O fracasso da esquerda e da direita e a urgência de uma agenda que coloque o meio ambiente como elemento estruturante. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

Diante do fracasso político, das “picuinhas”, do “narcisismo das lideranças” e das “seitas apaixonadas”, é preciso superar o nacional-desenvolvimentismo, sugere o pesquisador

Foto: Divulgação

Por: Patricia Fachin | 10 Julho 2020

A principal estratégia do governo Bolsonaro é “destruir todos os freios civilizatórios construídos ao longo dos últimos quarenta anos sob o pretexto da ‘liberdade’” e essa postura se manifesta na tentativa de “autodestruir” todas as instituições, na caça ao heterogêneo, à diferença e na imposição de um “padrão unidimensional da existência”, diz Moysés Pinto Neto à IHU On-Line. “O projeto não é impor verticalmente um programa, mas liberar – com a falência das infraestruturas estatais – para que mediadores ‘tradicionais’ ocupem este espaço”, afirma.

Nesta entrevista, concedida por e-mail, o pesquisador reflete sobre os “fracassos” políticos que conduziram o Brasil à atual conjuntura e sobre as dificuldades em torno da formação de uma frente ampla em oposição ao governo. “O primeiro fracasso é, sem dúvida, do projeto da geração que fez a Constituição e encontrou no PT seu principal alicerce” e, mais recentemente, menciona, as estratégias conjunturais do petismo desde 2014 “têm nos levado irreversivelmente ao atoleiro em que estamos”.

As críticas de Moysés Pinto Neto não se restringem somente à esquerda. A direita, observa, também “fracassou vertiginosamente”, “virou refém desta célula nazifascista do bolsonarismo” e “não conseguiu escapar da imagem caricata, nefasta e mesquinha que a esquerda sempre lhe atribuiu”. Como consequência, adverte, “a tentativa de formar um ‘conservadorismo’ brasileiro terminou no olavismo, a formação para o liberalismo desaguou no coach chinfrim que é Paulo Guedes. Um fracasso total”. 

Na avaliação dele, derrotar a extrema direita no campo político é uma tarefa mais urgente do que a construção de um pacto nacional em torno das reformas estruturais. “A virada começa derrotando nas urnas a extrema direita; depois, com o terreno menos acidentado, podemos voltar aos numerosos debates e disputas que ficaram pendentes entre nós desde pelo menos 2013”, defende. Entretanto, para além das “picuinhas”, do “narcisismo das lideranças” e das “seitas apaixonadas”, lamenta, “o único projeto à mão segue sendo o nacional-desenvolvimentismo levado a cabo no imaginário trabalhista e depois adotado pelo petismo”. Ao contrário desse modelo, afirma, “queremos uma agenda que coloque o meio ambiente como elemento estruturante, pois sem mundo não há economia, política, cultura, família, saúde”.

Moysés Pinto Neto (Foto: João Flores da Cunha)

Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, com estágio-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy (Kinston, Inglaterra). Leciona no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra e no curso de Direito da Ulbra Canoas.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Que avaliação geral faz do primeiro ano e meio do governo Bolsonaro? 

Moysés Pinto Neto - Uma catástrofe total e irrestrita. Um governo que cada vez tem deixado menos ambíguo seu caráter fascista, mesmo que fascismo não signifique exatamente o modelo de Mussolini, na Itália, mas aquilo que Escola de Frankfurt, pós-estruturalismo e psicologia social deixaram evidente: uma caça ao heterogêneo, à diferença, e a tentativa de impor um padrão unidimensional da existência baseado no mercado e no consumo de modo autoritário e sob a chancela cúmplice do Estado. Se anteriormente o fascismo se manifestou pela concentração de poderes no líder, pela verticalização e publicização das relações no Estado e o aparelhamento dos mediadores, hoje o quadro pós-neoliberal é completamente diferente. É na autodestruição de todas as instituições por meio de uma estratégia de ocupação e autocancelamento dos cargos que está o perigo, como é o caso de Damares, Salles, Weintraub e demais "anti-ministros". Todos eles apenas querem destruir todos os freios civilizatórios construídos ao longo dos últimos quarenta anos sob o pretexto da "liberdade". Liberdade, no caso, é a liberação sem freios de forças destrutivas cujo sucesso significa o extermínio de outros modos de existência. 

IHU On-Line - Quais foram os fracassos políticos que nos conduziram ao momento que vivemos hoje no Brasil? 

Moysés Pinto Neto - O primeiro fracasso é, sem dúvida, do projeto da geração que fez a Constituição e encontrou no PT seu principal alicerce. Não falo de fracasso em termos acusatórios: o fracasso, de certa forma, é um fracasso para todos. O projeto de fazer o Brasil surfar tardiamente na social-democracia, construindo uma grande classe média, que faria o país menos indecente nitidamente, foi abalroado em prol do legado neoescravagista e da subjetivação do "cada um por si". Se é verdade que o "jeitinho brasileiro" pode significar uma homogeneização moralista e superficial que encontra os problemas estruturais e históricos da nossa sociedade, muitas vezes servindo de tapa-furos de uma crítica consistente, por outro lado, pode-se usar a chave para entender dentre os "jeitinhos" (que deveriam estar no plural) aquele que envolve uma forma supremacista de se relacionar ao outro, um tipo de "salve-se quem puder" no qual a lei formal fica suspensa e é a maior crueldade que prevalece na zona cinza infralegal. O cinema brasileiro, por exemplo, cansou de mostrar isso nos filmes das décadas de 70 e 80. Esse é o Brasil de Bolsonaro

Mas sejamos claros: desde 2014, as estratégias conjunturais do petismo, que construiu diversos avanços que não cansei de exaltar em diversos textos, palestras e inclusive entrevistas ao IHU, têm nos levado irreversivelmente ao atoleiro em que estamos. Não porque haja uma causalidade direta entre o petismo e o bolsonarismo, mas porque a responsabilidade de comandar a esquerda contra uma ameaça fascista foi deixada em segundo plano – e com isso nós, petistas ou não, ficamos vulneráveis à emergência de Bolsonaro.

A tentativa de colocar a discussão do golpe de 2016 no centro da polarização falhou. Hoje em dia, a discussão é puramente acadêmica – e lamento dizer isso. Ou, para ser mais generoso, da elite cultural. Ninguém mais se importa com a questão. Saia na rua e pergunte às pessoas, vá na parada de ônibus, no zap da comunidade do bairro, na feira do centro da cidade. Ninguém se importa com “golpe” em 2016. É um tema completamente superestimado em termos conjunturais. Em termos históricos, de memória, é importante e deve ser recordado. Mas em termos de organização das forças políticas, quem está agindo baseado a partir dessa percepção está visivelmente com uma angulação errada. Já se passaram duas eleições e não houve resposta alguma ao golpe, ao contrário: nunca houve um conservadorismo tão orgânico eleito nas urnas.

A resposta já tinha sido clara em 2016 – Com Doria, Kalil, Marchezan, Crivella, entre outros – e foi ainda mais veemente em 2018. Até porque a principal alegação entre os próprios militantes é a inexistência de crime de responsabilidade. Só que isso é uma questão técnico-jurídica completamente alheia à realidade do cotidiano das pessoas. A indignação contra essa irrelevância pode ser dirigida aos mensageiros – como costuma acontecer com as patrulhas das redes sociais –, mas quem está aí no dia a dia sabe bem disso. Os próprios signos da elite cultural são parte do mecanismo que elegeu Bolsonaro, como toda literatura internacional do populismo reacionário ou neofascismo (Fraser, Nagle, Beran, Neiwert, entre muitos e muitos outros) e nacional do bolsonarismo (Cesarino, Kalil, Pinheiro-Machado, também entre muitos e muitas outras) têm demonstrado. 

 

Retaliação petista do processo político

 

Particularmente em 2018 era nítido que Bolsonaro se tornava uma força real e competitiva, e que estaríamos sujeitos à destruição total de tudo que foi construído no período anterior. O que fez o PT (que hoje, longe de ser uma potência de multiplicidades de lutas que confluem em um mesmo hub, é um séquito guiado pela voz divina do líder supremo)? Insistiu na candidatura completamente inviável de Lula até o final e depois buscou a transferência de votos para um candidato que não chegou ao segundo turno nas eleições municipais paulistanas. É claro que ia dar errado, qualquer pessoa minimamente racional capaz de se afastar dez milímetros das próprias crenças podia ver isso, mas em vez de mudar a tática e eventualmente construir uma alternativa mais viável (com a responsabilidade de ser uma força viável), o PT insistiu na tese da retaliação do processo político. Muito provavelmente ninguém no PT acreditava que fosse funcionar, não creio que dirigentes sejam tão ingênuos quanto uma parte da militância, mas a ideia era o longo prazo: a “História haverá de nos redimir”. 

Só que podemos não ter longo prazo. Esta foi a principal irresponsabilidade. A anedota de Ciro em Paris, como tantas outras que circulam nas redes, é risível perto disso. Aliás, nenhuma aliança, nem mesmo com os tucanos, teria dado vitória a Haddad naquele momento. O antipetismo foi a força eleitoral mais forte, independente dos resultados bem razoáveis que o partido teve em 2018.

 

Fracasso da direita – “conservadorismo” terminou em olavismo

 

Já estava escrevendo que nem iria dizer nada sobre a direita, mas vou sim: a direita também fracassou vertiginosamente. Depois do relançamento da direita pós-tucana, com um flerte inequívoco com o capitalismo, adoção do liberalismo político como discurso e formação de organizações sociais, o que aconteceu com a direita? Virou refém desta célula nazifascista do bolsonarismo, que consegue ser tão violenta quanto seus antecedentes históricos e só menos efetiva devido à absoluta mediocridade dos seus representantes. Ou seja, a direita não conseguiu escapar da imagem caricata, nefasta e mesquinha que a esquerda sempre lhe atribuiu. A tentativa de formar um "conservadorismo" brasileiro terminou no olavismo, a formação para o liberalismo desaguou no coach chinfrim que é Paulo Guedes. Um fracasso total. 

Há, por fim, todo ciclo subversivo deflagrado em 2013. Aqui não considero a palavra “fracasso” apropriada. Me parece mais um devir em curso, algo que ainda está experimentando novas formas até encontrar seu eixo principal. 

IHU On-Line - A discussão em torno do golpe e não-golpe tem impedido uma compreensão mais ampla do que se passa na conjuntura nacional em termos de reformas ou propostas do governo Bolsonaro, para além dos discursos inflamados do presidente? 

Moysés Pinto Neto - Sim, prejudica muito. Por um lado, temos uma ameaça permanente e real de golpe. Real como ameaça. Não tenho dúvidas, e aqui sigo Marcos Nobre que, em recente entrevista ao Murilo Cleto, no UOL, disse que Bolsonaro sempre tramou, tramava durante a crise da covid e continua tramando mecanismos para dar um golpe. Só que você não simplesmente dá um golpe, do mesmo jeito que não simplesmente faz um impeachment.

Ainda seguindo o raciocínio de Nobre, é preciso construir condições políticas para tanto. Há um raciocínio preguiçoso típico da cultura de redes sociais que é achar que tudo é questão de vontade. Se não faz, é porque não tem coragem, não tem vontade, porque é canalha, é moralmente reprovável. E assim simetricamente, mesmo que sob uma ótica substantiva completamente diferente, se situam o voluntarismo da direita raivosa e golpista, de um lado, e da esquerda pró-impeachment e/ou cassação da chapa, de outro. Eu sou favorável ao impeachment, mas não tem como fazer isso com uma canetada.

É preciso construir um movimento amplo em torno disso. Da mesma forma, os apoiadores truculentos do Bolsonaro querem um AI-5, mas ele não chega nem perto de ter capital político para isso. Hoje, está encurralado na companhia dos militares, da maior parte dos ricos (empresários e mercado financeiro), da pequena retaguarda olavista e, em termos de uma massa mais substantiva, de boa parte dos evangélicos e do interior rural do Brasil da cultura "agro" (por isso o prestígio no Centro-Oeste, por exemplo, no que Idelber Avelar chama do "partido do boi"). É bastante gente, mas não sobe além de 30%. Não há como dar golpe. 

Um cenário como 64, por exemplo, exigiria adesão da mídia (Globo, Folha e Estadão, por exemplo), do aparato judiciário (que hoje, depois da saída de Moro e dos ataques ao STF, está majoritariamente contrário), das classes médias conservadoras (hoje divididas pela covid-19 e saída de Moro) e de figuras influentes com um discurso de legitimação (um Lacerda, digamos assim). Eles não têm nada disso. O guru da Virginia é tratado por todo mundo como um loucão terraplanista, Weintraub não conseguiu 100 assinaturas de apoio à permanência no Ministério da Educação, não tem profissional da saúde que vá aceitar trabalhar com um psicopata que quer prescrever remédio que não funciona para a população. Mesmo o petit comité de militares do "núcleo duro" aos poucos vai sendo fritado junto com o psicopata da Presidência. Não vejo mais o golpe como um risco provável, como senti receio durante a greve dos caminhoneiros e logo após as eleições de 2018. Agora, parece mais uma bravata que mantém a democracia sob chantagem. O único cenário em que vejo possível – e que não vejo acontecendo nem remotamente – é mediante a cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral - TSE. Nesse caso, a saída do governo "na canetada", sem um grande movimento de apoio, pode produzir o efeito inverso de que, caneta contra caneta, a do governo tem a violência ao seu lado. 

Por isso, temos que começar a olhar para a estratégia-Salles, que é o que esses fascistas conseguem fazer e estão fazendo por todos os lados. Eles não dão golpe e centralizam tudo porque não podem. O que podem? Produzir o caos mediante um ruído infernal em que nada é certo e tudo está sob suspeita, portanto os atos mais absurdos do líder são chancelados com “isso deve fazer sentido, só não entendo como”, trocando o consentimento racional por uma sintonia afetiva baseada na fidelidade. Nesse ponto, os trolls ajudam bastante, produzindo signos ambíguos que estão a todo tempo despertando ultraje nos oponentes e com isso preenchendo as nuvens em que vivemos imersos com seus conteúdos. Entre a fidelidade dos sinceros e o cinismo dos trolls, que enxergam Bolsonaro como um símbolo contracultural (o cara que desafia o “politicamente correto”), o ruído vai tomando conta de tudo. 

Ao mesmo tempo, na prática vão desregulando e deixando que os mais fortes prevaleçam. Ao contrário de modelos europeus atuais do fascismo, em que prevalece uma certa postura mais intervencionista do Estado dando amparo social aos nacionais, ao mesmo tempo que polariza com estrangeiros e liberais, aqui se trata de uma reedição da lógica original do neoliberalismo: populismo autoritário na política, ultracapitalismo sem regulações na economia. O projeto, portanto, é produzir ruído (no sentido cibernético do termo mesmo) a tal ponto que seja possível ir destruindo qualquer comunicação com sentido, fazendo com que parâmetros racionais de regulação (por exemplo: é preciso colocar a saúde em primeiro lugar) sejam eliminados e, no lugar, prevaleça o mais forte. Não por acaso todos os órgãos regulatórios estão sob ataque.

A lógica imanente do bolsonarismo é o supremacismo geral. Que vençam os mais fortes, eles merecem, onde “merecer” quer dizer: ter força suficiente, inclusive pela violência física ou econômica, para impor sua vontade e com isso triunfar. A lei natural, lei das leis que sustenta uma ordem supra e infralegal é: manda quem pode, obedece quem tem juízo. A lei e a ordem a que Bolsonaro se refere sempre foi essa, por isso naquela fatídica entrevista antiga em que pregou tortura e guerra civil também afirmou que sonegava impostos com prazer.

O que Bolsonaro encontrou em Guedes é uma lógica econômica em que o mais forte pode triunfar de qualquer jeito e tudo é justificado. A abolição da vergonha. É essa lei supra e infralegal, lei natural da supremacia, que organiza a atividade policial e o racismo estrutural, por exemplo, assim como agora ela passa a valer nas regulações ambientais, de saúde pública, educacionais etc. Ou, finalmente, na “guerra cultural”, que no final é uma guerra para controlar a “bagunça” produzida pelo petismo. Qual bagunça? A subversão das hierarquias sociais, o levante dos negros, dos índios, das mulheres, das populações LGBTTQI+s. Os movimentos sociais não violam a lei formal, violam a “lei natural” do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

IHU On-Line - Na sua avaliação, a estratégia do governo Bolsonaro é minar as instituições por dentro. Como isso tem acontecido e como as instituições têm reagido?

Moysés Pinto Neto - É a estratégia de ocupar e desativar. O Estado é apenas útil em dois sentidos: permite interferir em certas decisões-chave que desorganizam ou implodem as regulações e, com isso, impedem a formação de instituições, e discursos que fazem propaganda para o lado rival. Só que a "propaganda para o lado rival" no olhar dos bolsonaristas é o que chamamos de instituições civilizatórias, são os direitos fundamentais, as pautas igualitárias, a defesa das minorias contra a opressão social. 

Por outro lado, o projeto não é impor verticalmente um programa, mas liberar – com a falência das infraestruturas estatais – para que mediadores "tradicionais" ocupem este espaço. Elimina-se a publicidade da escola, das universidades, da cultura ou da saúde para que organizações de média escala ocupem esse espaço, formando uma espécie de comunitarismo reacionário e pequenos ou grandes nichos de mercado. Bloqueia-se o contato com a alteridade – o outro perturbador que é "estrangeiro" aos meus hábitos mentais e familiares – para que os indivíduos fiquem confinados em um microcosmo fechado regido pelas organizações parceiras do governo, mais especialmente milícias, igrejas e negócios. O regulador exterior deixa de ser o Estado, com normas abstratas universais que têm de contemplar a convivência entre diferentes, e passa ao mercado, que deixa cada bolha sobreviver em seu próprio raio fechada aos atritos externos. 

 

Populismo autoritário

 

Aqui também temos o elemento populista: desaparecem as mediações universalistas, como o Parlamento e os tribunais, e no lugar estão as particularistas, fazendo de cada bolha o comitê dos eleitos específicos. As bolhas não são expansivas no mesmo sentido das instituições públicas. Elas se expandem por contraste: definindo seu autopertencimento por equivalência (por exemplo, a grande equivalência em torno ao significante vazio "aqui é Bolsonaro") e, ao mesmo tempo, expulsam as diferenças como inimigas. Qualquer lógica que ultrapasse essas particularidades é notoriamente incompatível com elas.

O bolsonarismo, nesse sentido, é um populismo autoritário. Mas não era um fascismo? O fascismo é um caso extremo do populismo, mas a nomenclatura não é definitiva, a gente sempre pode fazer aproximações por múltiplas formas e de múltiplas maneiras. Nenhum rótulo é definitivo, até porque o fenômeno está sendo vivido na realidade para além das suas classificações. Poderia chamar de necropolítica, exterminismo, neoliberalismo autoritário. 

O populismo autoritário não reconhece outro povo que não o "povo ordeiro", um "nós" excludente que considera inimigo todo indivíduo que se opõe aos seus valores-matriz. O "povo", hoje, é menos que um terço da população. Ele não compreende a democracia como um sistema de freios e contrapesos. Por isso, o contrapeso e o freio são interpretados como ação arbitrária que limita a implementação do seu programa político. Freios seriam antidemocráticos. O movimento não compreende a relação entre democracia e Estado de Direito, ao menos até um dos seus acabar em um processo penal... 

Os bolsonaristas diziam pouco antes das eleições quando viam um beijo gay: "vamos aguardar quando o Bolsonaro for eleito". Eles desconhecem totalmente limites ao poder estatal, transformações na sociedade civil, fenômenos que ocorrem alheios ao que pode um governante. Realmente existia um impulso da Revolução Iraniana entre seus mais entusiasmados adeptos: acreditavam mesmo que iriam colocar à bancarrota todas as grandes transformações dos últimos 50 anos, que Olavo de Carvalho iria virar um grande intelectual brasileiro respeitado e discutido nas universidades, que os professores iriam abaixar a cabeça e lecionar como se estivéssemos no século passado, que as feministas iriam se calar, entre outras coisas. Eles não entendem que certas questões se consolidam para além dos poderes do Estado – e que mesmo os poderes do Estado estão aí para proteger minorias diante de maiorias. Maioria cristã, por exemplo, exige que o Estado esteja atento a proteger as minorias judaicas, das religiões afro, ameríndias, espíritas, ateias, pagãs, entre outras, diante do avanço de potenciais intrusões do cristianismo como religião oficial. O mesmo vale para outras maiorias. Foram até meio ingênuos nesse aspecto.  

 

Ameaça estrutural

 

As instituições reagem em parte a isso, em espasmos. Elas não entenderam – ou fingem que não entendem – que a ameaça não é conjuntural, mas estrutural. Um dos poucos momentos em que foi diferente ocorre justamente quando o Supremo exorbita suas atribuições no Inquérito das fake news. Juridicamente, é quase impossível sustentar a legalidade. Mas politicamente é claramente uma espécie de legítima defesa das instituições contra a possibilidade de erosão absoluta diante de uma máquina de propaganda que despreza qualquer autoridade que não seja alinhada às suas ideias. 

A distopia bolsonarista é a erradicação de qualquer lógica geral e substituição por particularismos em que os mais fortes prevalecem e os mais fracos se alinham aos mais fortes, fazendo com que a "lei natural" prevaleça. Esta é a ordem das coisas. Há uma subjetivação que atravessa as classes aqui organizando um mundo hierárquico. Só que todas as ideias que inspiraram a Constituição e a Nova República são contrárias a isso. E é imperdoável a negligência das instituições em não terem percebido esse mal emergindo. Agora, estão tentando controlar o monstro que deixaram acontecer.  

IHU On-Line - Bolsonaro mudou o discurso depois da prisão de Queiroz? Como esta prisão reorganiza a cena política? 

Moysés Pinto Neto - Muito cedo para dizer. As últimas semanas têm mostrado um governo mais acuado, cauteloso, e mudando a organização para tentar contemplar provisoriamente os mais pobres com os auxílios e contemporizar com o sistema político dando cargos ao Centrão. Mas é muito cedo para fazer juízo de valor se isso permanece, até quando e o que significa. O fato é que a ligação dos Bolsonaros com milícias cariocas é cada vez mais explícita e isso vai constrangendo o discurso público das instituições, fazendo com que tenham de se recolher na própria hipocrisia. Uma coisa é defender uma ideia odiosa em público, outra é admitir que estava sendo mentiroso em um mundo que supervaloriza a autenticidade. Nem por isso vamos comprar narrativas ingênuas de que os envolvidos não sabiam onde estavam se metendo. 

IHU On-Line - Hoje fala-se muito da relação do governo com os militares e os evangélicos. Entretanto, o governo Bolsonaro é refém da ala olavista no sentido de que é ela quem mais pressiona o governo nas redes sociais? 

Moysés Pinto Neto - Refém não me parece uma boa palavra, mas há uma relação estreita de marketing digital que está em nítida consonância com o olavismo. Veja-se que, diante da pandemia, pouca gente apostava que Bolsonaro iria até o fim com o negacionismo. E foi. O discurso na fatídica reunião de "armar a população" é cem por cento olavista. Claro que Bolsonaro sempre defendeu a liberação das armas, mas o olavismo tem uma capa ideológica da "resistência das liberdades" diante do avanço estatal. O personagem olavista ideal é o pequeno fazendeiro, com seu rifle e sua Bíblia, defendendo-se do avanço do Estado centralizador. Essa é a concepção de liberdade. Seria algo compreensível se não soubéssemos que não se trata de situações de um Estado colonizador ou tirano, mas do simples avanço das ciências (com as escolas e universidades públicas, por exemplo), de regulações que preservam a vida de todos (meio ambiente ou saúde), de direitos (contra o supremacismo branco ou a homofobia), entre outros. Assim, encontra-se um discurso que faz fechar obscurantismo reacionário (eufemizado em "conservadorismo") com capitalismo selvagem

Até agora, por pior que pareça, tem funcionado razoavelmente. A criação do inimigo comunista produz efeitos de agregação. Mesmo que o signo comunista no final queira dizer qualquer um que defenda mínima solidariedade social.

IHU On-Line - Por que chama o bolsonarismo de lulismo invertido? Que paralelos, semelhanças e diferenças vê entre ambos?

Moysés Pinto Neto - Foi mais uma estratégia retórica para ressaltar que, para além do lulismo oficial (pacto conservador + reformismo fraco), existia um lulismo que era a liberação das forças sociais criativas. Ações afirmativas, microcrédito, pontos de cultura, demarcação de terras indígenas e quilombolas, aumento do salário mínimo e Bolsa Família liberaram uma gigantesca energia potencial que se encontrava confinada nos limites da miséria gerada pela superexploração, expropriação ou exclusão das largas fatias da população. A viabilidade econômica liberou forças produtivas, engendrando novas articulações das lutas, artefatos culturais e reorganizando todo tecido social. Seria o "lado B" do lulismo, algo menos ressaltado pelos intelectuais progressistas que preferiam olhar para empregos e o pacto burguesia industrial + classe trabalhadora como forma de construir uma nova social-democracia no Brasil. Um processo muito menos controlado, direcionado e por isso mesmo selvagem e ambivalente.

O bolsonarismo é esse lulismo invertido: liberação das forças sociais destrutivas. Eliminação dos freios, limites e políticas afirmativas protetoras das forças sociais que eram confinadas aos arranjos de poder. Não a liberdade que, ao reconhecer a terra, libera o modo de existência indígena para seu devir, mas o matador de índio liberado dos constrangimentos legais para agir na sua própria causa. Não a Escola e a Floresta, mas a censura na escola e destruição da floresta. Ações afirmativas para brancos e homens. Não é apenas uma força repressiva: é a explosão dos perversos para que possam gozar com a morte, inclusive a própria morte (como a pandemia tem demonstrado). Liberação da devastação geral. Lógica da predação como única forma: só nos resta exaurir e explorar tudo que existe sem limite, pois não nos constrangemos com a morte. A morte é um acidente para a supremacia, ou dependendo do caso até mesmo sua glória.   

IHU On-Line - O que quer dizer quando afirma que “Bolsonaro roubou os ‘emergentes’ do PT”? 

Moysés Pinto Neto - Uma das principais disputas ao longo do lulismo se deu pela interpretação da ascensão da "classe C", chamada de nova classe média, nova classe trabalhadora, batalhadores, precariado, classe sem nome, emergentes, pobres, entre outras muitas designações. Não por acaso o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea teve sua presidência alternada entre diferentes intérpretes (Pochmann, Neri, Jessé Souza). A relação entre o conservadorismo cultural e o progressismo político parecia um enigma a se decifrar. Como um segmento social em geral com valores tradicionais sobre família, trabalho e religião permanecia tão vinculado ao sucesso do lulismo? As políticas sociais foram, sem dúvida, o elemento-chave que permitia conectar uma à outra – e justamente pensar essa dobra foi o exercício que levou muitos intelectuais a escrever páginas e páginas sobre o tema em interessantes trabalhos.

Com o bolsonarismo, há uma desambiguação: o progressismo político deixa de ser necessário e vale o "trabalhe duro, seja cidadão de bem e não se faça de vítima". E o alvo aqui são as elites – só que culturais. A elite cultural abrange não só os acadêmicos, artistas e jornalistas tradicionais, mas também toda força social revolucionária emergente com a liberação produtiva dos obstáculos econômicos, ou seja, também as dissidências pobres dos novos movimentos sociais vinculadas às causas negra, LGBT, indígena e feminista. Ela é encarada como favorecida sob o código da "mamata". Acabou a mamata, ou seja, acabou o financiamento público da educação e da cultura, que envolve desenraizamento e libertação, e no lugar entra o comunitarismo reacionário de igreja, arma, trabalho e dinheiro. Por isso mesmo Bolsonaro sempre precisou se afirmar na sua base popular usando códigos específicos, como o "sertanejo universitário" (para o universo agro) e a luta contra a mamadeira de piroca (para os cristãos fundamentalistas).

Bolsonaro se alavancou exatamente porque comprou a guerra cultural, soube ler não só a crise do signo "socialismo" sob a corrupção petista, mas também a ascensão pós-2013 dos novos movimentos sociais, que embora já existissem anteriormente, penetraram fundo nas escolas e universidades com ações afirmativas e políticas de expansão do ensino. Paradoxalmente, o "cidadão de bem" contra a "mamata", ao mesmo tempo em que acusa os demais de "vitimistas", coloca a si mesmo como vítima de um saque contínuo do seu capital para financiar cultura e educação. Quem disparou massivamente esse terreno foi o Movimento Brasil Livre - MBL, com o pânico moral em torno do Queermuseu, e depois perdeu o controle sobre sua criatura. Por isso também a proliferação do "eu pago seu salário" como meme, que se tornou mantra para atacar qualquer indivíduo – de ministros até jogadores de futebol. 

IHU On-Line - O senhor já mencionou que suas análises sobre o lulismo geram desconforto entre seus interlocutores. A que atribui esse fato e por que, na sua avaliação, é importante analisar o momento atual tensionando-o e contrapondo-o com os ex-governos petistas? 

Moysés Pinto Neto - Tem a ver com economia memética e patrulhamento. 

O MBL e os novistas, por exemplo, estão tentando emplacar o "bolsopetismo", que seria a tese dos dois populismos, de direita e de esquerda, como desenhou em 2018 o horrendo e famoso editorial do Estadão da "escolha muito difícil". Ou seja, você está reforçando um meme quando compara lulismo e bolsonarismo. Mas então é isso? Vamos parar por aí? O pensamento social vai ficar sob a chantagem da propaganda nas redes sociais? Não vamos falar de coisas indigestas, complexas, porque alguém pode ler errado o que está sendo escrito? Um efeito é este: como fenômenos de massa, as redes sociais produzem essa circulação empobrecida na linguagem que não consegue fazer distinções finas, relações que não sejam previsíveis. Em vez disso, só martelam memes: "Lula e Bolsonaro são inversos iguais", "falou Lula e Bolsonaro, falsa simetria", como se todas as comparações fossem redutíveis a dois esquemas bem pobres. 

Obviamente, também há um patrulhamento aqui: existem certos códigos e chaves para se fazer parte do clube da esquerda, porque, como qualquer outra identidade, ela tem seus totens e tabus. E também é claro que tudo se reforça com a algoritmização de tudo, em que basicamente ter um perfil significa carregar uma reputação ardorosamente mantida na minha bolha mediante curtidas, visualizações e compartilhamentos. É uma lógica que não admite pedra no meio do caminho.

 

Transformação social na direção mais justa

 

O que me interessa como esquerda não é a pauta identitária dos signos vermelhos, os heróis e vilões da história canônica, mas um campo que aglutine forças e devires que produzem transformação social numa direção mais justa. O resto, a identidade e o clubinho lefty, não me importa muito fazer parte. Entre a chantagem do pertencimento e o ostracismo da independência, sem dúvida fico com o segundo. Quantas discussões não se perde o tempo infinito debatendo sobre coisas que nem foram colocadas em questão apenas porque a palavra X foi usada? Ah, você comparou lulismo e bolsonarismo. Pronto, só pode ser um liberal-coxinha. Não entendem nem que só conhecemos as coisas comparando, não há fora-da-comparação (outro jeito de dizer que tudo é relacional). Toda patrulha é bem burra, afinal. Não se inventou ainda censura inteligente.

Agora, sobre a comparação em si, o motivo é mais ou menos óbvio: o bolsonarismo é o primeiro fenômeno popular que sucedeu ao lulismo e não existe heterogeneidade completa em torno aos seus participantes. Portanto, há que se ler o que disparou a mudança, como dizem Pinheiro-Machado e Scalco: "from hope to hate". Como fazer isso sem comparar? Impossível. Por isso, ignorem os memes e vamos tratar de pensar, se necessário, contra as militâncias. 

IHU On-Line - Como vê a esquerda no cenário político? Por que não aparecem propostas de contraposição ao bolsonarismo à esquerda?

Moysés Pinto Neto - Há propostas sim, mas muito desorganizadas. Tanto as forças institucionais – PT, PSOL, PDT – quanto as forças da sociedade civil estão em levante contra o bolsonarismo. Acontece que estão fragmentadas pelos traumas do passado recente. Em 2014, tornou-se impossível para adeptos do social-liberalismo de Marina – ou pelo menos pragmáticos que enxergavam ali uma janela (meu caso) – perdoar o PT depois do que ouviram nas eleições. Depois veio Ciro, todo mundo se empolgou com o discurso forte de, por exemplo, "levar o Lula para a Embaixada", mas nas eleições a conversa foi outra e ele acabou ficando de fora.

Naquela época, eu fiz o seguinte comentário maldoso e contraproducente: "amigos que apoiam Ciro, aguardem: logo vocês saberão o que aconteceu com os marinistas em 2014". Infelizmente, não deu outra. Isso não é mapeável, mas os efeitos do sectarismo petista nas redes sociais produzem rachaduras extremadas na militância. Os petistas simplesmente não aceitam outra alternativa de poder que não eles próprios. Sei que parece mesquinho falar isso, mas pergunte a qualquer pessoa de centro-esquerda – portanto, que provavelmente em algum momento apoiou o PT – como foi depois que rompeu com o PT e se posicionou em torno à outra candidatura? É indigesto.

Mas bem, dito isso, agora já virou picuinha. Era importante em 2015 ressaltar como foi contraprodutivo a esquerda se dirigir contra Marina em um segundo turno que poderia ter sido entre forças progressistas. Foi importante ressaltar que o PT poderia ter sido mais inteligente e driblar o antipetismo colocando-se, por exemplo, como vice da chapa do Ciro, aumentando as chances contra o terror que estamos vivendo. Foi? Foi. Mas agora deu. É um compromisso irreversível que Ciro, Marina, Lula, Dino, Freixo e outras forças de esquerda se entendam minimamente e formem uma frente única. Guerra memética contra quem importa. Se a esquerda não se organizar em uma força única, vai ficar fora do segundo turno. E sempre se pode dizer que eleições são irrelevantes. Eu não concordo. Acho que a virada começa derrotando nas urnas a extrema direita; depois, com o terreno menos acidentado, podemos voltar aos numerosos debates e disputas que ficaram pendentes entre nós desde pelo menos 2013.

 

Outros mundos possíveis

 

Cabe ressaltar que, para muito além da esquerda, existem forças potentes se levantando que nos transportam para outros mundos possíveis, e destacaria sobretudo as vozes indígenas e o levante do movimento negro. Um país construído sob os cadáveres negros e indígenas só pode ser alguma coisa que não a repetição da mesma violência quando der resposta a esses fantasmas. E, aliás, o genocídio segue em pleno ato para ambos. Por isso mesmo daí podem emergir forças mais profundas com possibilidades para muito além do que a conjuntura oferece no momento. Aqui teríamos forças desconjunturais que devem estar à frente de qualquer movimento. 

IHU On-Line - Que projetos estruturais a esquerda tem para se opor à agenda Bolsonaro? 

Moysés Pinto Neto - É uma questão delicada, porque percebo que – apesar das picuinhas entre Ciro e Lula e seus fãs – o único projeto à mão segue sendo o nacional-desenvolvimentismo levado a cabo no imaginário trabalhista e depois adotado pelo petismo. Nesse caso, é complicado perceber que com todos os problemas que o governo Dilma produziu – vamos lembrar que terminou com aprovação de 10% e sem a capacidade de mobilizar um terço da Câmara, mesmo cedendo cargos à vontade ao Centrão – ainda vamos investir na eterna nostalgia do projeto nacionalista Brasil Grande. Realmente, é muito complicado.

Mas que projetos a esquerda deveria ter? Todos os possíveis, porque a agenda Bolsonaro é tudo que queremos ao contrário. Queremos uma agenda que coloque o meio ambiente como elemento estruturante, pois sem mundo não há economia, política, cultura, família, saúde. Então vamos conversar sobre diminuir nosso dispêndio energético, produzir tecnologia que consiga comprimir os efeitos produzidos sobre o ecossistema, esvaziar o modelo das monoculturas e investir na biodiversidade?

Vamos. Saúde se tornará uma prioridade popular absoluta depois da pandemia. Qual é a corrente política que defende com mais veemência um sistema público, gratuito e universal de saúde? Pois é. O que precisamos fazer para melhorar?

Educação depois de Weintraub. Vamos conversar sobre dar um salto na educação básica? Sem investimento, melhorar salário de professor, infraestrutura das escolas, por exemplo, não há como dar esse salto. Vamos nessa? Em suma, retomar a ideia de serviços públicos acessíveis a todos, de que o Estado não existe em si mesmo e para si mesmo, mas como um meio de fazer chegar a todos serviços que melhoram nossa vida. E, para isso, como podemos também sair do próprio Estado para que a autogestão das próprias comunidades produza o que elas precisam.

Imaginem, por exemplo, se o Minha Casa Minha Vida não tivesse passado pela corrupção governo/empreiteiras e, no lugar disso, tivesse sido feito com projetos cooperativos entre universidades e população local, inclusive criando serviços de construção com a mão de obra local que por sua vez impulsionaria outros serviços... e assim por diante?

 

Vencer narcisismos e seitas apaixonadas

 

Acho que boa parte da esquerda topa. Mas para isso temos que vencer o narcisismo das lideranças e as seitas apaixonadas. Para mim, a palavra-chave da retomada é: solidariedade. Vamos dar uma tonalidade moderna, um banho de 68, nela. Enfrentar o ethos neoliberal com aquilo que ele nega: que alguém possa se comprometer com algo além de si mesmo no mundo. Isso produz aliança, cooperação, transformação, vida. Todas palavras essenciais para uma esquerda.

IHU On-Line - Nos governos petistas era recorrente o discurso do nós x eles, da esquerda x a direita, fazendo referência ao PSDB e à própria Marina, por exemplo. Quais são as consequências políticas deste discurso hoje? A oposição criada naquele período se reflete hoje na dificuldade de encontrar uma saída para a crise política que perpasse diferentes partidos de centro, esquerda e direita?

Moysés Pinto Neto - Hoje há uma forma muito mais exacerbada de "nós versus eles". O lulismo sempre foi camaleão na estratégia. Numa mão, afirmava "nós contra eles" quando se tratava de eleições, dissidências, críticas. Na outra, era "todos estamos juntos" quando se tratava de financiar empreiteiras, JBS, fazer aliança com PMDB. Recentemente, escrevi um texto com Idelber Avelar em que, analisando o caso de Belo Monte, fazemos a passagem dessa ambivalência amplamente vitoriosa de Lula, que ganhava dos dois lados, para a "estratégia-zumbi" de Dilma, que perdia nos dois. Lula inflava as bases e pactuava com as elites, mas os resultados eram bons para ambos, fazendo com que ele pudesse continuar jogando. Dilma, por outro lado, engrossava na retórica eleitoral e inflação das bases, mas cedia tudo na prática para as oligarquias. Dava discurso sem materialidade para a base e materialidade sem discurso para as oligarquias. Resultado: as elites, aproveitando o discurso inflamado, sempre pediam mais, enquanto as bases cada vez acreditavam menos por nada receberem em troca. Por isso Boulos dizia em 2016: "temos que sair às ruas para defender um governo indefensável", ou algo próximo.

Bolsonaro usa essa estrutura populista (no sentido de Laclau) de modo mais explícito. Todo seu governo, de cabo a rabo, é um eterno desafio aos inimigos. Primeiro, PT, depois a esquerda como um todo, depois esquerda e centro-direita, depois basicamente todo mundo que não é bolsonarista, inclusive a extrema direita (Witzel, por exemplo). As consequências disso são as do populismo: privilégio dos afetos elementares e empobrecimento do debate sobre questões complexas. Venho debatendo há tempos com muitos amigos – como Victor MarquesTatiana Roque, Celso Barros, Maikel Silveira, Leticia Cesarino, entre muitos outros – que, contrariamente a Nancy Fraser e Chantal Mouffe, não tenho grandes esperanças com o populismo. Prefiro, por exemplo, a alternativa de Balibar quando fala de um "contrapopulismo cidadanista", ou algo assim, na medida em que parece que a democratização passa ao lado da formação de massas e envolve uma apropriação dos assuntos "técnicos", portanto complexos e estruturantes, por uma quantidade cada vez mais expandida de pessoas. Continuo muito anarquista nesse ponto: uma federação de movimentos e redes me parece bem mais atrativa e potente que uma cadeia de equivalências que se aglutinam em um significante vazio que quase invariavelmente no Brasil é uma liderança carismática. 

Agora, não acho que podemos nos dar o luxo de escolher muito. Qualquer coisa que aparecer suficiente para derrotar esse neofascismo conta com meu apoio, mesmo que seja muito ruim. Provavelmente precisaremos de mais tempo para dar conta do tamanho do buraco em que nos enfiamos, e só olhar para fora já é um começo.  

IHU On-Line – Como reação ao governo Bolsonaro, voltou à cena o debate sobre a necessidade de um pacto amplo entre esquerda, direita e centro para fazer frente à extrema direita. O senhor tem dito que esta frente ampla não precisa chegar a um consenso sobre diferentes pautas, basta formar um consenso em relação a fazer frente ao governo atual. Pensando para além do governo Bolsonaro, diante da falta de consenso maior, como dar o passo seguinte, isto é, pensar o Brasil daqui para frente com visões tão divergentes sobre como deve ser o futuro do país em diferentes campos e em relação às reformas estruturais que precisam ser feitas? 

Moysés Pinto Neto - Sinceramente, não sei. Acho que a política é composta desses entrechoques e não haverá um grande pacto. Meu ponto é simples: se todo mundo mirar Bolsonaro em primeiro lugar e se mantiver fiel a isso em qualquer assunto, já temos o bastante. Mas você precisa ter disciplina nisso: se atacar seu adversário vai fortalecer Bolsonaro, não ataque. Se não vai, fique livre para construir seu campo por contraste. Na prática, a ideia é que se tivéssemos um campo de direita e um de esquerda resolutamente contrários ao bolsonarismo, poderíamos deixar Bolsonaro fora do segundo turno, porque haveria migração de votos para uma candidatura mais competitiva à direita caso haja real possibilidade de retorno da esquerda. Por isso, meu ponto é: cada um faz seu jogo, mas sempre obedecendo à regra número 1: primeiro objetivo é tirar Bolsonaro. Não há mais que isso para se construir uma Frente Ampla, qualquer coisa além disso é pedir demais e talvez nem seja conveniente.

Sobre o depois? É bom primeiro que haja depois. E para haver depois temos que tirar esses caras do poder, porque eles querem destruir tudo e colocar no lugar um caos sem Estado em que milícias, igrejas e negócios são as únicas formas de controle e mediação.

IHU On-Line - A crise pandêmica trouxe novamente à tona a discussão sobre uma renda universal. Como vê esse tipo de proposta e a discussão inicial em torno da Renda Brasil, proposta pelo governo?

Moysés Pinto Neto - Proposta absolutamente necessária e urgente, uma das alternativas possíveis ao devir do mundo do trabalho. Mas tem muita gente mais competente que eu escrevendo sobre. Remeto a entrevistas de Tatiana Roque, Bruno Cava, Giuseppe Cocco, entre muitos outros e outras, que defendem com argumentos sólidos esse ponto. Exatamente por isso a Renda Brasil é relativamente perigosa: é um risco que os fascistas se apropriem de uma boa ideia e vendam como suas, quando a rigor tudo que têm feito nos últimos anos é negar a lógica e a ética que sustentam a ideia de renda universal. A começar pelo próprio Bolsonaro. Por outro lado, pode ser que seja um tiro pela culatra: na mesma medida em que se acredita no caráter "assistencialista" da renda básica, ela pode revelar o que é: libertadora. E por isso mesmo pode produzir efeitos que não envolvem a fidelidade política, mas seu contrário: a autonomia.

IHU On-Line - Como avalia a reação do presidente depois de ter testado positivo para covid-19? 

Moysés Pinto Neto - Uma concentração do espetáculo bizarro a que assistimos. Primeiro, porque ninguém confia no presidente. A produção infernal de ruído fez cair também sobre ele o efeito que gera sobre todo resto: erosão da confiança. Por isso, não se sabe se não se trata de propaganda para recuperar popularidade, sustentar seu medicamento fake, gerar comoção entre adeptos e assim por diante. Mas digamos, por hipótese, que a suspeita seja exagero e que o presidente esteja de fato doente. Tudo foi ultrapolitizado e banhado de mentiras. O negacionismo envolve também diminuir a importância da doença e por isso quem não adere à sua narrativa fica no dilema de que, se passar facilmente, como se espera para outros seres humanos, será pretexto para diminuir as mortes dos demais. 

A população está sujeita a um massacre sádico produzido por um indivíduo e seu séquito de psicopatas que transformaram a principal pandemia dos últimos 100 anos em uma nuvem abstrata em que se discutem ideologias como se não existisse materialidade. Eu achava que logo as pessoas iriam recuperar o material ou concreto percebendo o risco de vida envolvido. Mas estão tão impregnadas e conectadas nos seus dispositivos e nas nuvens que só funciona mesmo o choque que Leticia Cesarino chama de "epistemologia do visual", ou seja, "só acredito vendo". Parece incrível, mas para 30% da população a covid-19 só será real se morrer algum familiar ou amigo que "possa ser visto". Enquanto isso, é motivo de dúvida, que na verdade não é exatamente uma dúvida racional, e sim um tipo de fidelidade tão forte à bolha que nega a própria realidade material.

 

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