O vírus sacode a Igreja. “Chega de egoísmo.” Entrevista com Francesco Montenegro

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22 Abril 2020

“Bom dia, aqui é o Pe. Franco.”

Cardeal?

“Desculpe, minha mãe não me chamou de ‘Eminência’. Caso contrário, eu teria dito: ‘Bom dia, aqui é o Pe. Eminência’. Então, recomecemos: ‘Bom dia, Eminência’. Eu olho as minhas mãos para ver se trabalhei bastante, não me importo com o hábito que visto. É claro que a pandemia me impõe que eu grave vídeos e missas, mas eu prefiro a fé vivida.”

O Pe. Franco é o cardeal Francesco Montenegro, siciliano de Messina com origens na Puglia, arcebispo de Agrigento, a diocese que abraça a icônica Lampedusa. É um pastor com um rebanho, não com uma cátedra.

Ele estava ao lado de Jorge Mario Bergoglio na primeira viagem como pontífice, no dia 8 de julho de sete anos atrás. O Papa Francisco jogou uma coroa de flores no mar de Lampedusa, quimera e muitas vezes túmulo para milhares de migrantes. Lá, denunciou a indiferença globalizada e depois pensou, talvez, em entregar o barrete cardinalício ao Pe. Franco.

A reportagem é de Carlo Tecce, publicada em Il Fatto Quotidiano, 20-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Agora Agrigento e a província reabrem as igrejas.

Por algumas horas da manhã. Os casamentos, apenas se forem realmente urgentes: o padre, os cônjuges e as testemunhas. Tocarei os sinos com mais frequência para confirmar a nossa presença.

O confinamento agitou a Conferência Episcopal Italiana e provocou uma intervenção do Papa Francisco.

Eu sofri muito, não ordenei barrar as entradas com prazer, mas agi pelo bem comum. Agrigento tem uma saúde mal equipada, poucos leitos nos hospitais. Era meu dever impedir ocasiões de contágio, não expor as pessoas ao perigo. Disse-se: por que alimentar os fumantes com as tabacarias e não o espírito cristão com as igrejas? E alguém comentou: a fé se rende à ciência. Eu acredito em um Deus presente, próximo do ser humano em qualquer situação, mas devo respeitar as indicações do Estado, avaliar o contexto e proteger os mais frágeis. Isso não significa tornar-se reféns. Eu sou cristão e sou cidadão. A fé não é uma varinha mágica que faz as trevas desaparecerem. É a luz que nos leva a caminhar no túnel.

Alguns sugeriram que houvesse missas na Páscoa.

A nossa fé tem um aspecto comunitário e sacramental. Eu aconselhei os paroquianos a colocarem o Evangelho no centro da casa, assim como nós, na igreja, temos o sacrário. Não é necessário praticar a fé dos gestos, ir à missa com o sentimento de quem paga os impostos, tirar o pó da consciência e se sentir um bom cristão ou se iludir de ter arrancado um pedacinho do Céu. Essa pandemia é uma experiência devastadora. Os escombros se acumulam ao nosso redor. Amanhã seremos chamados a reconstruir – escreva com letra maiúscula, por favor – uma nova Igreja, uma nova Sociedade, uma nova Europa.

Em ordem: uma nova Igreja.

O nosso perímetro deve ser ampliado, não restringido. Os pobres são os grandes ausentes. O Papa Francisco escancarou as janelas, às vezes sofre a solidão. Não podemos tolerar os cristãos que desprezam os imigrantes, não podemos aceitar a fé do sofá ou dos palácios. O vírus nos levou a lançar botes salva-vidas, criaram-se vínculos sólidos embora a distância, há um movimento que se reacendeu. Não desperdicemos essa oportunidade, não levantemos barreiras.

Uma nova Sociedade.

Removamos a lógica do mais forte. Derrubamos os muros, dentro e fora. Não devemos nos fechar em nós mesmos, dormir serenos enquanto milhares de pessoas morrem afogados na água e milhões de africanos vivem com alguns dólares em barracos de lama. Tudo isso nos diz respeito de perto, é uma responsabilidade nossa. Não podemos louvar a riqueza e esquecer a saúde pública. Não podemos excluir os idosos, aqueles que nada têm, os deficientes. Nos hospitais, após temporadas de cortes nos recursos, foi preciso escolher quem tratar. As restrições econômicas destroçaram a saúde universal. O mundo que criamos, que esqueceu a natureza e o essencial, está caindo sobre nós por causa de um vírus. Sentíamo-nos senhores, vemo-nos escravos. Francisco cita a ecologia integral. Tentemos ter uma visão ampla, não nos determos nos nossos pés, mas sim movê-los. Que nação hoje pode ter a arrogância de gritar “eu sou suficiente para mim mesma”?

Uma nova Europa.

Ocupei-me de migrantes para a Conferência Episcopal Italiana e fui presidente da Cáritas. Muitas vezes conversei com os funcionários de Bruxelas, estive no Parlamento e também em um Conselho Europeu, e lamento guardar péssimas recordações. A União sempre seguiu a bússola do rigor contábil, não da prosperidade social. Não reduziu as distâncias entre Norte e Sul. Eu tenho medo que a sigla UE se torne “União de Egoísmos” e perca a sua utilidade e o seu papel na história. Eu peço à Europa que tenha coragem, que seja solidária, que invista no futuro. A Europa do dinheiro é de curto prazo. A pandemia nos oferece a oportunidade de remediar os erros e deve ser explorada com inteligência. Eu li que suplicaram as desculpas da Itália por ter sido abandonada. O perdão não deve ser negado, mas agora impeçam que a Itália se despedace. Sob a emergência sanitária, há uma emergência social de proporções imensas, e eu já a percebo. Será difícil resistir por muito tempo selados em casa. Vejo uma velha pobreza.

Como assim?

As famílias batem nas portas pelo pão, pela massa, pelo aluguel. A febre preocupa, mas os pais não sabem como saciar os filhos. Agrigento tem um pé na África, somos o último posto avançado da Europa. Não há fábricas ou indústrias a serem postas novamente em movimento. Existem pequenos empregos, até mesmo irregulares, que não se fazem mais, o turismo acabou, os hotéis estão vazios, os campos não são cultivados.

Um apocalipse desencadeado por um organismo invisível.

Não, seremos melhores.

Está certo disso?

A fé é crer que o sol nascerá amanhã.

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