico das civilizações que elas devastaram.

As epidemias de malária, de febre amarela, de tifo etc., que varreram o subcontinente norte-americano depois da chegada dos europeus, marcaram o fato de que é impossível pensar as doenças fora da fábrica do mundo humano. Ao fechar o globo sobre ele mesmo, os exploradores também contribuíram para ondular as vias de circulação das criaturas que os acompanhavam – quer se tratasse de porcos, de coelhos e de cavalos, quer se tratasse de toda uma série de plantas, como a cana-de-açúcar, ou então das bactérias e dos vírus. Desse ponto de vista, as pandemias da idade industrial não mudaram grande coisa: elas se contentaram em se desdobrar em um contexto em que as conexões logísticas eram mais numerosas e onde a concentração humana havia chegado a um ponto sem volta. Com a modernidade, as pandemias tornavam-se verdadeiramente pandemias, no sentido em que já não havia canto algum do globo que pudesse exceptuar-se da rede de conexões que permite a circulação de coisas e de seres.

Mas, do ponto de vista da sua natureza, o desenvolvimento industrial e a globalização não transformaram as condições da coabitação entre os seres humanos e os seus parasitas; as pandemias estão inscritas no fato de que os humanos não podem viver sós – e que certas formas de vida aproveitam dessa impossibilidade da solidão para poder existir também. Por toda a parte em que a logística permite a multiplicação de seres humanos, haverá criaturas suscetíveis de se aproveitar disso; e quanto mais essa logística torne possível a sobrevivência de um grande número de indivíduos, mais eles serão suscetíveis de abrigar aquilo mesmo que é bem capaz de destruí-los.

 

E) Mundo

 

Uma vez que Martin Heidegger fizera seu célebre comentário sugerindo que os animais seriam “pobres em mundo”, ele cometia dois erros: não apenas os animais têm um mundo, mas esse mundo, para uma grande parte deles, não é outro senão aquele que nós, humanos, fabricamos. Eis aí uma grande lição das discussões relativas à questão de saber se nós ingressamos no Antropoceno ou não: repentinamente, descobrimos que um mundo jamais é dado, mas é sempre feito. Todas as atividades às quais se entregam os seres humanos não têm outro fim senão a constituição de algo como um mundo, um espaço em que se possa viver, na superfície de um planeta no qual não estava dado que ele fosse habitável.

É justo que um mundo tal como este não se construa em total solidão. Para que haja mundo, requer-se a colaboração de um número considerável de seres, alguns agindo de modo mais ou menos convivial, e outros, secretamente. Falar de logística é, pois, falar do conjunto de condições em nome das quais existe um mundo e, portanto, também das consequências que a aplicação dessas condições à vida dos homens implica em termos de convidados indesejáveis.

Nós não estamos sós no mundo; o fato mesmo de que haja um mundo implica a coabitação com miríades de outros seres, desde os fragmentos de rochas escavadas nas minas até os micro-organismos que sintetizam o oxigênio ou que filtram os raios solares na atmosfera. A força exorbitante dos seres humanos, se existe uma, não consiste em outra, senão impor uma nota dominante, uma regra de ordem, ao mundo no qual ela embarcou os outros – e não sem que estes adaptem, por sua vez, aquele mundo a seu modo. É um fato de toda coabitação alterar aquilo com que se coabita – contribuir para modificar o design do mundo fabricado por aqueles a cuja casa se convidam.

No caso das pandemias, essa alteração pode ser mortal para uma série de indivíduos; para os outros, ela constitui mais uma maneira de tirar as últimas consequências das facilidades disponíveis – até que, por uma reação de defesa, estas se obliterem. Seria estúpido acreditar que nós podemos impedi-lo, que nós seríamos capazes de decidir o acesso ao mundo da mesma forma como pretendemos decidir sobre o acesso de tal ou qual categoria de gente no território de uma ou outra nação. Em um mundo, fechar uma porta é sempre abrir uma janela.

 

F) Culpa

 

Uma conclusão essencial a ser tirada de tudo isso – e uma conclusão radicalmente oposta àquela que o agente Smith quisera dar a entender a Morpheus a fim de desmoralizá-lo. Esta conclusão seria a de que na história das pandemias, e em particular em sua vertente contemporânea, seria impossível designar os culpados, os responsáveis, os indivíduos a censurar. E, no entanto, os candidatos são numerosos: do capitalismo industrial à gestão neoliberal das populações, passando pelo Ocidente colonizador ou pela Psyche antropocentrista dos humanos – eles não deixaram de receber a atenção de críticos de todos os horizontes. Mas não há nada de mais ridículo, de mais absurdo, que esse reflexo crítico.

Da mesma forma que um vírus não possui qualquer razão moral em vitimar o indivíduo sobre o qual se abate, ninguém é responsável pelo estado do mundo para cuja construção todos contribuímos – para nosso maior benefício, e para benefício de uma série de outras espécies. Em verdade, o fato mesmo de que o mundo seja fabricado como resultado de nossos cuidados tão ciumentos quanto incompetentes deveria suscitar em nós um reflexo paradoxal de solidariedade em relação aos passageiros clandestinos da vida que nós mesmos organizamos.

No mundo tal como nós o concebemos, tornou-se difícil distinguir o que é o vírus e o que não é, o que é parasita e o que não é, aquilo que é ou não sustentado pela infraestrutura logística do mundo. Se é inegável que um grande número de parâmetros relativos à concentração e à extensão logística da humanidade sobre o planeta Terra poderiam ser melhor geridos, essa gestão não é uma questão de projeto político ou econômico. Ela é uma questão de projeto cosmológico – talvez até um problema de cosmologística.

As estradas, canais, pontes, trilhos, túneis, cabos, conduítes, tubulações, que recobrem o planeta com suas redes, são por definição sistemas de circulação sem os quais não haveria vida alguma – falando propriamente, eles são a vida, porque eles são o mundo. Todo o problema, para aqueles que gostariam de controlar ainda mais o fluxos de indesejáveis, consiste em começar a dimensionar a que ponto – e com mais razão, porque não importa qual a forma do discurso ou da ideologia – é dos fluxos de indesejáveis que nós, em conjunto, dependemos. Jamais poderemos nos desfazer desse conjunto feito de fronteiras fluidas – mas podemos, ao menos, compreender a sua razão de ser.

 

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