Lares à margem: a imagem da moradia na beira do Rio dos Sinos

  • Terça, 19 de Agosto de 2014

O Observatório da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, tem como propósito a análise da realidade socioambiental da região do Vale do Sinos. O programa foi demandado em vista de qualificar o acesso e análise da realidade e, ao mesmo tempo, aproximar a Universidade das lideranças e população dos municípios da região.

Estas são algumas das justificativas que apontam a importância desta nota semanal do Observatório, que apresenta o estudo realizado pela acadêmica de Comunicação Social – Jornalismo da Unisinos Marina da Silva Cardozo a partir do projeto de pesquisa “Terras e águas ao sul”, coordenado pelo Prof. Dr. José Luiz Bica de Mélo. O estudo tem como proposta compreender a relação da população ribeirinha do Rio dos Sinos no município de São Leopoldo com suas moradias.

Eis o artigo.

Lares à margem é um estudo originário do projeto Terras e águas ao sul, que investiga os conflitos socioambientais decorrentes dos monocultivos de eucalipto, que afetam especialmente as águas e as populações do entorno das plantações. Derivando do tema dos impactos sociais relacionados à água, Lares à margem surge como um estudo que visa compreender a relação da população ribeirinha de São Leopoldo, cidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, com suas moradias. A ideia era compreender por que razão, apesar das enchentes periódicas que atingem suas casas, essas pessoas continuam a residir nos mesmos lugares, reconstruindo múltiplas vezes suas vidas ao longo dos anos. Tendo em vista minha formação como comunicadora e relação com suportes imagéticos, a escolha pela Antropologia Visual como forma de concretizar o projeto pareceu a mais adequada, na medida em que mistura o documental com elementos de criatividade para expressar uma realidade que nos cerca, mas que pouco é mostrada.

Metodologia

Para realizar a pesquisa e a exposição dos resultados, foram utilizados como base os recursos propostos pela Antropologia Visual. A partir das contribuições teóricas de Gregory Bateson, André Alves e Etienne Samain, o estudo foi conduzido tendo como foco dois moradores das margens do rio: um senhor do Bairro Feitoria e uma senhora do Bairro Rio dos Sinos, que, embora únicos enquanto pessoas, são representativos de inúmeros outros moradores dos mesmos lugares, que também territorializam as margens do Rio dos Sinos, vivendo em condições semelhantes.

A Antropologia Visual surge nos anos 40 do século XX, como modo de auxílio em pesquisas de campo (BATESON, MEAD, 1942). Inicialmente voltada à documentação de etnias e culturas nativas, sua abrangência se amplia com o desenvolvimento das tecnologias e da própria antropologia: “a Antropologia Visual tem sido tradicionalmente entendida como aquela área da Antropologia Sociocultural que utiliza os suportes imagéticos para descrever e analisar uma cultura ou um aspecto particular de uma cultura.” (PARÉS, 2000, s/p).

De maneira prática, um estudo em Antropologia Visual é construído com fotografias acompanhadas de texto, de forma que o texto complemente os significados da fotografia e a imagem ajude a efetivamente mostrar o que o texto quis descrever. Portanto, apesar de sua importância na técnica, a imagem não funciona sozinha.

Conceitos fundamentais

Os dois principais conceitos, que serviram como guias para entender o projeto, foram “território” e “vulnerabilidade social”.

“Território” é um conceito que surge na geografia, mas acaba por ser incorporado a outras áreas do conhecimento, a destacar seu sentido sociológico, que trata da sensação de pertencimento de alguém a algum lugar: “Sempre haverá entre os grupos culturais (…) a perspectiva de se viver e de pertencer a um território, onde haja a mínima possibilidade de sentir-se em casa” (TEIXEIRA, 2008, p. 246).

A vulnerabilidade social, no Brasil, segundo Lúcio Kowarick (2003), recebe dois tratamentos distintos que reforçam a manutenção da situação como tal. Uma diz respeito à naturalização da pobreza: ela existe, é normal, é assim porque sempre foi assim. A outra, chamada de neutralização, mimetiza o pensamento “cada macaco no seu galho”, ou seja, consiste numa discriminação que faz com que cada pessoa “tome seu lugar” na sociedade e não o conteste, sob ameaça de constrangimentos ou mesmo de violência.

Resultados e conclusão

O projeto foi realizado em quatro saídas de campo, duas a cada local específico – bairros Rio dos Sinos e Feitoria —, que resultaram em 28 fotografias selecionadas, a partir de cerca de 150 imagens de material bruto.

Após trabalho de seleção mais minuciosa das fotografias, foram utilizadas 10 imagens que constituíram seis pranchas. Cada prancha consiste em uma ou duas imagens acompanhadas de textos descritivos da situação dos personagens, características de cada um, contextualização da imagem ou breve relato histórico. É possível perceber que em todos os casos, imagem e texto se complementam, buscando transmitir uma mensagem diferente da que teriam se fossem visionados separadamente. A junção dos elementos e progressão das pranchas fotográficas tem o objetivo de construir o entendimento, também no espectador, acerca das questões estabelecidas de início.

Por meio do estudo, foi possível perceber que a ligação da população ribeirinha com o local onde mora ultrapassa a conveniência e chega ao âmbito emocional. Em primeiro lugar, destaco a desconfiança de mudar, apresentada por ambos os moradores, que preferem permanecer em suas casas a aceitar propostas de políticos, por medo de serem usados apenas como campanha eleitoral. Principalmente, porém, a territorialização é fruto da identificação dos moradores com o local, e mesmo vivendo em situação de risco, eles buscam realizar a conversão do espaço em lar.

 MOSTRA FOTOGRÁFICA

Lares à margem: a imagem da moradia na beira do Rio dos Sinos

Imagem e texto: Marina Cardozo

 Projeto de pesquisa Terras e Águas do Sul

Coordenador: Prof. José Luiz Bica de Melo (PPGCS Unisinos)

 

 MARGEM

As margens do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, são atingidas pelas enchentes periodicamente. Apesar de construções e diques, a partir da década de 1960, as pessoas que vivem na região são forçadas a reconstruir múltiplas vezes suas vidas ao longo dos anos. Isso, porém, quase faz parte do cotidiano. Diversos locais da cidade que sofrem esse tipo de situação já foram desocupados e seus moradores transferidos para casas e apartamentos fora das áreas de risco, como parte do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Entretanto alguns preferem não deixar os locais que habitam há tanto tempo e que há muito chamam de lar.

Foto: Dique entre o Rio dos Sinos e a cidade, Bairro Centro, São Leopoldo. Janeiro, 2014.

 ELISETE I

A Rua da Praia, localizada no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo, fica a cerca de 20 metros do Rio dos Sinos, em uma região que é uma espécie de ilha: fica cercada de água quando há cheias. Apesar da proximidade do rio e das enchentes periódicas, a rua abriga muitas construções – residências e comerciais –, inclusive a Secretaria Municipal do Meio Ambiente de São Leopoldo.

Elisete vive na Rua da Praia. Em 2013, decidiu transformar parte da frente da casa em um bar, para vender lanches e bebidas às pessoas que procuram a margem do Rio dos Sinos em busca de lazer nos dias de verão. Junto do marido, que vende churrasquinho próximo a uma parada de ônibus no centro da cidade, Elisete sustenta a casa.

Foto: Perspectiva do Rio dos Sinos a partir da Rua da Praia, Bairro Rio dos Sinos, São Leopoldo. Janeiro, 2014.

Foto: Elisete da Silva Forte sentada em seu pátio. Ao lado, pode-se observar o quadro que lista os produtos vendidos. Janeiro, 2014.

 ELISETE II

Vizinha do rio, Elisete divide a casa – construída cerca de 1,5 metro do chão – com um filho, o marido e os cachorros que recolhe da rua. Na última enchente, em agosto de 2013, ela teve que deixar a casa temporariamente, mas não sem antes salvar seus cachorros. Na casa, há mais de dez.

Ela não pretende sair da beira do Rio dos Sinos. Só consideraria a possibilidade se pudesse morar em uma chácara para montar um canil e cuidar dos cachorros adotados. Ela conta que as pessoas já sabem que ela os pega: há quem vá até a Rua da Praia apenas para abandonar os animais.

Foto: Elisete junto a dois dos seus cachorros. Janeiro, 2014.

 EDUARDO I

A margem do Rio dos Sinos no bairro Feitoria é marcada por uma paisagem que se repete: casas simples construídas como palafitas, a alguns metros do chão; ruas de chão batido e muito lixo. Os moradores contam que pessoas vão até o local especialmente para deixar coisas que não querem ou não precisam mais.

Eduardo, que mora no bairro, trabalha com “bicos” em construção: está sempre em um lugar diferente, dentro da cidade ou fora dela. As enchentes o atingem constantemente, mas nada o tira do lugar onde vive.

Foto: Terreno baldio tomado por lixo, na rua Augusto Eugênio Daudt, bairro Feitoria, São Leopoldo. Fevereiro, 2014.

Foto: Eduardo Martins da Cunha no pátio de casa, no bairro Feitoria, São Leopoldo. Março, 2014.

 EDUARDO II


Eduardo conta que em sua casa tem tudo de que precisa: pode pescar no rio para comer e os vizinhos o ajudam. Já recebeu proposta de sair dali, mas prefere ficar: esse é o local que ele mesmo construiu, é a casa dele.


Foto:Panorama da casa de Eduardo. Março, 2014.

Foto: Detalhe da casa de Eduardo. Março, 2014.


Bibliografia:

BATESON, Gregory; MEAD, Margaret. Balinese Character: A Photographic Analysis. New York: New York Academy Of Sciences, 1942.

KOWARICK, Lúcio. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil: Estados Unidos, França e Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Viçosa, v. 18, n. 51, p.61-85, fev. 2003. Disponível em: <.">.">http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v18n51/15986.pdf>. Acesso em: 26 maio 2014.

 PARÉS, Luis Nicolau. Algumas Considerações em torno da Antropologia Visual. 2000. Disponível em: <.">.">http://www.antropologia.com.br/colu/colu3.html>. Acesso em: 28 abr. 2014.

TEIXEIRA, Ivan Manoel Ribeiro. O conceito de território e seu emprego nos estudos sobre migrações: contribuições geográficas para a sociologia. Dialogus, Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, p.243-260, 2008. Disponível em: <.">.">http://unimaua.br/comunicacao/publicacoes/dialogus/2008/pdf/conceito_territorio_estudos_migracoes_2008.pdf>. Acesso em: 18 mai.2014.