Divisões pré-existentes podem dificultar a recuperação católica pós-pandemia?

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25 Mai 2020

Quando a história católica do coronavírus for escrita – e será uma história conturbada, que ainda está se desenrolando diante dos nossos olhos – uma nota de rodapé especial terá que ser reservada ao Pe. Leonardo Ricotta, de Palermo, na Sicília, que, nesta semana, se tornou o primeiro padre a renunciar em protesto às restrições anti-infecção.

O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 24-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para deixar claro, Ricotta não renunciou como padre, mas sim como pároco da Igreja de Sant’Agata a Villabate, na Arquidiocese de Palermo, porque não aceitava as regras que exigiam que a Comunhão fosse distribuída apenas na mão por um padre usando luvas de proteção. Fazer isso, disse ele, transforma o ato de dar a Comunhão em um “açougue eucarístico”.

“Dar a Comunhão assim é um sacrilégio”, disse Ricotta no dia 18 de maio, durante a sua primeira missa pública desde o começo do confinamento, no início de março.

“Fragmentos do Corpo de Cristo poderão grudar nas luvas que depois serão jogadas fora. O que eu faço? Jogo Cristo na lixeira? Prefiro não dar a Comunhão.”

Em vez disso, disse Ricotta, ele orientaria as pessoas a fazerem uma Comunhão espiritual.

“Se devo dar ao meu povo um alimento envenenado, é muito melhor ficar em jejum”, disse ele. “A vida de fé certamente é sacramental, mas, quando não é possível ou tentam transformá-la em um sacrilégio, Deus cria um desvio.”

Posteriormente, algumas mídias sociais afirmaram inicialmente que Ricotta havia sido removido do seu cargo pelo arcebispo Corrado Lorefice, de Palermo, obrigando a arquidiocese a emitir uma declaração afirmando que, em vez disso, Ricotta havia renunciado.

“Convicções pessoais apresentadas por indivíduos como doutrina autêntica não podem ser impostas aos fiéis”, disse a nota, citando um documento vaticano no sentido de que cabe ao bispo local emitir normas para a liturgia, “às quais estão todos vinculados”.

Em miniatura, a situação em Palermo captura as tensões mais amplas do papado de Francisco.

Ricotta, sem nenhuma surpresa, é um acérrimo tradicionalista. Dois dias antes do seu ato de contestação à Comunhão, ele postou um vídeo no Youtube, cujo título era: “Uma homilia inflamada contra a heresia, a apostasia e o falso ecumenismo na Igreja” (enquanto ele o proferia, Ricotta usava o tradicional barrete sacerdotal).

“O ecumenismo tem sido um dos desastres dos últimos 60 anos pós-conciliares catastróficos”, disse ele.

“Durante 2.000 anos, a Igreja foi um encouraçado inafundável (...) derrotamos o Império Romano, Átila, os hunos, Hitler, Napoleão, a União Soviética. Hoje, esse navio de guerra se tornou um tigre de papel. Só foi preciso um micro-organismo para afundá-lo”

Lorefice, enquanto isso, é um clássico bispo ao estilo “Papa Francisco”. Ele fez a sua tese de doutorado sobre o cardeal Giacomo Lercaro, de Bolonha, um dos gigantes liberais no Concílio Vaticano II (1962-1965), e o Pe. Giuseppe Dossetti, um dos heróis pró-democracia da esquerda católica italiana que foi ordenado por Lercaro.

Outra de suas luzes orientadoras pessoais é o Bem-aventurado Pino Puglisi, padre antimáfia da Sicília, morto a tiros em 1983, cuja proximidade com os pobres no difícil bairro de Brancaccio, em Palermo, especialmente os jovens em risco de gravitar para uma vida de crime, era lendária.

Em outras palavras, o impasse entre Ricotta e Lorefice não se resume ao modo de distribuir a Comunhão. Também coloca frente a frente duas visões de mundo eclesiásticas diferentes.

Talvez, previsivelmente, os defensores de Ricotta veem Lorefice como o vilão, perguntando-se por que ele não pode praticar um pouco daquela descentralização que os liberais gostam de elogiar. Aqueles que estão do lado do arcebispo perguntam por que os tradicionalistas geralmente parecem esquecer que a obediência à autoridade legítima também é um ponto bastante tradicional no catolicismo.

Por coincidência, a situação em Palermo se desenrolou ao mesmo tempo em que o Corriere della Sera, o principal jornal da Itália, divulgou os resultados de uma nova pesquisa do principal instituto de pesquisa do país sobre as atitudes em relação ao que os italianos chamam de “La Ripresa”, ou seja, a saída gradual da quarentena dos últimos dois meses.

Como se vê, as principais preocupações públicas não são um novo aumento nas taxas de infecção. Surpreendentemente, não é sequer o fato de que as tradicionais férias de Ferragosto, em meados de agosto, podem ser interrompidas.

Em vez disso, o indício mais forte de ansiedade pública veio em relação à seguinte pergunta:

“Você acredita que nos próximos meses tudo voltará ao que era antes da emergência, e os sentimentos de raiva e divisão serão obstáculos à recuperação da crise econômica e a desacelerarão?”

Em geral, 63% dos italianos, ou seja, dois terços do país, responderam “sim”. A descoberta foi coerente com a filiação política, incluindo 72% dos eleitores do principal partido liberal, os Democratas, e 69% dos apoiadores da maior legião de direita, a populista e anti-imigrante Liga, liderado por Matteo Salvini.

Em outras palavras, os italianos de todas as faixas acreditam que o país é teoricamente capaz de sair dessa crise em boa forma, mas as divisões ideológicas e políticas pré-existentes impedirão isso.

Esse é um exame de consciência que a Igreja Católica também pode fazer com proveito, porque os desafios que a Igreja deve enfrentar à medida que a pandemia recua são gigantescos.

Depois de dois meses sabendo que o comparecimento físico à missa não é estritamente necessário, as pessoas voltarão à Igreja? À medida que a economia entra em recessão, as instituições de caridade católicas de todo o mundo encontrarão os recursos de que precisam para preencher as lacunas? Enquanto as paróquias, as dioceses e até o próprio Vaticano enfrentam as entradas em declínio e os custos crescentes, as reformas terão sucesso em introduzir economias e aumentar a transparência e a prestação de contas? À medida que novos estilos de vida e modos de se relacionar com outras pessoas começarem a se apavorar com o medo de outro contágio, a Igreja poderá ajudar as pessoas a navegarem pelas incertezas espirituais e culturais? Para aqueles marcados pela perda durante a pandemia, a Igreja estará pronta para consolá-los e ajudá-los a se levantar de novo?

Essas são perguntas reais e, assim como em épocas anteriores da história, quando uma peste ou outro desastre recuou, encontrar as respostas exigirá criatividade e colaboração.

É verdade que a Igreja global é um diferente da Itália. Mesmo assim, a disputa de Palermo pode ser uma espécie de canário em uma mina de carvão, alertando os católicos de que, se não tomarmos cuidado, nossas divisões pré-existentes também poderão se colocar no meio do nosso caminho.

 

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