25 Junho 2020
"É o 'vinho novo' do amor evangélico que sempre corre o risco de ser colocado nos 'odres velhos' de nossas seguranças religiosas, que tantas vezes silenciam o Deus vivo que nunca para de falar conosco. É a sabedoria do 'discípulo do reino dos céus' que busca a plenitude da Lei, a justiça que supera aquela dos escribas e dos fariseus, extraindo 'do seu tesouro coisas novas e velhas' (Mt 13,52). Não apenas coisas novas, não apenas coisas velhas", escreve Sergio Centofanti, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 23-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Algumas críticas de caráter doutrinal ao atual pontificado estão mostrando um gradual, mas cada vez mais claro, afastamento do Concílio Vaticano II. Não de uma específica interpretação de alguns textos, mas dos próprios textos conciliares. Algumas leituras que insistem em contrapor o Papa Francisco a seus predecessores imediatos acabam assim por criticar abertamente também São Paulo II e Bento XVI ou, de qualquer forma, fazem com que sejam ignorados alguns aspectos fundamentais de seu ministério que representa desenvolvimentos evidentes do último concílio.
Um exemplo disso foi, recentemente, o 25º aniversário da encíclica Ut unum sint, em que o Papa Wojtyla afirma que o empenho ecumênico e o diálogo com os não católicos são uma prioridade da Igreja. O aniversário foi ignorado por aqueles que hoje repropõem uma interpretação redutiva da Tradição, fechada àquele "diálogo de amor", além do doutrinário, promovido pelo Papa polonês em obediência ao ardente desejo de unidade de nosso Senhor.
Igualmente negligenciado foi outro aniversário importante: o pedido de perdão jubilar, desejado com força por São João Paulo II em 12 de março de vinte anos atrás. A força profética de um pontífice que pede perdão pelos pecados cometidos pelos filhos da Igreja é esmagadora. E quando se fala de "filhos", estão incluídos também os papas. Sabe-se: aqueles que pedem perdão por erros cometidos se colocam em uma situação arriscada de revisão. Wojtyła escolheu profeticamente o caminho da verdade. A Igreja não pode e não deve ter medo da verdade. O então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ressaltou a "novidade deste gesto", um "ato público de arrependimento da Igreja pelos pecados do passado e de hoje": um "mea culpa do Papa em nome da Igreja", um gesto realmente "novo, mas ainda assim em profunda continuidade com a história da Igreja, com sua autoconsciência".
Muitas lendas negras foram fomentadas sobre a Inquisição, fogueiras e intolerâncias várias da Igreja ao longo da história, exagerando, falsificando, caluniando e descontextualizando para apagar de memória a grande e decisiva contribuição do cristianismo para a humanidade. E os historiadores muitas vezes reconduziram a verdade distorções da mitificação da realidade. Mas isso não impede de fazer um sério exame de consciência para "reconhecer - afirma João Paulo II - os desvios do passado" e "despertar nossas consciências diante dos compromissos do presente". Disso decorre o pedido de perdão em 2000 "pelas divisões que ocorreram entre os cristãos, pelo uso da violência que alguns deles fizeram a serviço da verdade e pelas atitudes de desconfiança e hostilidade às vezes assumidas em relação aos seguidores de outras religiões” (Missa pelo dia do perdão, 12 de março de 2000).
"Com o progresso do tempo - afirma em 2004 - a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, percebe com consciência cada vez mais viva quais são as necessidades de sua conformidade" ao Evangelho, que rejeita os métodos intolerantes e violentos que na história deturparam seu rosto (Carta ao cardeal Etchegaray por ocasião da publicação dos anais do simpósio internacional "A Inquisição", de 29 a 31 de outubro de 1998).
Um caso particularmente significativo foi o de Galileu Galilei, o grande cientista italiano, um católico que - disse João Paulo II - "sofreu muito, não podemos esconder isso, por parte de homens e organismos da Igreja" (Discurso para a comemoração do nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979). O Papa Wojtyła examina o episódio "à luz do contexto histórico da época" e "da mentalidade de então". A Igreja, embora fundada por Cristo, "continua sendo constituída por homens limitados e ligados à sua época cultural". Ela também "aprende com a experiência" e o caso de Galileu "permitiu um amadurecimento e uma compreensão mais justos de sua autoridade". Cresce a compreensão da verdade: não é dada de uma vez por todas (Discurso a um grupo de cientistas e pesquisadores, 9 de maio de 1983).
Wojtyła lembra que “a representação geocêntrica do mundo era comumente aceita na cultura da época como totalmente concordante com o ensinamento da Bíblia, na qual algumas expressões, tomadas literalmente, pareciam constituir afirmações de geocentrismo. O problema colocado pelos teólogos da época, portanto, era o da compatibilidade do heliocentrismo e das Escrituras. Assim, a ciência nova, com seus métodos e a liberdade de pesquisa que eles supõem, obrigava os teólogos a se questionarem sobre seus critérios de interpretação das Escrituras. A maioria foi incapaz de fazê-lo. Paradoxalmente, Galileu, um homem de fé sincero, mostrou-se mais perspicaz nesse ponto do que seus adversários teológicos", que caíram em erro ao tentar defender a fé.
"A revolução causada pelo sistema de Copérnico" gerava assim "repercussões na interpretação da Bíblia": Galileu, não um teólogo, mas um cientista católico "introduz o princípio de uma interpretação dos livros sagrados, para além do sentido literal, mas de acordo com a intenção e o tipo de exposição próprios de cada um deles" de acordo com os gêneros literários. Posição confirmada por Pio XII em 1943 com a encíclica Divino afflante Spiritu (João Paulo II, Discurso aos participantes da sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências, 31 de outubro de 1992).
Um aumento semelhante na consciência da Igreja ocorreu com a teoria da evolução, que parecia contradizer o princípio da criação. Uma primeira abertura foi aquela do próprio Papa Pacelli com a Encíclica Humani generis de 1950: no próximo dia 12 de agosto completa 70 anos. João Paulo II afirma que "a criação coloca-se à luz da evolução como um evento que se estende ao longo do tempo - como uma ‘creatio continua’ - em que Deus se torna visível aos olhos do crente como o Criador do Céu e da Terra" (Discurso aos participantes do simpósio internacional sobre "Fé cristã e teoria da evolução", 26 de abril de 1985). O Papa Francisco enfatiza que "quando lemos a história da Criação no Gênesis, corremos o risco de imaginar que Deus foi um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer todas as coisas. Mas não é assim. Ele criou os seres e deixou que eles se desenvolvessem de acordo com as leis internas que Ele deu a cada um, para se desenvolverem, para alcançar sua plenitude (...) O Big Bang, que hoje está na origem do mundo, não contradiz a intervenção criadora divina, mas a exige. A evolução na natureza não entra em conflito com a noção de Criação, porque a evolução pressupõe a criação de seres que evoluem" (Discurso por ocasião da inauguração de um busto em homenagem a Bento XVI, 27 de outubro de 2014).
No Novo Testamento, mas não apenas, existem referências profundas à liberdade que mudaram a história: mas são descobertas pouco a pouco. O Papa Bonifácio VIII, com a bula Unam sanctam de 1302, reafirmava a superioridade da autoridade espiritual sobre aquela temporal. Era outra época. Quase 700 anos depois de João Paulo II, falando em Estrasburgo, observava que o cristianismo medieval ainda não distinguia "entre a esfera da fé e a da vida civil". A consequência dessa visão foi a "tentação fundamentalista de excluir da comunidade temporal aqueles que não professam a verdadeira fé" (Discurso durante a visita ao Parlamento Europeu,11 de outubro de 1988).
Ainda em 1791, em uma carta aos bispos franceses, Pio criticou a Constituição aprovada pela Assembleia Nacional que estabelecia "como um princípio do direito natural que o homem que vive na sociedade deva ser plenamente livre, ou seja, que em matéria de religião não deva ser incomodado por ninguém, e possa livremente pensar como quiser, escrever e até publicar na imprensa qualquer coisa em matéria de religião”. E em 1832, a encíclica Mirari vos de Gregório XVI fala da liberdade de consciência como um "erro venenosíssimo" e "delírio", enquanto Pio IX, no Syllabus de 1864, condena entre "os principais erros de nossa época", a concepção que não seja mais oportuno "que a religião católica seja considerada como a única religião do estado, excluindo todos os demais cultos, sejam quais forem" e que "em alguns países católicos estabeleceu-se por lei que para aqueles que vão para lá, seja lícito ter público exercício do culto próprio de cada um”.
O Concílio Vaticano II, com as Declarações Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa e Nostra aeate sobre o diálogo com as religiões não cristãs, realiza um salto que lembra o Concílio de Jerusalém da primeira comunidade cristã que abre a Igreja a toda a humanidade. Diante desses desafios, João Paulo II afirma que "o pastor deve mostrar-se preparado para uma autêntica audácia".
Em 1988, acontece o cisma dos tradicionalistas lefebvrianos. Eles rejeitam os desenvolvimentos trazidos pelo Vaticano II: dizem que uma nova Igreja foi criada. Bento XVI usa uma imagem forte quando os exorta a não "congelar a autoridade magisterial da Igreja ao ano de 1962" (Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a remissão da excomunhão dos quatro bispos consagrados pelo arcebispo Lefebvre, 10 de março de 2009). Isso já havia acontecido em 1870: os "antigos católicos" condenam o Concílio Vaticano I pelo dogma da infalibilidade pontifícia.
A Igreja Católica caminhou na história através de mais de 20 concílios: toda vez teve alguém que não aceitava novos desenvolvimentos e parava. Pio IX, em 1854, proclama o dogma da Imaculada Conceição. Mas um grande santo, Bernardo de Claraval, apesar de ser um dos mais fervorosos propagadores da devoção mariana, alguns séculos antes expressava a sua contrariedade a essa verdade: “Estou muito preocupado, pois muitos de vocês decidiram mudar as condições de importantes eventos, como, por exemplo, introduzir essa festa desconhecida da Igreja, certamente não aprovado pela razão e nem mesmo justificado pela tradição antiga. Somos realmente mais eruditos e piedosos que nossos padres antigos?”. Estamos no século XII. Desde então, a Igreja introduziu outras festas desconhecidas que provavelmente teriam escandalizado muitos dos fiéis que viveram nos séculos anteriores.
Jesus afirmou que não veio para abolir a lei, "mas para cumprir" (Mt 5,17). Ensinou a não transgredir nem mesmo "um desses preceitos, por menor que seja" (Mt 5,19). E no entanto, ele foi acusado de violar as normas mosaicas, como o descanso de sábado ou a proibição de frequentar pecadores públicos. E os apóstolos realizam o grande salto: abolem a sagrada obrigação da circuncisão, datada de Abraão e em vigor por 2000 anos, e abrem aos pagãos, algo impensável na época. "Eis que - diz o Senhor - faço novas todas as coisas" (Ap 21, 5). É o "vinho novo" do amor evangélico que sempre corre o risco de ser colocado nos "odres velhos" de nossas seguranças religiosas, que tantas vezes silenciam o Deus vivo que nunca para de falar conosco. É a sabedoria do "discípulo do reino dos céus" que busca a plenitude da Lei, a justiça que supera aquela dos escribas e dos fariseus, extraindo "do seu tesouro coisas novas e velhas" (Mt 13,52). Não apenas coisas novas, não apenas coisas velhas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O desenvolvimento da doutrina é a fidelidade na novidade. Algumas críticas ao atual pontificado contestam o Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU