Coronavírus, distanciamento social e a companhia da fé. Artigo de Massimo Faggioli

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14 Março 2020

Este é um momento extraordinário para o mundo, assim como para a Igreja. Em certo sentido, é verdadeiramente sem precedentes pelo impacto que está tendo sobre a vida religiosa, não apenas na Igreja Católica.

A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 13-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

“Se você tem um diário, continue escrevendo. Se você não tem, comece um. Este é um momento extraordinário.” Foi o que eu disse aos meus alunos de graduação no início da nossa última aula presencial no dia 11 de março, pouco antes do intervalo de cinco semanas decidido pela Villanova University.

Este é um momento extraordinário para o mundo, assim como para a Igreja. Em certo sentido, é verdadeiramente sem precedentes pelo impacto que está tendo sobre a vida religiosa, não apenas na Igreja Católica. No dia 12 de março, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias decidiu cancelar todas as reuniões em todo o mundo.

Neste momento de crise de saúde, de vida ou morte, a percepção pode ser a de um golpe final contra uma tradição religiosa já em declínio, uma emergência usada oportunisticamente pelas autoridades seculares e políticas para marginalizar para sempre a religião exatamente quando ela é mais necessária. Mas essa seria uma análise ideológica e egoísta.

Observando o que ocorreu na Itália nas últimas duas semanas e o que está acontecendo em muitas regiões dos EUA, não se pode deixar de notar o estado de suspensão de todas as atividades litúrgicas públicas da Igreja. Na Itália, a proibição de celebrar todas as missas veio do governo e foi aceita rapidamente e sem hesitação pelas autoridades da Igreja.

Alguns importantes intelectuais progressistas católicos italianos escreveram artigos dizendo que os bispos aceitaram isso muito rapidamente. Mas isso ocorreu no estágio inicial desta emergência: existe um consenso, tanto na Igreja italiana quanto no Vaticano, de que essas medidas draconianas são absolutamente necessárias.

Mas a Itália vive desde 1945 um acordo silencioso entre Igreja e Estado. Estou curioso para ver como isso vai se dar nos EUA, dadas as relações históricas e constitucionais muito diferentes entre Igreja e Estado.

Liturgia sem povo em prol do povo

Atualmente, em muitos países, a liturgia (em grego: ação do povo) está suspensa em prol do povo. Isso pode durar semanas ou meses, até as celebrações da Páscoa e, possivelmente, até a temporadas das Primeiras Comunhões (a nossa filha está entre as incluídas) e Pentecostes. Há exemplos de suspensão de missas em algumas áreas atingidas pela peste no passado, mas ainda não há muitos exemplos (como na Itália e agora em Malta) de proibições totais em todo o país da celebração da missa por semanas.

O que significa para a comunidade o fato de não se reunir para a missa por algumas semanas? Nos últimos anos, ficou evidente a virtualização da experiência religiosa (na mídia e nas mídias sociais) em detrimento daquilo que é verdadeiramente sacramental em sua fisicalidade. A suspensão da sacramentalidade implica um distanciamento do caráter “abafado” do catolicismo: os sinos, os odores, todas as obras. É uma espécie de jejum litúrgico.

O bom é que essa suspensão forçada da participação na liturgia da Igreja poderia nos fazer sentir a necessidade de uma desvirtualização. Por outro lado, o perigo é de que a tensão criada por esse profundo e prolongado susto ponha em risco as conexões sociais (com os coparoquianos, com outros pais da escola católica, com vizinhos e colegas) que já são frágeis e difíceis de desenvolver em tempos normais (isso é algo que eu notei e continuo notando depois de 12 anos nos Estados Unidos).

Essa suspensão da celebração da missa também poderia ter consequências eclesiológicas, isto é, no modo como os católicos concebem e imaginam a Igreja. O fato de o papa ser o único a celebrar a missa em público na Itália todos os dias (via internet da capela na residência de Santa Marta) está elevando o papado a níveis que nem mesmo a maioria ultramontanista no Vaticano I, o concílio que declarou o primado e a infalibilidade papais, poderia imaginar.

Por outro lado, se você a assistiu, notou que é uma missa “pé no chão”, em italiano, no rito do Vaticano II (não uma missa em latim pré-Vaticano II), e muito parecida com a missa média dos dias de semana com a sua congregação escassa, cantos às vezes realmente mal cantados, sem o roteiro e a teatralidade das missas papais em São Pedro ou durante as viagens apostólicas.

É, à sua maneira não intencional, uma contribuição para o debate (mais forte no mundo de língua inglesa do que em qualquer outro lugar) sobre a reforma litúrgica do Vaticano II e os desejos de uma “reforma da reforma” neotradicionalista.

Mas eu tenho que confessar: espero que, assim que essa emergência passe, a transmissão da celebração diária da missa com Francisco não continue, caso contrário se tornará supérflua. Em uma Igreja sinodal que tenta se tornar mais missionária sendo toda ministerial, a identificação do papa como “celebrante-chefe” pode ter efeitos colaterais de longo prazo, contrários à visão de Francisco para o futuro da Igreja.

Evangelii gaudium ao extremo

As igrejas de Roma receberam a ordem de fechar, por parte do vigário papal para a Diocese de Roma, no dia 12 de março. Mas a ordem foi modificada no dia 13, para permitir que os párocos abram suas igrejas, se o fizerem com cuidado para limitar o contato entre as pessoas.

Resta ver como essa reversão afetará a recomendação da Conferência Episcopal Italiana de que cada bispo ordene o fechamento de todas as igrejas na Itália até o dia 25 de março pelo menos (algumas conferências episcopais regionais, como a Lombardia, não aceitaram essa recomendação).

De certa forma, essa situação está levando a um extremo o convite de Francisco à Igreja, desde seu primeiro grande documento, a Evangelii gaudium, de novembro de 2013, a “sair” e a deixar para trás a zona de conforto da sacristia. A Igreja “hospital de campanha” de Francisco tem agora que apoiar a situação literal de hospital de campanha em plena guerra, que alguns hospitais do norte da Itália, entre os melhores do mundo, estão enfrentando.

Essa situação está desequilibrando alguns católicos: aqueles que querem brincar de catacumbas, encenando a perseguição durante o Império Romano e celebrando missas clandestinas em uma rejeição ao decreto do governo como se este fosse motivado por sentimentos anticatólicos. Como se o primeiro ministro italiano, Giuseppe Conte, não fosse católico e também um devoto seguidor do Padre Pio.

Mas isso está criando algumas dificuldades terminológicas também para aqueles que continuam descrevendo as missas celebradas sem a assembleia como “missas privadas”, quando está claro que toda missa é pública por definição, quer o povo esteja presente ou não.

Essa crise global da saúde, que está se acelerando em alguns países em crises políticas e constitucionais (principalmente nos EUA), está nos forçando a repensar duramente os conceitos importantes que remodelaram o debate teológico nos últimos cinco anos.

Qual o significado da vulnerabilidade e como ela pode se diferenciar em países e sociedades diferentes? A vulnerabilidade é diferente, durante uma pandemia, entre um país onde existe um forte sistema público de saúde (como na Itália) e um país (como os EUA) onde o sistema público de saúde desempenha um papel de apoio aos serviços de saúde privados com fins lucrativos.

O que significa praticar uma hospitalidade radical em tempos de pandemia? Qual é a verdade em dizer que nos vemos como um mesmo povo de Deus, se não medirmos tudo o que fazemos a partir das necessidades dos mais frágeis entre nós?

Novas fronteiras do bem comum

Essa crise pode ser uma oportunidade para redescobrir a sabedoria da doutrina social católica, especialmente no que diz respeito ao acesso universal à saúde como um direito fundamental, mas também ao papel das regulamentações governamentais em prol do bem comum. Veremos quem entre os episcopados e outras lideranças católicas será receptivo a esse desafio.

O que está sendo imposto a eles e a nós é outra coisa. O primeiro efeito mais mensurável da crise é o redesenho das fronteiras não apenas entre pessoas, mas também entre Igreja e Estado: na Itália, por enquanto, mas em breve em outros países afetados pelo vírus. Os debates dos últimos anos sobre liberalismo e antiliberalismo católicos são agora questionáveis, ou pelo menos envelheceram muito rapidamente.

Não foi o liberalismo que tornou alguns países (como os EUA) mais fracos do que outros na resposta a essa emergência, afastando cientistas e subestimando seu papel na assessoria a líderes políticos. Certamente não é o antiliberalismo que conhecemos que pode dar à ciência a função de dar conselhos aos políticos.

O efeito real, mensurável já na Itália, é o efeito em termos de limites à liberdade religiosa. A fim de proteger os idosos e os vulneráveis, há limites para a liberdade de culto – e o Estado não considera como heroica a sua vontade de se tornar um mártir do coronavírus se você colocar a vida de outras pessoas em perigo, arriscando espalhar a infecção.

Em casos de emergência como essa, ficou claro quem está no comando (os governos) e quem está recebendo ordens (as Igrejas, entre outros). Esse é outro episódio da história da biopolítica como a força mais importante por trás do remodelamento das relações entre Igreja e Estado: as guerras do século XX, as mudanças na moral sexual, a medicalização de todas as etapas da vida, da concepção à morte, e o estado de segurança nacional pós-11 de setembro. Agora, é a vez desta pandemia global.

Os governos nacionais são mais fracos do que costumavam ser, mas menos fracos do que as Igrejas. Quando se trata de proteger o bem comum, os governos nacionais são a autoridade – ou, pelo menos, espera-se que eles sejam, de certa forma, em vão. Existem países em que o papel das autoridades públicas ainda é levado a sério. Veremos o que ocorrerá nos EUA de Trump, onde o colapso da autoridade e da credibilidade dos líderes políticos não é totalmente diferente do colapso da confiança nas lideranças da Igreja. É um teste para os dois.

Os católicos esperam palavras significativas que possam compensar a dieta diária de mentiras e enganos, especialmente em um ano eleitoral.

Mas há algo que não depende dos presidentes, dos primeiros-ministros ou dos bispos. Este momento também está revelando algumas dimensões profundas da fé cristã.

O vídeo desta semana do cardeal Angelo Comastri, vigário geral da Cidade do Vaticano, liderando a oração do Ângelus e do Santo Rosário com alguns fiéis junto ao Altar da Cátedra na Basílica de São Pedro, me impressionou.

Havia um cardeal romano, totalmente sozinho, diante de uma cadeira muito simples, com algumas poucas pessoas sentadas atrás dele, em uma basílica tão vazia quanto nunca antes: um ícone dos momentos de solidão gritante do fiel no mundo secular, mas sempre na companhia da fé e de outros fiéis, escassos, mas sempre presentes, congregados em algum lugar.

 

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