“A recessão em 2020 é inexorável e a palavra-chave para as pessoas é sobrevivência”

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25 Março 2020

A pandemia do Coronavírus se alastra e o Brasil tenta se colocar à altura dos desafios impostos por esse evento excepcional, ainda que tenha um governo capaz de ser um próprio vetor de propagação do vírus e que atua dia e noite para bloquear a percepção geral sobre a complexidade do problema. De todo modo, trata-se de um acontecimento que pode ter proporções humanitárias sem precedentes e exigirá toda a mobilização de esforços possível. É isso que explica José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em demografia, entrevistado pelo Correio.

A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 20-03-2020.

“É necessário parar tudo agora. Não existe vacina para o Covid-19. Mesmo que o coronavírus seja mais letal entre os idosos, fechar escolas e universidades é importante para evitar que os jovens se transformem em vetores de transmissão. É correto o poder público colocar o interesse coletivo acima do egoísmo individual. Outra medida urgente é fazer os testes no maior número de pessoas (evitando a subenumeração) e ter um bom monitoramento das pessoas com resultado positivo. É preciso evitar a explosão do crescimento exponencial e “achatar a curva” para não sobrecarregar o sistema de saúde e reduzir a taxa de mortalidade”.

Ao longo da entrevista, o estudioso faz projeções alarmantes sobre o potencial de infectados no Brasil e no mundo. Estas, por mais assustadoras que sejam, estão apenas seguindo os padrões matemáticos sugeridos por infectologistas globalmente respaldados. Sobre a ação governamental, José Eustáquio elogia os esforços do Ministério da Saúde, mas é taxativo em afirmar o papel temerário do governo brasileiro, em especial daquele que foi ungido a “mito”.

“O Presidente da República do Brasil pode ser considerado o campeão mundial de insensibilidade e de incompetência. Não tenho conhecimento de um Chefe de Estado tão atrapalhado e pernóstico. Além das declarações estapafúrdias, a participação nas modestas manifestações de rua do dia 15 de março foi de uma irresponsabilidade sem igual. Mas, apesar disto, o Ministério da Saúde tem tomado medidas corretas, embora insuficientes para evitar o crescimento exponencial da pandemia no Brasil”.

A respeito da economia, José Eustáquio, que já foi Coordenador Estadual do Sistema Nacional de Emprego (SINE) na Secretaria de Estado do Trabalho de Minas Gerais, com passagens por IBGE e Associação Brasileira de Estudos Populacionais, diz que já estamos diante de um ano perdido, motivo inclusive para conformismo e concentração de esforços na autopreservação das pessoas. Para que as semelhanças com a crise econômica de 1929 e suas consequências fiquem apenas nos números das finanças.

“O índice da Bolsa de Nova York chegou a cair mais de 30% e atingiu o nível do período final do governo Barack Obama. Ou seja, todos os ganhos do mercado de capital da era Trump foram eliminados. Na Europa as perdas são ainda maiores. O preço do barril de petróleo voltou para os níveis de 2004, estando mais baixo do que na crise de 2008/09. Na verdade, a economia internacional se recuperou de forma frágil da crise de 2008/09, usando e abusando do recurso do endividamento, do consumo excessivo, dos ativos superestimados e da crescente desigualdade social. Tudo isto alimentou uma bomba-relógio pronta para explodir”.

José Eustáquio Diniz Alves. (Foto: EcoDebate/Divulgação)

Eis a entrevista.

Primeiramente, qual o grau de penetração você projeta que a pandemia do Coronavírus pode atingir no Brasil e no mundo?

A situação é muito grave. Mas é difícil fazer uma projeção de longo prazo tanto para o Brasil quanto para o mundo, pois isto depende da efetividade das medidas de controle sanitário. Alguns países conseguiram evitar um crescimento descontrolado da doença. A China - que apresentou um crescimento exponencial nos meses de janeiro e fevereiro – conseguiu estabilizar e diminuir a expansão do Coronavírus a partir de março de 2020. A Coreia do Sul que teve um surto em fevereiro conseguiu controlar a expansão e manteve sob controle o número de mortes, apresentando uma letalidade muito baixa. O Japão também evitou taxas explosivas.

Por outro lado, a Itália e o Irã apresentaram um crescimento exponencial do número de casos e do número de mortes. Nestes dois países o número de casos passou de 1 para 10 mil em cerca de 25 dias (aumento de mais de 40% ao dia), com uma taxa de letalidade acima de 5%. No dia 18 de março a Itália, mesmo com o país em quarentena, alcançou a metade do número de casos da China, com um maior número de óbitos. Uma calamidade.

Na Alemanha, Espanha e Estados Unidos o tempo de passagem de 1 para 10 mil casos foi de cerca de 31 dias (mais de 30% ao dia) e com uma taxa de letalidade um pouco mais baixa. O Brasil está caminhando para uma situação parecida com estes três últimos países.

Entre os cenários possíveis, a tabela abaixo mostra uma projeção mundial que considera um crescimento dos casos de infecção e de mortes de 7% ao dia até 30 de abril e de 3% nos meses de maio e junho. Para o Brasil, um crescimento de 29% ao dia em março, 10% ao dia em abril e de 3% ao dia em maio e junho de 2020.

Como se vê na tabela, as infecções mundiais que estavam em 197 mil casos em 17 de março devem passar para 3,9 milhões em 30 de abril, para 10,3 milhões de casos em 31 de maio e para quase 25 milhões no final de junho. No mundo, as mortes por conta do Covid-19 que estavam em 7,9 mil óbitos devem ultrapassar 1 milhão de óbitos em 30 de junho de 2020.

Número de casos e de mortes de Covid-19 no mundo e no Brasil: março a junho de 2020

Projeções próprias com base nos dados do site WorldOmeteres.

O Brasil tinha 290 casos de Coronavírus e uma morte no dia 17 de março. Na noite do dia 18 de março o balanço do Ministério da Saúde indicava 428 infectados e 4 mortes, enquanto as secretarias estaduais de Saúde divulgaram 529 casos confirmados, em 20 estados e no Distrito Federal. O crescimento do número de casos tem sido de 35% ao dia no mês de março. A marca de 10 mil casos deve ser atingida em 31 de março e o significativo limiar de 1 milhão de casos pode ser batido antes de 30 de junho, com cerca de 40 mil óbitos.

No resto do mundo, dez países concentram atualmente a maioria dos casos e das mortes, mas o crescimento da pandemia de Coronavírus se amplia e se acelera, atingindo cerca de 180 países e territórios. Trata-se de uma experiência traumática coletiva, sem fronteiras e globalizada. Por conta disto a curva exponencial deve prevalecer, pelo menos, nos próximos quatro meses, com o número de pessoas infectadas podendo bater em 1 bilhão de casos até agosto ou setembro de 2020.

É claro que estes números podem ser menores ou maiores, dependendo do esforço realizado e da eficácia das políticas públicas adotadas. No dia 19 de março, globalmente, os casos fatais chegaram a 10 mil óbitos. A tabela acima fornece um dos cenários possíveis da dimensão do quadro da pandemia. Serão centenas de milhões de pessoas contaminadas no mundo, com centenas de milhares de mortes só no primeiro semestre. E se a situação não for controlada poderá ficar muito mais grave e assustadora no segundo semestre do ano.

Quais as medidas gerais mais urgentes?

É necessário parar tudo agora. Não existe vacina para o Covid-19. A única forma de evitar o contágio é por meio do isolamento das pessoas e da diminuição do contato físico, embora o contato social possa permanecer de várias outras formas. Neste sentido, proibir as aglomerações é essencial. O Brasil deu “sorte” de a pandemia vir depois do carnaval. Indubitavelmente, é correto esvaziar os estádios de futebol, shows de música, cinemas, shopping, etc.

Mesmo que o coronavírus seja mais letal entre os idosos, fechar escolas e universidades é importante para evitar que os jovens se transformem em vetores de transmissão. É correto o poder público colocar o interesse coletivo acima do egoísmo individual. Outra medida urgente é fazer os testes no maior número de pessoas (evitando a subenumeração) e ter um bom monitoramento das pessoas com resultado positivo. É preciso evitar a explosão do crescimento exponencial e “achatar a curva” para não sobrecarregar o sistema de saúde e reduzir a taxa de mortalidade.

O que pensa das respostas do governo até aqui?

O Presidente da República do Brasil pode ser considerado o campeão mundial de insensibilidade e de incompetência. Não tenho conhecimento de um Chefe de Estado tão atrapalhado e pernóstico. Além das declarações estapafúrdias, a participação nas modestas manifestações de rua do dia 15 de março foi de uma irresponsabilidade sem igual. Mas, apesar disto, o Ministério da Saúde tem tomado medidas corretas, embora insuficientes para evitar o crescimento exponencial da pandemia no Brasil.

Parece que os erros e os escárnios vindos do Palácio do Planalto chegaram ao limite do tolerável e as manifestações espontâneas da terça-feira à noite são um ponto de inflexão. O panelaço da noite de 17 de março – com gritos de “Fora Bolsonaro” - foi apenas o começo, pois se repetiu e se ampliou com muito mais força no dia 18 de março. Parece o começo do fim da linha para o atual desgoverno.

Considera que governos estaduais e municipais já estão trabalhando sem contar com a colaboração de Brasília?

O Brasil é muito grande e costuma adotar medidas dissonantes entre as diversas esferas da Federação. Mas o Ministério da Saúde montou um sítio sobre o “Coronavírus” (para acessar clique aqui) que tem sido muito útil e tem ajudado os municípios e os estados. Todavia, é preciso fazer muito mais para enfrentar o estado de calamidade e ter uma melhor coordenação.

Como vê o Brasil em comparação à maioria dos países no combate à pandemia?

O Brasil está muito aquém do que foi feito no Japão, Coreia do Sul, Singapura e outros países do leste asiático. Nestes países houve um controle excelente do fluxo de entrada de pessoas nas fronteiras (com monitoramento dos indivíduos que apresentavam algum sintoma) e, principalmente, houve uma organização de todo o sistema de saúde para diagnosticar a presença da Covid-19 nos habitantes de áreas de maior risco no país.

Infelizmente, o que se vislumbra no Brasil não são soluções consensuadas e medidas universais de saúde e prevenção, mas provavelmente um quadro pessimista de anomia social, com desabastecimento, saques, arrastões e rebeliões nos presídios.

Em relação ao aspecto econômico, não seria o caso de considerar que os prejuízos já são inevitáveis em qualquer cenário, de modo que é melhor nos conformarmos com uma parada imediata da maior parte das atividades?

A pandemia de coronavírus provocou um pandemônio na economia internacional. O índice da Bolsa de Nova York chegou a cair mais de 30% e atingiu o nível do período final do governo Barack Obama. Ou seja, todos os ganhos do mercado de capital da era Trump foram eliminados. Na Europa as perdas são ainda maiores. O preço do barril de petróleo voltou para os níveis de 2004, estando mais baixo do que na crise de 2008/09. Os preços das commodities despencaram, o que vai impactar o Brasil que vem passando por uma reprimarização da sua pauta de exportações. Nestas semanas de caos, o Brasil apresentou uma queda superior na Bolsa de Valores, além de uma maior desvalorização da moeda nacional.

Na verdade, a economia internacional se recuperou de forma frágil da crise de 2008/09, usando e abusando do recurso do endividamento, do consumo excessivo, dos ativos superestimados e da crescente desigualdade social. Tudo isto alimentou uma bomba-relógio pronta para explodir. A pandemia de coronavírus foi a centelha que acendeu o pavio.

Como vê a discussão sobre a derrubada do teto de gastos a partir deste evento excepcional?

Toda a discussão sobre o teto de gastos ficou pequena diante da dimensão da crise na saúde pública e na saúde da economia. Do ponto de vista do estado de calamidade pública, o disposto do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) flexibiliza a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e permite ampliar os gastos com saúde. Em relação aos fundamentos da economia, o Brasil é uma “potência submergente” que vive a sua segunda década perdida, possui uma grave crise fiscal e tem um futuro cada vez mais incerto. Assim como o IBGE adiou o censo 2020 e repassou o dinheiro para o Ministério da Saúde, o Congresso deveria repassar os recursos do Fundo Eleitoral para o combate ao Covid-19. Neste momento de emergência é hora de repassar privilégios – como o auxílio moradia do Judiciário – para o Sistema Único de Saúde.

Não há espaço nesta entrevista para analisar com profundidade as medidas econômicas que estão sendo tomadas no Brasil e no mundo. Evidentemente, o pacote de medidas econômicas neoliberais do ministro Paulo Guedes não é capaz de evitar uma grande crise, mas, a oposição precisa ir além do “keynesianismo de botequim” e da repetição do mantra do aumento do gasto público. Ocorre que o país já tinha taxas de investimento muito baixas e taxas de desemprego muito altas e vai ser fortemente impactado em 2020. O mercado está perdido e desesperado. Mas é uma ilusão achar que o Estado será capaz de manter suas iniquidades e ainda solucionar uma crise deste tamanho. Talvez o que se possa fazer são políticas de redução de danos e proteção dos mais vulneráveis.

A grande dificuldade da crise atual é que as medidas monetárias e fiscais tendem a perder eficiência e eficácia diante da quarentena geral e da paralisação das atividades econômicas. A redução da taxa de juros é importante, mas tende a ter um efeito mínimo em um quadro de “armadilha da liquidez”. Creio que a recessão nacional e internacional no primeiro semestre de 2020 é um evento inexorável e vai trazer muito sofrimento, desespero e conflitos sociais.

Já há pessoas falando, na pior das hipóteses, em uma depressão econômica do nível da crise de 1929 e um número de mortes do nível do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O certo é que os infortúnios serão severos e prolongados e os cenários podem ser bastante catastróficos.

O que as pessoas devem fazer do ponto de vista individual?

A palavra-chave para as pessoas é sobrevivência. Todo mundo precisa se cuidar, mantendo o equilíbrio físico e mental, além de tomar as medidas corretas de assepsia para evitar expor os outros e se expor aos fatores de risco de contágio. Mas cerca da metade da população brasileira não possui esgotamento sanitário e terá dificuldade para se proteger da pandemia.

Quanto à sobrevivência econômica, o cenário pode até ser mais moderado para quem tem patrimônio, renda fixa e estabilidade no emprego. Mas o Brasil – que é um dos países mais desiguais do mundo – possui cerca de 25 milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas, além de um contingente que nem entra nas estatísticas da força de trabalho.

O quadro é desalentador. O desarranjo econômico, social e psicológico poderá ser maior do que os efeitos diretos da Covid-19 nos próximos meses, transformando 2020 em um ano ímpar.

 

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