25 Julho 2018
“Como podem alguns destacados intelectuais latino-americanos justificar a matança com argumentos insustentáveis ou com um silêncio que os torna culpáveis? O que os leva a pedir a liberdade de Lula, sem se voltar contra o governo da Nicarágua?”, questiona o jornalista e analista político Raúl Zibechi, em artigo publicado por Brecha, 20-07-2018. A tradução é do Cepat.
Sem ética a esquerda não é nada. Nem o programa, nem os discursos, nem sequer as intenções têm o menor valor, caso não se alicercem sobre o compromisso com a verdade, com o respeito irrestrito às decisões explícitas ou implícitas dos setores populares aos quais diz representar.
Neste período em que todos os dirigentes da esquerda enchem a boca citando valores, é muito significativo que fiquem apenas no discurso. A ética é colocada à prova quando temos algo a perder. O resto é retórica. Falar de ética ou de valores quando não há riscos, materiais ou simbólicos, é um exercício oco.
Todos recordamos o gesto de Che na Bolívia, quando em vez de se colocar a salvo das balas inimigas, retornou ao lugar de combate para se ocupar de um companheiro ferido, sabendo que era mais que provável que perderia a vida nessa ação, sem nenhum sentido militar, mas transbordante de ética.
Diante de nós, temos a segunda oportunidade para que a esquerda latino-americana se redima de todos os seus “erros” (entre aspas, porque se abusa do termo para acobertar faltas mais sérias), condenando o massacre que Daniel Ortega e Rosario Murillo estão perpetrando contra o seu próprio povo. A segunda, porque a primeira aconteceu duas décadas atrás, quando [houve] a denúncia de Zoilamérica Narváez, a enteada de Ortega, ao denunciar abusos sexuais de seu padrasto.
O silêncio atual das principais figuras da esquerda política da região e da esquerda intelectual diz tudo. Um extravio ético que anuncia os piores resultados políticos.
Culpar o imperialismo pelos crimes próprios é absurdo. Stalin justificou o assassinato de seus principais camaradas porque disse que faziam o jogo da direita e do imperialismo. Trotsky foi assassinado vilmente em 1940, quando sua prédica não podia de modo algum colocar em risco o poder de Stalin, que nesses anos contava com o sinal verde das elites mundiais para conter o nazismo. Como pode iludir os jovens uma política que se estende sobre um tapete interminável de cadáveres e de mentiras?
Como pode José Mujica guardar silêncio durante tantos meses – enquanto na Nicarágua morriam centenas de jovens, e diante da carta aberta de Ernesto Cardenal –, até finalmente pronunciar algum tipo de crítica a Ortega? Como podem alguns destacados intelectuais latino-americanos justificar a matança com argumentos insustentáveis ou com um silêncio que os torna culpáveis? O que os leva a pedir a liberdade de Lula sem se voltar contra o governo da Nicarágua?
Neste período tão sombrio para a esquerda – como aquele dos julgamentos de Moscou, que liquidou qualquer vestígio de liberdade na União Soviética –, é necessário arranhar até o fundo para encontrar explicações. No meu modo de ver, a esquerda passou de ser a força social e política que batalhava para mudar a sociedade para se ressecar apenas como um projeto de poder. Não “o poder para”, mas, sim, o poder a seco, o tipo de relação que assegura a boa vida para o grupo que o detém.
Foi através da luta pelo poder e a defesa deste que a esquerda mimetizou a direita. Hoje, argumenta-se com a luta contra o neoliberalismo, como desculpa para não abrir fissuras no campo da esquerda, com a mesma leviandade que antes se argumentava a defesa da URSS ou de qualquer projeto revolucionário.
Poucos podem acreditar que, entre 1937 e 1938, tenha existido um milhão e meio de russos aliados às potências ocidentais (todos membros do partido), que foi o número de condenados pelo grande expurgo de Stalin, dos quais quase 700.000 foram executados e o restante condenados a campos de trabalhos forçados. Se esse é o preço a pagar pelo socialismo, será necessário pensar nisso duas vezes.
Estamos diante de um período similar. Os progressismos e as esquerdas olham para outro lado quando Evo Morales decide não respeitar o resultado de um referendo, convocado por ele, porque a maioria absoluta decidiu que não pode se postular a uma nova reeleição. Não querem aceitar que Rafael Correa seja culpado de sequestro no “caso Balda”, executado pelos serviços de segurança criados por seu governo e supervisionados pelo presidente. A lista é muito longa, inclusive com o governo de Nicolás Maduro e o de Ortega, entre outros.
O mais triste é que a história parece haver transcorrido em vão, já que não são retiradas lições dos horrores do passado. No entanto, algum dia, essa história cairá sobre nossas cabeças, e os filhos das vítimas, assim como nossos próprios filhos, vão nos pedir contas, do mesmo modo como fazem os jovens alemães censurando seus avós sobre o que fizeram ou deixaram de fazer sob o nazismo, amparados em um impossível desconhecimento dos fatos.
Será tarde. São os momentos quentes da vida que moldam atitudes e definem quem somos. Este é um desse momentos, que marcará o futuro, ou a sepultura, de uma atitude de vida que há dois séculos definimos como esquerda.
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Nicarágua e a esquerda. Silêncios que matam. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU