“Pela primeira vez na história humana, a produção de conhecimento funde-se com a produção de lucro”. Entrevista especial com Nick Couldry

A ideia de que podemos conhecer o mundo social, suficientemente, através de proxies gerados por algoritmos impessoais automatizados é “profundamente errada”, adverte o pesquisador

Foto: Pixabay

Por: Edição Patricia Fachin | 12 Março 2021

 

Com o advento da internet e das tecnologias digitais, o capitalismo entrou em um novo estágio de desenvolvimento, denominado de colonialismo de dados. Segundo Nick Couldry, estudioso do assunto e professor da London School of Economics and Political Science - LSE, no século XXI “todas as transações tornaram-se transações de dados, transações organizadas em torno da geração de dados”, que estão transformando todas as esferas da vida humana, a tal ponto que, “pela primeira vez na história humana, a produção de conhecimento, de como conhecemos o mundo social, funde-se com a produção de lucro”.

 

A consequência disso, explica, é que a fusão entre produção de conhecimento e lucro está criando uma “nova forma de conhecimento social, gerado pela reunião de dados, que está esmagadoramente em mãos privadas. (...) Esse conhecimento social é [financiado e] analisado em privado. O seu uso acontece em privado, para lucro privado na maioria dos casos, ao menos que os governos recebam acesso privilegiado, para os quais precisam negociar. (...) Não podemos ver como este conhecimento, baseado em dados do mundo social, está sendo produzido e usado, a favor ou contra nós”.

 

De acordo com Couldry, o capitalismo de dados está construindo uma nova ordem social, que precisa ser enfrentada de modo coletivo, a partir de um esforço comum. “Como podemos resistir? Em primeiro lugar, precisamos pensar séria e coletivamente, reivindicar o tempo e o espaço de nossas vidas a partir daquelas forças colonizadoras. Um modo como podemos fazer isso é nomeando o que acontece com o colonialismo de dados e aprendendo com as lutas anteriores de decolonização, repensando as nossas relações com a tecnologia”.

 

Na conferência intitulada “Colonialismo de dados e esvaziamento da vida social antes e pós pandemia de Covid-19”, ministrada no XIX Simpósio Internacional IHU Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida em tempos de pandemia, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em dezembro do ano passado, Couldry salientou a dificuldade de encontrar alternativas diante deste novo estágio do capitalismo, especialmente no contexto da pandemia de Covid-19, em que parte significativa das atividades segue sendo realizada a partir do uso de plataformas digitais e, portanto, da produção e extração de novos dados. “Na Covid-19 e nas reações a ela, onde quer que estejamos vivendo, seja no Brasil ou na Inglaterra, seja nos EUA, na África do Sul ou na Índia, a vida cotidiana está cada vez mais sendo organizada em torno das plataformas, de suas necessidades, em torno das funcionalidades, não necessariamente em torno das nossas necessidades, dos nossos valores”. Apesar dos desafios, encoraja: “Em todo esse tempo, a imaginação é fundamental”.

 

A seguir, reproduzimos a conferência ministrada por Nick Couldry no XIX Simpósio Internacional IHU Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida em tempos de pandemia, no formato de entrevista.

 

Nick Couldry (Foto: Fapeam)

Nick Couldry é professor de Mídia, Comunicação e Teoria Social no Departamento de Mídia e Comunicação da Escola de Economia e Ciência Política de Londres (The London School of Economics and Political Science – LSE). Como sociólogo de mídia e cultura, ele estuda a comunicação pela perspectiva do poder simbólico historicamente concentrado nas instituições midiáticas. É autor de The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Colonialism

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como os dados estão colonizando a vida humana?

Nick Couldry - Antes de qualquer coisa, gostaria de introduzi-los na discussão do livro que publiquei no ano passado com Ulises Mejias, autor mexicano, chamado “The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Colonialism”. Quero contextualizá-los da discussão como uma forma de pensar os impactos do colonialismo de dados sobre o mundo social, o mundo cotidiano em que vocês e eu vivemos, nos países onde moramos. Depois, vou explicar como o colonialismo de dados é relevante para a crise particular da pandemia de Covid-19.

A questão central do livro é bem simples: O que está acontecendo com os dados? Em outras palavras, como devemos enquadrar, entender todas essas coisas novas – e outras nem tão novas assim – que acontecem com os dados depois do advento da Inteligência Artificial, do aprendizado de máquina (machine learning), entre empresas e governos, na sociedade e na vida humana, na vida de cada um de nós? Como devemos entender essas coisas?

 

 

Colonialismo dos tempos modernos

Nos últimos anos, muitas ideias estão sendo debatidas. A maioria delas fala do capitalismo. A ideia de que estamos adentrando um novo estágio do capitalismo, chamado capitalismo digital, ou capitalismo informacional. Talvez, um capitalismo de plataforma, ou como Shoshana Zuboff diz: vivemos num capitalismo de vigilância. Ou, mais modestamente talvez, a ideia de que vivemos um capitalismo de dados.

Há muita coisa importante nessas várias ideias. Reconhecemos isso no livro. Mas nele perguntamos se há algo potencialmente ainda maior ocorrendo com os dados hoje. Algo que vai realmente mudar o curso da História. Em outras palavras, uma nova fase nas relações entre colonialismo e capitalismo, uma relação que existe há 500 anos pelo menos. Pois foi o colonialismo histórico, começando pela América Latina em 1500 aproximadamente, que pavimentou o caminho para o que conhecemos, hoje, como capitalismo.

Percebemos essa associação colonial com o que acontece com os dados, hoje, nos clichês empresariais. Temos exemplos disso a todo instante. Por exemplo, na famosa frase da capa da revista The Economist, de 2017, que dizia: “Dados são o novo petróleo”. Naturalmente, o petróleo é a imagem mais comum de um ativo colonial.

 

 

Essa frase é só uma metáfora inofensiva? Ou poderia ser uma ideologia que encobre, torna quase natural uma fase nova, importante da apropriação dos recursos planetários, uma apropriação histórica de terras que, com certeza, merece o nome de um novo colonialismo?

Essa possibilidade, de que pode haver algo profundamente colonial ocorrendo com os dados hoje, surgiu nas discussões em torno do escândalo, dois anos atrás, da Cambridge Analytica – pequena empresa que usou microdados do Facebook de milhares de usuários para enviar mensagens que buscaram influir na opinião política deles. Poucas semanas depois do escândalo, perguntaram para a pessoa à frente do caso, Christopher Wylie, então funcionário da Cambridge Analytica, sobre os planos da empresa em ampliar as tentativas desesperadas de influir na política da Índia. Ele respondeu que era verdade, e que essa era a aparência do colonialismo moderno.

“É o colonialismo dos tempos modernos”. Interessante.

 

 

IHU On-Line – O que isso significa?

Nick Couldry - No livro, argumentamos que não se trata de uma metáfora. Muitos usam a metáfora do colonialismo para referir coisas ruins, o que é fácil demais. Isso não nos ajuda a entender o que se passa. No livro, dizemos que o que está ocorrendo com os dados, no mundo todo, representa genuinamente uma nova fase, um novo estágio do desenvolvimento do colonialismo. Um colonialismo de dados.

No longo prazo, isso preparará a base para um novo modo de produção capitalista, assim como o colonialismo original há 500 anos preparou a base para o capitalismo industrial, surgido 200 anos depois. E este novo colonialismo se apropria de um tipo diferente de ativos. O antigo colonialismo se apropriava da terra, de minerais e produtos agrícolas. Se apropriava das pessoas, principalmente escravos, para extrair valor da terra.

Mas o novo colonialismo de dados se apropria de nós, seres humanos, do fluxo da nossa vida cotidiana. E, claro, importa lembrar que o colonialismo histórico não morreu, muito embora as instituições dos governos coloniais tenham desaparecido. As relíquias, as sobras do colonialismo histórico ainda continuam. E coexistem com este novo colonialismo de dados e seu legado.

 

 

Colonialismo de dados x colonialismo histórico

Vocês talvez estejam se perguntando, especialmente vivendo no Brasil, país que esteve no centro do colonialismo histórico: este colonialismo de dados que funciona via telefones celulares, laptops, tablets, podemos realmente chamar de colonialismo? Pode ser comparado com a violência horrível do colonialismo histórico?

Não dizemos isso. O que dizemos é que há continuidades entre esse novo colonialismo e o colonialismo histórico, continuidades que devem nos preocupar. Quero acompanhá-los nessa questão.

O que é colonialismo de dados conforme o entendemos no livro? Trago uma versão condensada da nossa definição. Colonialismo de dados é uma ordem emergente, social e econômica para a apropriação da vida humana de forma que se possam extrair continuamente dados dela, visando o lucro. Portanto, é um modo de configurar o mundo inteiro, de tal forma que um recurso novo possa ser extraído – e esse recurso é a vida humana a partir da qual se pode extrair um valor econômico. Digo “visando lucro”, mas naturalmente o valor pode ser extraído de outras formas, tais como os benefícios sociais que o governo recebe ao nos rastrear mais de perto, quando ganha acesso às informações que as corporações comerciais têm de nós.

Nesse debate, precisamos distinguir claramente entre o colonialismo histórico que, em muitas de suas instituições formais, acabou nas décadas de 1960 e 1970, e o movimento pós-colonial. Precisamos distinguir aquela forma institucional que o sociólogo peruano Aníbal Quijano chamou de colonialidade.

 

 

Colonialidade

Colonialidade são modos de pensar, é a ideia básica de que o mundo está aí para ser tomado por uma parte do mundo, as potências coloniais. Essa ideia ainda vive e se faz presente no novo colonialismo: a nova colonialidade, o colonialismo de dados.

 

 

IHU On-Line – Como este novo colonialismo de dados opera?

Nick Couldry - Sustentamos que os modos nos quais este novo colonialismo opera, as escalas nas quais opera em grande parte de seus contextos, diferem do colonialismo histórico que tão bem entendemos. Mas a função, a finalidade subjacente, o núcleo deste novo colonialismo é exatamente o mesmo do colonialismo histórico. É o de despossuir, apropriar-se dos recursos do mundo para o bem de uns poucos, de uma parte do mundo.

 

 

Vantagens da abordagem colonialista para compreender o presente

Talvez ainda estejamos céticos quanto a essa discussão. Então, me permitam resumir o que Ulises e eu consideramos as vantagens desta abordagem, para entender o que acontece com os dados no Norte e no Sul globais. É um princípio polêmico, então vejamos quais podem ser as vantagens dessa perspectiva colonial sobre o que acontece com os dados.

Basicamente há dois tipos de vantagens. Algumas têm a ver com o escopo do que entendemos quanto ao que acontece com os dados, e outras com a forma como entendemos a profundidade das consequências daquilo que está acontecendo com os dados. Comecemos com as vantagens de escopo.

Podemos começar com a questão da escala temporal. Uma perspectiva colonial nos permite olhar para a história nas últimas quatro décadas – décadas em que a internet surgiu como um fenômeno comercial – e, então, mais recentemente com o surgimento das plataformas sociais. Na perspectiva colonial, podemos lançar um olhar mais além: nos últimos 500 anos.

Isso nos permite olhar para o futuro, não só para o que acontece hoje, mas, com a analogia do colonialismo histórico, olhar adiante, para o palco futuro do capitalismo, que pode ser gerado por este novo colonialismo de dados. Podemos ver o que está acontecendo com os dados, como uma forma nova, historicamente significativa, da extração dos recursos, tão significativo quanto aquele do colonialismo histórico original.

Há uma outra vantagem de escopo que, em termos dos tipos de atividades, achamos relevante para este novo colonialismo. Ele não tem a ver apenas com o que normalmente pensamos das nossas plataformas digitais, de mídias sociais: o Facebook ou mesmo o Google. Essas coisas são realmente importantes, mas são também apenas uma parte do que acontece com os dados neste colonialismo de dados. Também é importante a expansão massiva da vigilância e do monitoramento dos corpos humanos via diferentes formas de trabalho, especialmente o trabalho de baixo status: uma transformação profunda nas condições trabalhistas atuais. Igualmente importante é o surgimento de situações completamente novas de trabalho, a chamada economia gig: Uber, Lyft, Airbnb e outros. Todos eles são modos diferentes de gerar valor através do uso de plataformas e sempre via extração de dados.

Em seguida, também relevante, está a expansão da logística. Todos queremos que os nossos pacotes via Amazon cheguem no prazo, mas isso exige o rastreamento, de momento a momento, dos movimentos dos produtos no espaço. Isso, naturalmente, envolve rastrear os trabalhadores envolvidos na movimentação destes produtos, ampliando, intensificando o papel da vigilância nessa nova economia “dadificada”. A logística, portanto, é importante.

 

 

Dados corporativos internos

Por fim, precisamos olhar, como parte do colonialismo de dados, para a ascensão de um dado corporativo interno. É interessante que a IBM – uma grande empresa que nem sempre colocamos entre as grandes do ramo tecnológico, pois não tem plataformas digitais – possui uma visão distintiva do colonialismo de dados e das oportunidades da era de dados.

Em seu relatório anual de três ou quatro anos atrás, a IBM disse que não se preocupava com as grandes plataformas tecnológicas porque 80% dos dados valiosos do mundo são dados corporativos internos. Isso é interessante porque o que as corporações entendem como dados internos delas podem ser, na verdade, os detalhes da nossa vida cotidiana. Por exemplo, se temos um refrigerador inteligente (smart), em que a questão sobre se tenho ou não leite na geladeira pode ser uma escolha pessoal para mim, mas é também um dado deste dispositivo, o qual, do ponto de vista do fabricante e do seu servidor, é um dado interno corporativo.

 

 

Construção de uma nova ordem social e econômica

Estas são as vantagens de escopo em termos de quão amplo olhamos, no tempo e no espaço, o fenômeno do colonialismo de dados, o que vem ocorrendo com os dados. Mas há um outro tipo de vantagem em termos da profundidade de como entendemos as transformações vindas a partir do que acontece com os dados. No livro, sustentamos que essa não é apenas uma questão que envolve tecnologias e os usos das mídias. Temos olhado para a construção de uma nova ordem social e econômica. Um novo modo de viver em que todos estamos envolvidos, que vinculará novas maneiras, em todos os aspectos da vida, criando novas formas de dependência da tecnologia e conexão, novas formas de nos governar, novos modos de nos reger. Tudo baseado em valores que parecem bastante positivos. São os valores da conveniência, customização. Como dizem os marqueteiros: “personalização”, porque, para ter anúncios personalizados, precisamos estar continuamente sujeitos a uma vigilância personalizada.

Portanto, uma perspectiva colonial, que nos lembra dessa nova ordem social, radicalmente diferente, surgida quando as potências coloniais chegaram à América Latina, ajuda a ver que hoje estamos olhando para o surgimento de uma nova ordem social radicalmente nova.

Finalmente, talvez a continuidade mais profunda entre o colonialismo de dados atual e o colonialismo histórico esteja no nível da racionalidade: a lógica, o pensamento subjacente que possibilita, justifica a apropriação dos recursos mundiais por uma parte pequena do mundo.

É a ideia de que o Ocidente tem uma relação privilegiada com a racionalidade, a qual, de 1500 em diante, no tribunal da Espanha, foi usada para justificar a ideia de que esse país poderia se apropriar dos recursos da América Latina. Quijano chama de “o princípio subjacente da colonialidade”, e nós sustentamos que esse é o núcleo de todos os discursos em torno dos dados, dos Big Data, das tecnologias para o bem social, e assim por diante, ideias que se difundem nas empresas e na sociedade civil hoje. Porque, subjacentes a tudo isso, estão as conexões entre poder, conhecimento e racionalidade que encontramos no coração da modernidade e no coração do colonialismo, e as conexões que unicamente entendemos caso contemos com a ajuda de pensadores decoloniais, críticos do colonialismo, não só com os que criticam o capitalismo.

 

 

Dados mudam nossa visão histórica

Portanto, creio que estas são as vantagens da perspectiva colonialista. Mas, no livro, nós nos dedicamos também a analisar o que significa pensar colonialmente sobre o que ocorre com os dados hoje, em termos de como eles mudam a nossa visão da história, de tudo o que tem levado à situação atual. E as oportunidades que esta perspectiva nos dá para interpretar o que se passa em nosso presente, nas novas coisas com as quais estamos nos acostumando: os nossos dispositivos, as novas plataformas, em particular na crise da Covid-19, e para entender isso tudo sob uma perspectiva colonial através das lentes dos últimos 500 anos de relação entre colonialismo e capitalismo.

 

IHU On-Line – Como a história colonial nos ajuda a compreender o presente?

Nick Couldry - Me permitam dar um exemplo de como a história colonial nos ajuda a iluminar aquilo que acontece diariamente nos detalhes banais das nossas vidas. Pretendo comparar dois documentos, e aqui conto com uma grande ideia que Ulises [Mejias] teve quando começamos a preparar o nosso livro.

Temos aqui um documento bastante conhecido. Estes são os termos de serviço que aceitamos quando instalamos o Google Chrome nos nossos computadores, laptops, celulares, tablets. Muitos de nós usamos o Google Chrome. É um dos principais navegadores de internet do mundo.

 

Termos de Serviço x “O Requerimiento”

Leiam o que aceitamos quando instalamos o Google Chrome:

“Você dá ao Google o direito perpétuo, irrevogável, mundial, livre de royalties e não exclusivo de reproduzir, adaptar, modificar, traduzir, publicar, apresentar publicamente e distribuir esse conteúdo apresentado, publicado ou exibido, ou através dos Serviços”.

É uma declaração bastante ampla e, claro, ninguém de vocês leu tais termos de serviço. Ninguém os lê. Eles ocupam páginas e páginas. Ninguém tem tempo para isso. Tudo o que queremos é entrar e usar o Google Chrome para encontrar aquilo que precisamos. Ninguém tem tempo para ler esses termos e, se alguém tiver, provavelmente não entenderá em detalhes, porque foram feitos para serem difíceis de entender.

Comparemos estes termos bastante normais, banais, de serviços, com os quais muitos de nós já concordaram, com outro documento de 500 anos atrás. Este documento chama-se “O Requerimiento”. É um documento escrito em 1513 na corte espanhola para justificar legalmente a apropriação, pelo rei da Espanha, dos recursos da América Latina. Na corte espanhola, havia quem se preocupasse com a inexistência de uma base legal para as apropriações. Estavam preocupados também porque as pessoas, os indígenas da América Latina, eram considerados cristãos em potencial. Portanto, como era possível justificar o fato de levar tudo o que tinham ou matá-los? Não era possível. Se fossem cristãos em potencial, almas poderiam ser pedidas.

Mais tarde, a visão a respeito destes cristãos em potencial mudou e eles foram considerados selvagens sem direitos. Inicialmente, essa não era a visão. Mas a decisão acabou sendo a de que era necessário dar uma justificativa legal para a apropriação dos recursos, e tal foi feito com o documento “O Requerimiento”, que traduzimos aqui.

Este documento seria lido em voz alta pelos conquistadores, montados em cavalos, creio eu, no meio da noite, a três ou quatro quilômetros do vilarejo de onde, no dia seguinte, eles tomariam o ouro. Naturalmente, eles leram em espanhol, língua que sabiam que o povo local não entenderia. Estes nem sequer estavam no local. Mas os conquistadores leriam o documento em voz alta.

Aqui está um exemplo do que diz o documento:

“Se assim não fizerem, ou se maliciosamente adiarem a decisão [da nossa apropriação do ouro, basicamente], certifico que, com a ajuda de Deus, entraremos poderosamente no seu território, faremos guerra contra vocês de todos os modos e maneiras possíveis, e os sujeitaremos ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Majestades. Tomaremos como escravos a vocês, suas mulheres e seus filhos, e como tais os venderemos e disporemos deles do modo que ordenarem Suas Majestades, e tomaremos os seus bens, e a vocês faremos todos os males e danos de que formos capazes...”. (Termos de Serviço da Invasão Colonial Espanhola, 1513, Requerimiento.)

 

Envolvidos na expansão colonial

Os paralelos são realmente impressionantes. Agora, vejamos quem está fazendo isso. No livro, chamamos as várias empresas envolvidas nesta expansão colonial, que se apropriam da vida humana para o lucro, de “setor da quantificação social”, que é o setor da indústria dedicado ao desenvolvimento da infraestrutura requerida para aquele leque massivo de atividades de extração de dados a partir da vida cotidiana.

Conhecemos as maiores companhias envolvidas. No Ocidente elas são chamadas de GAFA: Google, Apple, Facebook e Amazon. Podemos acrescentar a Microsoft também. Na China, existe um conjunto paralelo de plataformas e organizações massivas: Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi. Todas essas empresas, dizemos no livro, são monopólios e é bem comum falar delas como monopólios. Mas há algo ainda maior. São o que os economistas chamam de “monopsônio”.

 

Monopsônio

Monopólio é quando se tem o controle exclusivo na venda de alguma coisa. Monopsônios são um pouco mais raros. São empresas que têm um domínio singular sobre a capacidade de comprar aquilo que temos. Sem dúvida, o Google, através do YouTube, é um monopsônio. Porque, se gostamos de gatos, das fotos e dos vídeos deles que fizemos em nosso celular, vamos desejar colocá-los em algum lugar e compartilhar com os amigos. Onde mais, exceto o YouTube, faríamos isso? Sabemos que todos usam o YouTube, então ele é o lugar onde precisamos ir para “vender” o nosso vídeo de gatos.

Mas, claro, como não tem outro lugar para vender, também não recebemos nada em troca, a não ser o uso do serviço. O preço cai a zero, e é exatamente assim que os monopsônios funcionam na economia. Estamos, portanto, vendo monopólios/monopsônios híbridos. O Google é uma empresa limpa, exemplar, e possui um paralelo bastante forte na história do colonialismo, que foi a Companhia Britânica das Índias Orientais, a qual era tanto a vendedora dos produtos quanto a compradora dos recursos da Índia, dominando a economia inteira: economicamente e através da força.

 

 

IHU On-Line – Além dessas empresas, quais são os outros atores que fazem parte do setor da quantificação social?

Nick Couldry - Estes são somente os grandes atores. Existem muitos outros atores de tamanhos diferentes no setor da quantificação social envolvidos em hardware, software, plataformas de todos os tipos e tamanhos, análise de dados que processam dados extraídos das plataformas, e corretagem de dados, isto é, empresas de dados que vendem a terceiros os dados que reuniram das plataformas.

 

IHU On-Line – Como tem se dado a transformação do mundo social através das infraestruturas de mídia?

Nick Couldry – Tenho pensado sobre o papel do colonialismo de dados em nosso mundo social cotidiano. O que se instalou como uma dinâmica básica do mundo cotidiano que vocês e eu compartilhamos com os amigos, familiares, funcionários, as instituições que conhecemos.

O primeiro passo é pensar sobre aquilo que chamamos, no livro, de relações de dados. Como o setor de quantificação social trabalha para construir uma nova ordem social? Aqui, precisamos pensar sobre as teorias do capitalismo. Precisamos voltar a Karl Marx, mas usar a sua teoria com criatividade.

Karl Marx explica a reprodução do capitalismo como um fenômeno exclusivamente social através das relações de trabalho, com cada um de nós concordando em vender o nosso trabalho, de forma “commodificada”, em troca de salários, em um mercado de trabalho commodificado. Sem dúvida, isso continua sendo parte importante de como o capitalismo funciona, inclusive no novo contexto do colonialismo de dados. Mas não basta para entender o que acontece com as transformações atuais com o colonialismo de dados.

 

Dados extraídos no tempo de descanso

O motivo aqui é que sabemos que os dados estão sendo extraídos de nós, mesmo quando sabemos que não estamos trabalhando. Pode ser quando descansamos nos fins de semana, quando enviamos fotos a amigos e familiares depois da nossa refeição, quando saímos juntos, ou algo legal que vemos e sabemos que alguém próximo gostaria de ver, através do WhatsApp, por exemplo. Talvez esse momento seja o tempo que reservo para não trabalhar, para não estar sob pressão do empregador. Mas também sabemos que, nesses momentos, dados estão sendo extraídos de nós. Um valor econômico está sendo gerado através dos dados dessas imagens, incluindo os metadados associados a elas, que informam o que envio e como envio.

Isso significa que precisamos pensar sobre a reprodução do capitalismo, não só através das relações trabalhistas, mas também das relações de dados, que definimos como os modos de reprodução da vida social. Basicamente, é tudo o que fazemos, todas as interações nas quais nos envolvemos para um novo propósito, isto é, otimizar a extração de dados para o lucro.

 

 

Abstração, o núcleo do que acontece com os dados

Contar com um teórico radical, de tradição marxista, chamado Moishe Postone, falecido dois anos atrás, ajuda a entender essa ampliação massiva dos modos capitalistas de reprodução de si.

Postone sustentava que o núcleo da teoria original sobre o capitalismo, de Marx, e de como ele se reproduz socialmente, não são as relações trabalhistas, nem sequer a commodificação das atividades que possibilitam as relações capitalistas de trabalho. Pelo contrário, era o ato nuclear fundamental da abstração – abstração a partir do fluxo das coisas que faço, uma tarefa abstrata, definida de tal forma que pode ser vendida a um preço no mercado de trabalho.

E essa ideia de extrair, a partir do fluxo da nossa vida cotidiana, as coisas que passam pela nossa cabeça, as coisas que simplesmente queremos dizer ou compartilhar com os entes queridos, abstrair atividades vinculantes, que podem gerar resultados específicos, que poderiam ter um preço específico de venda num mercado de dados – isso é a abstração, o núcleo do que acontece, hoje, com os dados.

Lendo corretamente Marx, tudo isso é também o centro de como o capitalismo sempre socialmente se reproduziu nos últimos dois séculos. Acontece que agora ele opera numa segunda modalidade, que são os dados, não só as relações de trabalho. E através da vida social ordinária, tudo na vida social, incluindo aqueles momentos em que sabemos que não estamos trabalho, pode se tornar um fator direto, um insumo para a produção capitalista. O que significa que a vida humana está sendo anexada ao capitalismo via processos de monitoramento e influência contínuos de marqueteiros do nosso comportamento, com implicações profundas à liberdade – ou, aquilo que chamamos no livro, ao núcleo da liberdade: o espaço do eu.

 

 

Espiral de dados

Sabemos como isso acontece diariamente. Já que concordamos, não importa o que pensamos a respeito. Caímos numa espiral de relações de dados sempre quando baixamos um aplicativo em nosso celular, quando nos juntamos a uma plataforma e configuramos um dispositivo inteligente. Sabemos que estamos aceitando os termos e condições da extração de dados. Entramos naquela espiral de relações de dados.

O interessante aqui é que fazemos isso normalmente sem nenhum embate físico. Apenas clicamos, e a coisa acontece. Não há violência, obviamente. Não seria isso uma diferença fundamental com o colonialismo histórico? Sim, é. Mas há uma boa razão para essa diferença, e a razão é que, quando o colonialismo histórico começou, 500 anos atrás, havia uma relação entre dois grupos de pessoas que não tinham base alguma para as relações sociais. Afinal, não se conheciam. Era o novo mundo sendo descoberto de surpresa pelos europeus. Consequentemente, havia apenas duas maneiras de se apropriar do ouro: violência física ou mentira, e os conquistadores usaram ambas as formas.

Hoje, o novo colonialismo opera sobre uma base completamente diferente. Ele se apresenta depois de dois séculos de relações sociais capitalistas. Portanto, em grande parte do tempo não há necessidade de violência física. Apenas um pequeno ajuste no histórico jurídico que governa como o meu celular opera é o que basta para mudar a relação entre mim e o fluxo da minha vida cotidiana, perdendo o controle dela, passando adiante o controle dos fluxos de dados para uma corporação externa. Eis uma diferença grande, e está no centro de como a permanência de dados opera.

 

Mudança econômica e transformação das relações sociais

Como dito, a questão é saber como isso faz diferença em nosso mundo social, numa escala maior. E o quarto capítulo do nosso livro dedica-se a esse tema. Um ponto crucial, no qual nos baseamos, no livro, é um outro ponto de Marx, de que uma mudança econômica grande não apenas acontece porque a economia faz parte da sociedade. A mudança econômica só acontece quando existe uma transformação profunda das relações sociais.

A teoria marxista da commodificação, do fetichismo da mercadoria, era a forma que ele tinha para explicar essas coisas, nas circunstâncias históricas do final do século XIX. Um outro grande pensador, o historiador da economia Karl Polanyi, 60 ou 70 anos depois, no livro “The Great Transformation”, refletiu sobre a emergência do capitalismo industrial na Europa. Em termos de transformação da história social, Polanyi sustentou que “uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado”. Em outras palavras, primeiro é preciso transformar as relações sociais para que elas possam se tornar relações de mercado. O autor argumentava que isso aconteceu no começo do século XIX via estímulos altamente artificiais administrados ao corpo social. É uma frase muito interessante. Polanyi a escreve no começo do século XIX, mas acho que não teríamos uma frase melhor para resumir o que era o Facebook quando foi introduzido em 2005 – um estimulante altamente artificial administrado ao corpo social.

 

 

A produção de conhecimento funde-se com a produção de lucro

Como resultado do que Polanyi diz no século XIX, todas as transações tornam-se transações financeiras. Mas poderíamos dizer que, no começo do século XXI, todas as transações tornaram-se transações de dados, organizadas em torno da geração de dados. E há nisso um aspecto mais profundo, de que pela primeira vez na história humana a produção de conhecimento, de como conhecemos o mundo social, funde-se com a produção de lucro. Isso porque os dados são as duas coisas: uma pequena parte de informação, que se torna conhecimento, e uma unidade que pode gerar lucro, que pode ser trocada em um mercado visando ao lucro.

Portanto, no livro, argumentamos que, como parte do colonialismo de dados, uma nova transformação social profunda está em andamento, uma nova ordem social que torna possível as transformações econômicas implicadas pelo colonialismo de dados, o que pavimentará a base para um novo capitalismo, em algum momento no futuro.

 

 

Estas mudanças no mundo social são complexas, porque envolvem cada aspecto do mundo social, incluindo como o conhecemos – os fatos básicos e as informações que temos para falar do mundo social. Então, isso é bastante complexo e ajuda a entender as consequências do colonialismo de dados para o conhecimento social. Serve para comparar a nova forma de conhecimento social via dados com o antigo modelo de conhecimento social, que fez parte da transformação sobre a qual Karl Polanyi escreveu em suas análises do surgimento do capitalismo industrial.

O conhecimento social antigo dava-se na forma de estatísticas: fatos sobre as sociedades, pobreza, suicídio, que emergiram no século XIX como um movimento massivo, parte da construção do governo e da economia em tempos modernos. Este conhecimento, no século XIX, era publicamente financiado; os dados eram reunidos via atividades governamentais através dos censos, de dados estatísticos públicos. Os dados eram analisados publicamente e postos em uso por meio das políticas públicas como parte do debate público. Isso tudo era feito às claras, sendo matéria de controvérsia política na Europa e nos EUA durante o século XIX.

Consequentemente, embora houvesse problemas com essa forma de conhecimento social, com o que ela incluía e excluía, um bom aspecto disso foi que este conhecimento era passível de responsabilização pública. Debatia-se sobre ele, em público. Houve grandes controvérsias envolvendo cientistas sociais, e mesmo romancistas, como Charles Dickens, acabaram envolvidos no debate sobre se as estatísticas provavam que tínhamos livre arbítrio.

Isso tudo era feito às claras e, como resultado, independentemente dos problemas dessa forma de conhecimento social, ele era relativamente transparente. As pessoas tinham ciência de como o conhecimento era produzido e quais problemas poderiam existir. E esse é o modelo de conhecimento social de onde surgem muitos dos nossos conceitos fundamentais, nas modernas democracias, tais como o conceito de pobreza como algo socialmente gerado e que influencia em fenômenos sociais, como na moradia, nas famílias, etc. É onde a ideia de pobreza é algo socialmente provocado, via expansão do conhecimento social publicamente gerado.

 

 

IHU On-Line – Quais as consequências do colonialismo de dados para a produção e disseminação do conhecimento?

Nick Couldry – A questão para pensarmos os impactos do colonialismo de dados é: Quais impactos o colonialismo de dados está tendo sobre as novas formas de conhecimento social? Uma coisa que sabemos é que a nova forma de conhecimento social, gerado pela reunião de dados, está esmagadoramente em mãos privadas. Ela é financiada pela iniciativa privada. Conecta-se privadamente com o Facebook, o Google e muitas outras corporações já mencionadas. Esse conhecimento social é analisado em privado. O seu uso acontece em privado, para lucro privado na maioria dos casos, ao menos que os governos recebam acesso privilegiado, para os quais precisam negociar.

Os significados deste novo conhecimento social são debatidos dentro de ambientes fechados, não em público. Como resultado, este novo conhecimento social, tão importante para as nossas vidas, tem suas responsabilidades apenas no âmbito privado. É disputado em privado, não há muito debate público sobre grande parte deste conhecimento e, portanto, ele definitivamente não é transparente na forma como é produzido e usado.

 

Complexidade dos algoritmos

É opaco. Não podemos ver como este conhecimento, baseado em dados do mundo social, está sendo produzido e usado, a favor ou contra nós. E sabemos que há boas razões pelas quais estas informações não são plenamente transparentes. Em parte, isto se deve à sua complexidade. Os próprios engenheiros do Google não conseguem dizer exatamente, de momento a momento, como o algoritmo de buscas do Google está funcionando, porque existem milhões de variáveis, todas interagindo e baseando-se em usos passados desses mesmos algoritmos.

Não há um jeito linear de prever como o algoritmo opera neste momento, nesta pesquisa. Ninguém pode nos dizer, pois é complexo demais, e não é plenamente transparente. É impossível. Mas há também boas razões comerciais pelas quais o Google não quer que saibamos os detalhes dos seus algoritmos. Às vezes, esta nova forma de conhecimento social é chamada de “God view” [visão de Deus]. Essa frase foi usada por executivos do Uber. Um exemplo veio em uma reportagem feita por jornalistas que participaram de uma festa dada pelos executivos da empresa Uber para comemorar o grande sucesso da plataforma. Na festa, em alguns momentos eles exibiam imagens de todos os carros da empresa rodando em San Francisco. Por vezes, a fim de diversão, eles desativavam o caráter anônimo do carro de forma que podíamos ver que Nick Couldry estava, de novo, dirigindo numa sexta-feira à noite por San Francisco, na mesma direção. Por que será? Interessante.

Talvez só fizeram isso por diversão. Talvez não devamos levar tão a sério. Mas peguemos um outro exemplo do chefe-executivo da ShotSpotter, empresa americana que fornece ferramentas algorítmicas de tomadas de decisão para o sistema judiciário dos EUA. Ele estava em um tribunal onde o seu algoritmo estava sendo usado para ajudar o juiz a decidir se enviava, ou não, alguém para a cadeia. Ele se recusou a dar detalhes do algoritmo, dizendo que eram dele, privados. E quando os jornais lhe perguntaram por que teve essa postura, ele respondeu: “Ora, são meus”. O juiz estava pedindo pelos detalhes dos algoritmos. “Isso equivale a pegar a inscrição de alguém na Netflix” e, naturalmente, a inscrição na Netflix é algo privado. Mas então, como pode ser que o conhecimento usado para justificar a ida ou não de alguém para a prisão, é tão privado que não pode ser liberado para o juiz que toma a decisão? Muito embora seja uma forma fundamental do conhecimento social.

 

Podemos conhecer o mundo através de proxies gerados por algoritmos?

Há algo profundamente errado aqui: a ideia de que podemos conhecer o mundo social suficientemente através de proxies gerados por algoritmos impessoais automatizados e não somente pelas nossas observações para falar às pessoas sobre o mundo que habitamos. Há algo profundamente intrigante aqui. E, no entanto, esse conhecimento social – essa nova forma de dados do conhecimento social – difunde-se por todo o mundo social: no marketing, no setor de seguros, na gestão de pessoas através da vigilância contínua. Por exemplo, nos armazéns da Amazon; na internet das coisas, onde compramos objetos para as nossas casas, os quais ainda desempenham tarefas: mantêm frios os nossos alimentos, nos dão um sinal sonoro quando alguém chega na frente de casa e toca a campainha. Mas esses objetos também coletam dados sobre nós, quem nos visita, o que colocamos em nosso refrigerador, dados extorquidos externamente por uma corporação exterior.

 

 

Hoje, os marqueteiros têm uma nova visão do porquê nos vendem produtos e serviços. Dizem que se trata apenas de reunir dados ao ponto de venda para nos incentivar a comprar algo. Porém, a extração de dados continua depois da venda, quando já temos o produto em nossa casa. É o que chamam de “administração do relacionamento contínuo com o produto”, e a internet das coisas é exatamente parte disso.

Às vezes, somos voluntários na geração de dados, via automedição com o Fitbits, os relógios da Apple e tantos outros dispositivos. Como vimos antes, os tribunais, a gerência dos crimes, os centros sociais contam, cada vez mais, com os algoritmos para tomar decisões. Um exemplo interessante na América Latina é como a Microsoft está envolvida na ampliação do projeto Horus, que se baseia em nossas medidas algorítmicas de pobreza e bem-estar e nos vários fatores que levam ao sofrimento social. Desenvolvido primeiro na Argentina, ano passado o governo brasileiro discutiu sua possível expansão no Brasil também. Por exemplo, no Nordeste, na região de Campina Grande.

Esses são apenas alguns exemplos da expansão do colonialismo de dados na produção de conhecimento social, e eles estão mudando o mundo social como o vivemos, porque muda como conhecemos este mundo, como agimos nele. Então, como diziam os sociólogos americanos Fourcade e Healy: são as velhas justificativas do porquê daríamos aos pobres, em uma sociedade, termos mais favoráveis, pois eles são pobres e, portanto, precisam de ajuda – isto é, pelo menos na sociedade americana e, talvez, na inglesa. Sei que a história do Brasil é bem mais difícil, mas a ideia, aquela abordagem caridosa à pobreza, realizada em termos de justiça social, está sendo substituída pela ideia de que os termos para o crédito aos pobres devem se basear unicamente no comportamento prévio deles, o que não é julgado por um ser humano, mas rastreado por um algoritmo.

 

 

Nova “governança por proxy”

Uns estão preocupados com o fato de que, na medida em que adotem algoritmos para tomar decisões em suas sentenças, os tribunais estarão “esvaziando a capacidade decisória dos servidores públicos” dentro do que chamam de uma nova “governança por proxy”. Aqui, cito dois juristas, um americano e outro israelense.

Isso tudo tem apagado as vozes, esse valor democrático fundamental. As vozes estão sendo removidas da forma como produzimos conhecimento, de como conhecemos o mundo social. Precisamos olhar para frente. O que vemos é só o presente. Aonde chegaremos?

Me permitam trazer duas citações. Há seis anos, um relatório da famosa casa de consultoria, Price Waterhouse Coopers, intitulado “The Wearable Future”, olhou para uma situação em que os dados eram extraídos não só via máquinas de rastreamento que usamos, como Fitbit, mas via máquinas implementadas em nossos corpos: chips sob a pele. E especulou que as marcas “poderiam até mesmo usar dicas corporais para elaborar mensagens”, personalizar mensagens. E perguntou: “Um sensor revela que você está com sede? Ora, eis aqui um cupom para comprar água no supermercado da esquina, onde sabemos que você foi ontem, comprou água e outras coisas”.

 

 

As seguradoras também têm interesse num futuro com uma coleta de dados mais intensa. ATKearney, importante grupo de consultoria no setor de seguros dos EUA, escreveu que as seguradoras poderiam “usar os relacionamentos enriquecidos com a internet das coisas” – isto é, a administração do relacionamento contínuo com o produto – para “conectarem-se mais holisticamente com os clientes”. Isso parece bom. Mas para quê? As palavras seguintes explicam: Para influir, cada vez mais continuamente, no comportamento.

A lógica mais profunda disso está num importante artigo da Harvard Business Review, saído pouco antes de publicarmos o nosso livro. No artigo, os autores, professores de Administração da Universidade da Pensilvânia, dizem que precisamos profundamente repensar o marketing em termos das novas estratégias de conexão contínua, estratégias que ultrapassam os modos tradicionais nos quais os marqueteiros vêm interagindo com os clientes. Eles oferecem um modelo de negócios fundamentalmente novo em quatro estágios.

Primeiro, responder ao desejo. Este nos é familiar. Queremos um sorvete, e alguém nos vende um bom sorvete. Depois, ofertar o produto. São arranjadas as possibilidades no mercado de forma que queiramos sempre mais sorvete, com mais frequência, porque o sorvete parece uma forma nutritiva de alimento regularmente disponível. O comportamento “coach” começa a se tornar estranho. É onde recebemos continuamente mensagens incentivando-nos a desejar mais sorvete, e vê-lo como talvez algo importante para a nossa saúde e bem-estar psíquico. E, finalmente, o mais sinistro de todos: a execução automática. Quando o nosso refrigerador souber que o freezer está sem sorvete, saberá que vamos querer mais sorvete. Então, o aparelho envia uma mensagem ao supermercado local e, de repente, nos é entregue um pacote de sorvetes à porta. No momento em que abrimos o refrigerador e pensamos: “Meu Deus, fiquei sem sorvete”, há a execução automática.

 

IHU On-Line – Como reagir ou resistir a essas transformações?

Nick Couldry – Antes de concluir, quero destacar duas coisas. A primeira questão é: Como podemos resistir a uma ordem social tão complexa quanto profunda como essa do colonialismo de dados? Abordagens estreitas não darão conta. Não basta dizer que “não vou usar mais o Facebook” ou “não vou comprar um refrigerador inteligente porque muitos estão comprando”. Uma ordem social está sendo construída em torno disso.

Casas e apartamentos novos já vêm com assistentes pessoais de dados digitais, como o Amazon Echo. É uma ordem social. Ela está sendo construída. Portanto, uma opção individual não basta.

Importa lembrar que não somos afetados da mesma forma por essa nova ordem, porque ainda lidamos com os legados do colonialismo histórico, claro, e o novo colonialismo de dados continuará tratando de modo diferente aqueles que sofreram com as diferenças raciais, de classe e econômicas no passado. Essas diferenças vão se reproduzir no presente, mas de forma mais opaca e, portanto, mais eficiente do que antes. E isso tem relação com o importante trabalho dos estudos críticos de dados sobre os vieses racistas dos algoritmos.

Como podemos resistir? Em primeiro lugar, precisamos pensar séria e coletivamente, reivindicar o tempo e o espaço de nossas vidas a partir daquelas forças colonizadoras. Um modo como podemos fazer isso é nomeando o que acontece com o colonialismo de dados e aprendendo com as lutas anteriores de decolonização, repensando as nossas relações com a tecnologia, pensando sobre o que significaria ser solidários diante dessa nova ordem social e econômica. Pensando, na sequência do grande trabalho de pensadores como Paulo Freire e Ivan Illich, sobre o que seria a construção de conhecimento comum sob as condições de conexão, sim, mas não nestes termos de conexão que o colonialismo de dados nos oferece.

Em todo esse tempo, a imaginação é fundamental. É por isso que escrevemos o livro “The Costs of Connection”.

 

 

Possibilidades de resistência e esforço comum em tempos de pandemia

Portanto, há possibilidades de resistência e elas exigem um esforço comum. Mas, sem dúvida, elas ficaram mais difíceis pelo desafio particular imposto pela Covid-19. Sabemos o motivo, pois a pandemia nos força a ficar em casa. As respostas dos governos à pandemia, as respostas ao risco físico da disseminação do vírus, exigem que fiquemos em casa. Muitos de nós; a maioria de nós. O que significa que estamos dependentes das plataformas digitais como o Zoom, que uso neste exato momento enquanto falo a vocês, plataformas que têm seus modelos de lucro baseados na extração de dados. É difícil resistir, é difícil encontrar alternativas.

Há, porém, uma outra forma em que o colonialismo de dados vem sendo reforçado. É o de que, neste novo mundo, as plataformas, as grandes empresas de tecnologia, estão se posicionando como as provedoras das soluções sociais de que governos e sociedade necessitam. Escrevi a respeito disso com o meu colega brasileiro João Magalhães.

Em outras palavras, na Covid-19 e nas reações a ela, onde quer que estejamos vivendo, seja no Brasil ou na Inglaterra, seja nos EUA, na África do Sul ou na Índia, a vida cotidiana está cada vez mais sendo organizada em torno das plataformas, de suas necessidades, em torno das funcionalidades, não necessariamente em torno das nossas necessidades, dos nossos valores. A necessidade delas é extrair dados para gerar valor. A força do colonialismo de dados instala-se como uma força, como o foco em torno do qual a vida cotidiana e suas mudanças se organizam, possivelmente acelerando as forças do colonialismo de dados em cinco anos, talvez em dez.

 

 

Essa é a realidade que vivemos atualmente. É assim que as nossas sociedades estão sendo alteradas por estas novas forças, grandemente ocultas, amplas e poderosas do colonialismo de dados, as quais têm construído uma nova ordem social e que construirão um novo estágio do capitalismo. Claro está quais são essas forças. O que não se sabe ainda é se iremos resistir. Mas Ulises e eu temos certeza de que devemos resistir, e eu espero ter lhes dado algo para pensar sobre a necessidade de resistência e sobre as possibilidades de resistir ao colonialismo de dados, especialmente agora nestes tempos difíceis de Covid-19.

 

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