A segunda morte do neoliberalismo. Artigo de Cédric Duran

Fonte: Pixabay

24 Julho 2020

“Não se sai de uma crise estrutural sem uma grande reestruturação institucional. O preço a pagar para superar simultaneamente a esclerose e a ameaça depressiva é tocar a centralidade dos mercados financeiros, isto é, o coração da lógica neoliberal. O que está em jogo neste momento é a definição de um novo regime de regulação econômica no qual os Estados encontrem, de acordo com sua posição na cadeia imperialista, um papel central em detrimento aos mercados financeiros”, escreve Cédric Duran, um dos principais representantes da atual escola marxista de economistas na França, professor da Universidade Paris XIII, em artigo publicado por Viento Sur, 22-07-2020. A tradução é do Cepat.

 

Segundo ele, "em 29 de março, um pálido Boris Johnson, isolado atrás de sua câmera de escritório, prestou homenagem aos cuidadores e concluiu que “existe a sociedade”. Dizendo exatamente o oposto de Margaret Thatcher, confirma o fim de um período. A besta neoliberal era resistente, já não é mais. Obviamente, o fato desse decreto ter sido emitido por um primeiro-ministro britânico conservador é revelador. Significa algo que é ao mesmo tempo muito simples e muito problemático para a esquerda. Para o capital, há um futuro além do neoliberalismo".

 

"É com essa ideia na cabeça - propõe o economista - de um capitalismo pós-neoliberal que devemos enfrentar a nova situação, cujas principais coordenadas são os limites do ativismo dos bancos centrais, o retorno do endividamento como uma questão essencial e as consequências da suspensão da regulamentação competitiva".

 

Eis o artigo.

 

As balbucias da história geralmente acabam em farsa, mas nem sempre ocorre assim. A sequência aberta em 2008 foi trágica. A maior crise financeira desde 1929 precipitou as economias do Atlântico Norte em uma grande recessão, cuja onda de choque culminou, do lado esquerdo, no bloqueio monetário da Grécia e na rendição do Syriza e, depois, do lado direito, com a guinada em uma série países, incluindo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, do extremo centro a um novo tipo de nacionalismo.

A sequência aberta no primeiro semestre de 2020 já é um cataclismo global que afeta nossos sistemas sociais e políticos como um todo. Em resposta à epidemia da Covid-19, “o grande confinamento”, como a chamou o FMI, precipitou um deslocamento simultâneo das relações fundamentais do capitalismo globalizado. Queda no PIB, desemprego, explosão da pobreza, retrocesso do comércio internacional, congelamento de investimentos... De março a maio, no espaço de três meses, essas variáveis se degradaram a uma velocidade inédita, com muita rapidez e muito mais força do que na década anterior.

 

Em 2009, o PIB mundial caiu 0,5% e deve cair 6% este ano. Para a OCDE como um todo, a redução será de 7,5% e de até 11,5% para os países da zona do euro. O retorno ao nível de produção de 2019 não é esperado até 2022, e apenas no caso de não haver uma segunda onda da epidemia.

 

A violência da frenagem foi uma grande inspiração para os ecossistemas. Mas, para o sistema capitalista, é um choque tão grande que qualquer forma de recuperação agora poderá ser caótica, frágil e prolongada. Enquanto isso, as aparências da normalidade mercantil ainda estão pendentes de uma intervenção dos poderes públicos, cuja amplitude evoca em certos aspectos as economias de guerra.

Do ponto de vista econômico, a Covid-19 é, portanto, um evento de extraordinária importância. No entanto, a turbulência em que avançamos não se limita a esse dramático momento. Os dados atestam uma longa tendência de queda na taxa de crescimento, desde os anos 1960. Década após década, a grande fadiga do capitalismo se agrava. Brutalidade do acontecimento, tenacidade da longa desaceleração. É à luz dessa dupla perspectiva que devemos pensar sobre a conjuntura.

 

Global no neoliberal

 

Não existe uma "boa direção" para enfrentar esse monstro, mas como temos que tentar nos orientar, comecemos com o que sabemos: o neoliberalismo, o campo de batalha que abrange e como o atual terremoto está reconfigurando o terreno. A hipótese que quero defender é que essa crise sanitária que se tornou uma catástrofe geral marca a segunda morte do neoliberalismo.

 

O princípio da legitimação ideológica do neoliberalismo é a ideia de retribuição em função do rendimento no contexto da competição. Durante a última década, esse mito mobilizador continuou gesticulando. Em países como a França, o registro da austeridade e o da Startup nação produziram inclusive uma aceleração das reformas. Hoje, em certos aspectos, o mundo macroniano de depois lembra furiosamente o mundo de antes.

 

Em nome da proteção ao emprego, Muriel Penicaud promove uma epidemia de salários mais baixos no âmbito de acordos de rendimento coletivo no nível das empresas. Ao mesmo tempo, as bricolagens contábeis do governo têm o efeito de maximizar o ônus da dívida das agências de proteção social para torná-las mais frágeis. Em resumo, o aumento da mercantilização da relação salarial permanece na ordem do dia.

 

No entanto, se expandirmos o foco, é difícil não ver que o choque viral tenha acelerado o deslocamento das imposições estruturais nas quais se move a acumulação de capital.

 

O núcleo do que Quinn Slobodian chamou de ordo-globalismo é a livre circulação de capitais. No início dos anos 1970, diante de um imponente bloco socialista e de uma onda conquistadora de descolonização, a prioridade para os defensores do capitalismo era sua salvaguarda. A seus olhos, isso exigia ancorar as nações em uma ordem internacional, cuja pedra angular deveria ser a proteção dos direitos e liberdades dos investidores.

Os neoliberais da escola de Genebra inspiraram, assim, um sistema de governo de vários níveis. A economia globalizada se apoia em uma infraestrutura institucional que tem crescido consideravelmente, desde os anos 1980, por meio da ação da OMC, FMI, Banco Mundial, União Europeia e, em geral, pela criação de densas redes jurídicas formadas por acordos de livre comércio, acordos de proteção a investidores, acordos de propriedade intelectual e tribunais de arbitragem internacionais. O efeito dessa construção é isolar o jogo econômico da tomada de decisões democráticas e manter distância das lógicas estatais soberanas, um espaço autônomo para valorização do capital em escala mundial.

 

Essa mutação na ordem internacional foi acompanhada e reforçada, em nível nacional, pelas chamadas políticas neoliberais que se apoiam em dois pilares. O primeiro é o aumento da concorrência, que é alcançada através da desregulamentação e da abertura de mercados nacionais, incluindo mercados financeiros, à concorrência estrangeira. O segundo é uma restrição à capacidade de ação das autoridades públicas. Amputado de uma grande parte de suas capacidades econômicas estratégicas pelas privatizações, o Estado também viu ser reduzida sua margem de manobra orçamentária pela institucionalização de sua dependência financeira dos mercados.

 

Um giro de 180 graus em dois atos

Ocorrendo uma década após a grande crise financeira, a crise da Covid-19 prejudica seriamente esse distanciamento entre a ordem capitalista globalizada e a ordem política do estado nacional. O problema não é que a excessiva intervenção do Estado prejudique o funcionamento autônomo do reino econômico. Pelo contrário, está acontecendo o oposto.

Após 2008, a incapacidade dos mercados financeiros de se governarem exigiu a mobilização geral do poder soberano monetário e orçamentário. Como consequência, a década de 2010 esteve marcada com o selo de assistência em matéria de finanças, os mercados mantiveram uma aparência de funcionamento normal apenas ao custo de uma adição dos esteroides monetários fornecidos pelos bancos centrais.

 

Em 2020, é o surgimento de um imperativo sanitário o que torna possível fazer a experiência traumática de que, quando é realmente importante, quando ocorre um acontecimento geral, os mercados não servem para nada. Com a Covid-19, a lógica competitiva é presa em flagrante delito por não pertinência integral. Indivíduo vulnerável e grupo aeronáutico transnacional, cada qual busca a proteção do Estado.

 

Em 29 de março, um pálido Boris Johnson, isolado atrás de sua câmera de escritório, prestou homenagem aos cuidadores e concluiu que “existe a sociedade”. Dizendo exatamente o oposto de Margaret Thatcher, confirma o fim de um período. A besta neoliberal era resistente, já não é mais. Obviamente, o fato desse decreto ter sido emitido por um primeiro-ministro britânico conservador é revelador. Significa algo que é ao mesmo tempo muito simples e muito problemático para a esquerda. Para o capital, há um futuro além do neoliberalismo.

 

É com essa ideia na cabeça de um capitalismo pós-neoliberal que devemos enfrentar a nova situação, cujas principais coordenadas são os limites do ativismo dos bancos centrais, o retorno do endividamento como uma questão essencial e as consequências da suspensão da regulamentação competitiva.

 

A crise financeira não teve lugar

 

O centro de gravidade da gestão sistêmica mudou com a reversão da relação de dependência entre mercados financeiros e poderes públicos. Não são mais principalmente os mercados financeiros que alocam recursos e sanções, mas os estados e bancos centrais que apoiam os atores econômicos, aliviando a pressão orçamentária, graças às condições de crédito muito acomodativas e à distribuição massiva de recursos financeiros e garantias públicas.

Os bancos centrais instruídos pelo precedente de 2008 foram rápidos em retirar a artilharia pesada. A partir de meados de março, o Federal Reserve dos Estados Unidos iniciou um programa ilimitado de recompra de ações (dívida pública, dívida corporativa, dívida imobiliária, dívida dos governos locais, etc.). Na Europa, após uma falta inicial de controle, que por alguns dias entregou os italianos atônitos aos especuladores, o BCE seguiu o exemplo. Seu programa de recompra de dívidas de governos e empresas muito grandes supera um trilhão de euros, o que ainda representa 8% do PIB da área e também cerca de 3.000 euros por habitante. A isto se acrescentam vários canais de suporte aos bancos, incluindo um relaxamento dos requisitos regulatórios.

 

Se, diferentemente de 2008, o desencadeamento da tormenta Covid-19 não pode ser diretamente atribuído aos mercados financeiros, estes obviamente não ajudaram a conter o choque. Pelo contrário, sua estabilização exigiu uma intervenção ainda mais massiva e rápida. A lei de Minsky do aumento paralelo da instabilidade financeira e a intervenção pública necessária para contê-la é, portanto, confirmada com este novo episódio.

 

Na medida em que as economias mergulhavam na depressão, é particularmente surpreendente que o crash da bolsa de março não tenha continuado. As bolsas de valores chegaram em junho a um nível de valorização próximo ao, muito alto, alcançado no início do ano, após uma década de aumento contínuo.

 

Essa recuperação no revés é a consequência direta de uma intervenção massiva dos bancos centrais. Em um mundo em que a atividade está entrando em colapso, os bancos centrais são um seguro abrangente para os investidores. Protegem ativos financeiros, apoiando direta e indiretamente o valor de todos os ativos financeiros. Fornecem uma pré-validação política do capital fictício, os lucros esperados para o futuro são de alguma forma garantidos pelo soberano.

 

Dois mecanismos estão em andamento. Primeiro, comprando dívidas repetidas vezes sem prestar muita atenção à qualidade, os bancos centrais garantem que as grandes empresas não terão problemas de caixa a médio prazo. Então, ao secar os mercados de dívida e direcionar os rendimentos para o vermelho, fazem com que os investidores se mudem para os mercados de ações, apoiando mecanicamente os preços das ações. E a comunidade financeira planeja pedir mais.

 

No Japão, o banco central já possui mais de 8% da capitalização de mercado do país e, no ano passado, sentindo a chegada dos ventos fortes, o fundo de investimento Blackrock pediu que o Banco Central Europeu comprasse ações diretamente. Afinal, o que os acionistas poderiam sonhar melhor do que saber que seus ativos são garantidos sem mediação pelos bancos centrais?

 

Desfazer a dívida

 

É claro, o que distingue 2020 de 2008 é que, desta vez, as autoridades públicas assumiram o controle do essencial da vida econômica e não apenas do setor financeiro. Em abril, no auge do confinamento, Emmanuel Macron fez uma constatação sem adornos sobre esse tópico:

 

“Nacionalizamos os salários e o P&L (lucros e perdas) de quase todas as nossas empresas. (...) O desemprego parcial significa a nacionalização dos salários. Todos os planos de garantia e de ajuda, o fundo alemão de 50 bilhões, e o fundo francês de 20 bilhões para comerciantes e outros, significam uma nacionalização das contas operativas dos comerciantes e empresários".

 

Para evitar a evaporação, o capitalismo foi assim, de alguma maneira, suspenso, o sistema vive às custas do Estado. E isso está longe de ter acabado. Na França, como nos Estados Unidos e até na Alemanha, os empregadores clamam por mais apoio e adotam um argumento impecavelmente keynesiano, como o presidente da Medef, Geoffroy de Bezieux:

 

“O endividamento dos Estados certamente aumentará. Mas, sem um estímulo massivo, a contração na economia ampliará ainda mais a dívida, pois haverá menos receita tributária. Apostamos que pagaremos a dívida recriando riqueza, não deixando a economia afundar".

 

Esquecida a analogia falaciosa entre o orçamento familiar e o orçamento do estado, devemos deixar o déficit público disparar porque, devido ao seu efeito estimulante na economia, possibilita a redução da dívida.

 

A questão da dívida é candente, porque o mundo como um todo está com um nível de dívida muito maior do que em 2008. Zâmbia, Equador, Líbano, Ruanda e Argentina são apenas os primeiros nomes da lista de países em desenvolvimento à beira da suspensão de pagamentos. Mas o problema também surge nos países ricos. Os países da OCDE cujas finanças ainda suportam os estigmas de 2008 experimentarão índices de dívida acima de 120% do PIB, um nível nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial.

 

Os atores privados também estão expostos. Famílias, muitas das quais estranguladas pelo aumento do desemprego, mas também empresas. Estas aproveitaram as taxas de juros muito baixas, nos últimos anos, e agora estão correndo para abrir linhas de crédito garantidas pelas autoridades para enfrentar a queda na atividade.

Esse aumento da dívida significa que a economia não enfrenta mais dificuldades temporárias no acesso à liquidez, mas muito mais um problema estrutural de solvência, ou seja, a incapacidade de pagar dívidas. Como diz o CEO da Fidelity, um dos principais fundos de gerenciamento de ativos, os recursos necessários para pagar os fundos públicos que as empresas receberam de governos ou dos bancos centrais são tão grandes que a dívida “ou bem será repassada para lucros e perdas, ou então figurará no balanço, onde terá um efeito deprimente”. As finanças exigem que apaguemos a dívida corporativa sob pena de depressão.

 

O debate sobre o cancelamento da dívida dos Estados, famílias e empresas, que já era central após 2008, retorna hoje com um vigor redobrado, mas com linhas divisórias que se movem.

 

François Villeroy de Galhau, governador do Banco da França, é obrigado a dizer que "esse dinheiro terá que ser devolvido", algum dia após a emergência sanitária, após o relançamento econômico e a retomada da atividade... Mas se o JDD (Le Journal du Dimanche) escolheu fazer dessa frase o título de seu artigo, o coração não está lá. Na OCDE, a verdadeira fábrica de políticas neoliberais das últimas décadas, já não se acredita nisso. Laurence Boone, economista-chefe da instituição, considera o impensável:

 

“Que o apoio orçamentário seja financiado por meio de um aumento permanente da oferta de moeda, criada pelos bancos centrais, que poderia substituir os programas financiados por dívida. Essa abordagem não deve criar medo da inflação enquanto o crescimento permanecer abaixo do potencial e a independência do banco central for respeitada. E tranquilizaria os mercados sobre a capacidade dos governos em apoiar a economia”.

 

Haveria, portanto, dinheiro mágico. Esse argumento já não é uma prerrogativa de apenas defensores da teoria monetária moderna. Desbloquear recursos para combater a pandemia, facilitar a assistência domiciliar (cancelamento de dívidas, suspensão de contas, renda de reposição, etc.), empregar pessoas desempregadas, etc. “Mas como o governo pagará por tudo isso?”, finge perguntar Pavlina Tcherneva:

 

“Não seria necessária uma pandemia ou uma guerra mundial para lembrar às pessoas que o governo dos Estados Unidos é autofinanciado. As instituições financeiras públicas dos Estados Unidos, o Tesouro e o Federal Reserve dos Estados Unidos garantem que todas as contas do governo sejam pagas, sem fazer perguntas”.

 

Para Boone, assim como para Tcherneva, nos países ricos, aqueles cujos governos estão endividados em sua própria moeda, a dívida pública não significa em si mesma pressão sobre os gastos públicos. As únicas limitações são as dos recursos realmente disponíveis: as capacidades, o estoque de materiais e máquinas, o estado do meio ambiente, a qualidade dos processos políticos e sociais...

 

Portanto, é muito razoável argumentar a favor da monetização do financiamento da economia, seja sob a forma de cancelamento da dívida pública pelo banco central europeu ou inclusive contribuições diretas em dinheiro aos cidadãos ou também uma moratória temporária sobre o endividamento das famílias e empresas.

O retorno do político reprimido

 

Se o neoliberalismo é derrotado, lamentavelmente isso não acontece sob os golpes das mobilizações sociais vitoriosas. É um colapso interno, o retorno do político reprimido que seus fanáticos esperavam deixar de lado.

 

Sem dúvida, o ato mais sintomático é a decisão do tribunal constitucional alemão sobre o programa de recompra de ações do BCE. Ao exigir que o BCE demonstre substancialmente que 'os objetivos da política monetária perseguidos pelo PSPP [programa PSPP: um programa de aquisição de títulos soberanos em mercados secundários] não são desproporcionais em relação aos efeitos da política econômica e orçamentária resultante do programa”, o tribunal exige o impossível.

 

A política monetária não é separável da política econômica como um todo, porque as decisões monetárias têm efeitos consideráveis no emprego, na remuneração da poupança, nas finanças públicas, no valor dos ativos financeiros, nas desigualdades. É verdade que essa decisão foi inspirada por considerações conservadoras, mas a lógica do julgamento é implacável: um banco central independente não poderia fazer política.

 

Portanto, uma das duas coisas: ou o banco deve reduzir consideravelmente seu intervencionismo; ou sua ação deve estar sujeita à deliberação democrática. Como a primeira opção é impensável no contexto atual, é a independência do banco central, um dos mais belos troféus dos neoliberais, que volta ao banco dos réus.

 

No futuro imediato, isso força as instituições europeias a realizar um perigoso exercício de assembleia para encontrar espaço para ação. A possibilidade de um plano de recuperação do orçamento europeu resulta em parte desta situação de enfraquecimento legal da ação do BCE. Isso leva a um aumento do poder fiscal e, portanto, a um aumento do poder político da União Europeia. Mesmo que essa eventualidade permaneça incerta e o alcance do movimento permaneça limitado, o tabu da mutualização caiu do outro lado do Reno, constituindo um primeiro passo no único caminho que permite escapar do deslocamento da União [1].

 

Paralelamente, um discurso sobre soberania econômica se faz ouvir cada vez com maior força. Após o nacionalismo desarticulado de Donald Trump, a União Europeia, por sua vez, mobiliza a retórica da ameaça chinesa de defender seus interesses. Por razões de segurança nacional ou para salvaguardar a capacidade industrial, são impostas restrições ao investimento estrangeiro, um obstáculo à livre circulação de capitais e a participação pública em empresas estratégicas é cada vez mais frequente. Ao mesmo tempo, e na medida em que as disputas comerciais se multiplicam, os industriais exigem a implementação de um imposto ao carbono nas fronteiras.

 

Mais anedóticas, mas reveladoras, ‘as pombas, os empresários e os investidores digitais franceses’ que protestaram contra impostos com Hollande, agora, clamam por dinheiro público: seu plano de redirecionamento exige que o Estado intervenha vigorosamente com investimentos em infraestrutura, injeções de capital, solicitações públicas e um amplo programa de treinamento da população.

 

Por trás dessas guinadas, há uma verdadeira desorientação das classes dominantes. Uma vez que os mercados financeiros já não são mais capazes de ser o quartel-general da coordenação econômica, os sinais de preço que emitem já não podem pretender refletir o rendimento sob a pressão da concorrência. É todo o edifício ideológico neoliberal que está desmoronando e o Estado está ressurgindo como uma grande figura coordenadora.

 

Depois do neoliberalismo

 

A sequência aberta em 2008 continua até hoje. É a crise do capitalismo neoliberal. Uma grande crise que constitui um momento intersticial entre duas configurações político-econômicas. Os primos estadunidenses da escola de regulamentação falam sobre essas configurações de estruturas sociais de acumulação ESA (Social Structure of Accumulation-SSA). Uma estrutura de acumulação social deve, em um sistema capitalista, promover efetivamente a obtenção de lucro: as instituições garantem o crescimento econômico, em particular estimulando a demanda e estabilizando as relações entre as classes.

A grande crise do capitalismo neoliberal é a dos limites da regulamentação dominada pelos mercados financeiros globalizados. A situação nos últimos meses exacerba um dilema já evidente na última década nos debates sobre o grande impasse. Por um lado, como explica um administrador de fundos de investimentos a seus acionistas, “o capitalismo sem falência é como o catolicismo sem o inferno”, em outras palavras, os mercados só podem ser eficazes se houver uma ameaça credível de fracasso. No entanto, o que as ajudas massivas às empresas, o acesso ilimitado ao crédito e as medidas monetárias excepcionais fazem é justamente suspender a disciplina competitiva. Privado do mecanismo de regeneração da destruição criativa, o capitalismo fica povoado por empresas zumbis com produtividade estagnada.

 

Por outro lado, a restauração da disciplina de mercado é inconcebível. Embora muitas empresas estejam hoje à beira da falência, qualquer aumento nas taxas ou aperto da pressão orçamentária precipitaria o sistema em uma cadeia de falências e depressão cataclísmica.

Do ponto de vista neoliberal, os anos de 2010 foram um período de espera preocupada, na esperança de que essa contradição pudesse ser superada graças a uma retomada do dinamismo. A crise atual marca o fim de tais fantasias. Não se sai de uma crise estrutural sem uma grande reestruturação institucional. O preço a pagar para superar simultaneamente a esclerose e a ameaça depressiva é tocar a centralidade dos mercados financeiros, isto é, o coração da lógica neoliberal. O que está em jogo neste momento é a definição de um novo regime de regulação econômica no qual os Estados encontrem, de acordo com sua posição na cadeia imperialista, um papel central em detrimento aos mercados financeiros.

 

Como conclusão em The rise and fall of Neoliberal Capitalism (A ascensão e queda do capitalismo neoliberal), um trabalho publicado em 2015, David Kotz enfatiza que os Estados Unidos já experimentaram, no início do século XX e depois nas fases dos anos 1930, a alternância entre formas liberais e formas dirigidas de capitalismo. Segundo sua leitura, hoje estaríamos nessa fase. Diante do beco sem saída da configuração neoliberal, o cenário mais provável é o de uma reorganização institucional que conduza à formação de uma regulação socioeconômica neodirigista. Contempla três cenários: uma ruptura ecossocialista que promoveria um novo modo de desenvolvimento, um renascimento social-democrata que levaria a uma redução das desigualdades, mas que colidiria com os limites ecológicos do produtivismo ou, então, uma re-regulação dominada pelo capital, no qual um fordismo de direita é uma figura possível...

 

A possibilidade de uma re-regulação do capitalismo pela direita continua sendo difícil de entender. No entanto, é possível arriscar duas observações.

 

Primeiro, deve-se notar que a re-regulação não implica, como tal, nenhum tipo de tendência progressista. Os danos do neoliberalismo às condições de emprego terão um impacto duradouro. A mercantilização da relação salarial pode até continuar aumentando, mesmo que o setor financeiro fosse mais supervisionado, o crédito fosse redirecionado para os usos produtivos e o comércio internacional fosse mais controlado. O nacionalismo econômico também pode ser fundamental na tentativa de neutralizar os conflitos de classe que enfraqueceriam ainda mais os direitos sociais.

 

Em segundo lugar, o ressurgimento da intervenção estatal carrega as sementes de uma intensificação do conflito político. De fato, embora a lógica do neoliberalismo tenda a esconder os mecanismos econômicos por trás do fetichismo dos intercâmbios mercantis, a intervenção pública os torna mais diretamente transparentes. Um maior autoritarismo nos cenários nacionais e um ressurgimento de conflitos geopolíticos interestaduais, preparados por enormes desequilíbrios internacionais, podem ser assim subprodutos do neodirigismo. E é assim que o internacionalismo e as batalhas democráticas recuperarão o corte anticapitalista do qual o neoliberalismo os privou.

 

Nota:

[1] É claro, o autoritarismo antissocial permanece, pois o acesso aos fundos europeus seria condicionado a medidas de competitividade. Aqui, novamente, encontramos a ideia de um acordo contratual evocado em 2012 no relatório Van Rompuy, que propôs que "as reformas estruturais fossem apoiadas por medidas de estímulo financeiro e levassem a transferências temporárias em favor dos Estados que sofrem de insuficiências estruturais excessivas”.

 

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