José é a presença silenciosa daquele que se fez pai do Deus humano. Entrevista especial com Leonardo Boff

Para o teólogo, São José é o santo dos anônimos, dos trabalhadores e daqueles que assumem sua missão. E vai além: reforça que a Trindade se faz completa na encarnação da Sagrada Família

Foto: Mohamed Hassem | Pixabay

Por: João Vitor Santos | 19 Março 2021

 

“Ele é o santo dos anônimos, dos trabalhadores que falam com as mãos, do silêncio operoso e da discrição”. É assim que o teólogo Leonardo Boff descreve José, o esposo de Maria, aquele que assume a paternidade terrena de Jesus. Hoje, 19 de março, é dedicado à Solenidade de São José, em homenagem a esse santo que, apesar de silencioso nas narrativas canônicas, é muito popular. Na última quarta-feira, 17-03, durante a Audiência Geral, o pontífice lembrou dele ao falar que "na vida, no trabalho, na família, nos momentos de alegria e tristeza, São José procurou e amou constantemente o Senhor, merecendo o elogio das Escrituras como um homem justo e sábio. Invocá-lo sempre, especialmente nos momentos difíceis que vocês possam encontrar".

 

Assim como o Papa Francisco, Boff chama atenção para a coragem desse judeu, um homem que assume uma mulher grávida e chama para si todas as responsabilidades paternas, por maiores que sejam os desafios. Coragem e acolhimento que o Papa ressalta e quer animar em todos ao instituir 2021 como o ano de São José, através da Carta Apostólica “Patris corde – Com coração de Pai”. “Dele não temos nenhuma palavra, apenas sonhos. Hoje, a humanidade inteira está recolhida, ocasião para pensar sobre o sentido da vida e de nossa relação com a Terra. São José é o santo da família reunida, como atualmente as famílias têm que se reunir em suas casas para proteger-se da contaminação da Covid-19”, reflete Boff. Esse 19 de março de 2021 também marca o início do Ano da Família Amoris laetitia.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, o teólogo recupera o José histórico e indica nele elementos cruciais para nos encorajar. “Precisamos de pais que acolhem os desamparados e que tenham coragem para iniciativas em sua rua e bairro para atender aqueles que não têm condições de se defender, como ocorreu exemplarmente no bairro Paraisópolis em São Paulo e na favela da Maré no Rio de Janeiro”, alerta. E completa: “Não há somente o aconchego caloroso da mãe. O pai é responsável pela passagem do mundo dos outros, onde há diferenças, tem que se respeitar certos limites e aprender a conviver pacificamente. Não é uma tarefa fácil, mas imprescindível para não deixar marcas para sempre”.

 

Boff ainda recupera a teologia em torno desse personagem, do qual não temos uma só palavra nos registros canônicos. É o chamado silêncio, mas que em nada tem de omissão. “É silenciando que vemos melhor e escutamos o chamado do coração e nascem visões que dão sentido à vida e nos alimentam a esperança. Não foi diferente com o pai e trabalhador José”, explica. Além disso, Boff diz que não podemos ignorar o Deus que se faz humano e que, na sua interpretação, personifica a Trindade na terrena família do Cristo. “Ora, São José não fala porque é o portador deste mistério abissal no qual o Pai habita. José se faz a pessoa que apresenta, pelo seu silêncio, o mistério do Pai. Ele acaba sendo a sombra do Pai, a própria personificação terrestre do Pai celeste”, defende.

 

Para ele, só é capaz de gerar o Divino quem for feita divina. “Foi o que ocorreu com Maria. Se ela não tivesse dito “fiat”, faça-se, o Filho não teria sido concebido e nascido de Maria. Essa porção divina de Maria é raramente assumida pelas mulheres que estão ainda reféns da cristologia, do Cristo, esquecendo que sem Maria não haveria o Cristo”, adverte. Ou seja, já assumimos o Cristo como Deus encarnado, mas precisamos ainda assumir esse olhar sobre Maria. “E São José, ficou de fora?”, questiona. “Minha tese é que a Família divina inteira se autocomunicou ao mundo”, acrescenta. “Assim se fecha o círculo: a Família divina está para sempre na família humana que foi assumida por Maria, por Jesus e por José”.

 

Leonardo Boff (Foto: UFJF)

 

Leonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre os livros publicados, destacamos, Ecologia: grito da Terra, grito do pobre (Petrópolis: Vozes, 1995), Evangelho do Cristo cósmico (Rio de Janeiro: Record, 2008), Saber cuidar (Ed. 20. Petrópolis: Vozes, 2014), além de Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).

Especificamente sobre São José, escreveu São José: a personificação do Pai (Petrópolis: Vozes, 2005). E, mais recentemente, em tempos de pandemia, publicou Covid19: a mãe terra contra-ataca a humanidade (Petrópolis: Vozes, 2020).

 A  entrevista foi originalmente publicada em 20 de dezembro de 2020.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O Papa Francisco convocou o ano de 2021 como sendo o ano especial dedicado a São José. Como o senhor recebeu essa notícia e em que São José pode nos inspirar neste momento de crises?

Leonardo Boff – Recebi com surpresa e alegria. Surpresa porque o Magistério falou só tardiamente de São José, e com alegria porque sou devoto desse santo e lhe dediquei muitos anos de pesquisa nos melhores centros teológicos do mundo, até da Rússia e da China. Considero meu livro São José: a personificação do Pai (Petrópolis: Vozes, 2005) um dos melhores e mais criativos que escrevi.

 

Ele é o santo dos anônimos, dos trabalhadores que falam com as mãos, do silêncio operoso e da discrição. Dele não temos nenhuma palavra, apenas sonhos. Hoje, a humanidade inteira está recolhida, ocasião para pensar sobre o sentido da vida e de nossa relação com a Terra. São José é o santo da família reunida, como atualmente as famílias têm que se reunir em suas casas para proteger-se da contaminação da Covid-19.

 

Nesse momento de crise, ele nos oferece algumas virtudes bem acentuadas pelo Papa Francisco especialmente, como “pai da acolhida e pai da coragem criativa”, pois muitos estão desamparados e com grande abatimento a ponto de entregar os pontos. Precisamos de pais que acolhem os desamparados e que tenham coragem para iniciativas em sua rua e bairro para atender aqueles que não têm condições de se defender, como ocorreu exemplarmente no bairro Paraisópolis em São Paulo e na favela da Maré no Rio de Janeiro.

Na Carta Apostólica “Patris corde – Com coração de Pai”, o Papa descreve São José e anuncia o ano de 2021 dedicado à sua figura. Acesse a íntegra do documento

 

IHU On-Line – Que leitura o senhor faz da Carta Apostólica “Patris corde – Com coração de Pai”, assinada pelo Papa e que dedica o ano de 2021 a São José? Que sinais Francisco emite com esse documento e essa proposição?

Leonardo Boff – Com o título “Pai de coração”, o Papa, de forma nova e criativa, quer evitar os tantos títulos que a tradição teológica deu a São José, nem todos muito dignos: pai putativo, pai nutrício, pai legal, pai matrimonial e outros. A expressão “Pai de coração” evita tudo isso e mostra que pelo coração e o amor a Maria e a Jesus ele se fez realmente pai assumindo todas as responsabilidades. Os evangelhos não o qualificam, apenas se referem com naturalidade a Jesus como “o filho do carpinteiro” (Mt 13,54-56); “não é ele filho de José, não conhecemos seu pai e sua mãe?” (Jo,6,41-42).

 

 

A Carta Apostólica Patris corde é um documento relativamente curto, de cunho pastoral e espiritual. Apresenta as virtudes de José em número de sete: pai amável, pai de ternura, pai de obediência, pai de acolhida, pai de coragem criativa, pai trabalhador, pai na sombra. Se bem repararmos, são virtudes transculturais, estão presentes nas comunidades humanas, embora cada uma delas receba uma concretização própria. O Papa comenta cada uma delas em termos existenciais e aplicando-as às famílias de hoje. Vivemos numa sociedade sem pai ou do pai ausente. O Papa se dá conta da importância fundamental da figura do pai na construção da personalidade dos filhos e das filhas, especialmente o respeito ao outro e o sentido dos limites.

 

Não há somente o aconchego caloroso da mãe. O pai é responsável pela passagem do mundo dos outros, onde há diferenças, tem que se respeitar certos limites e aprender a conviver pacificamente. Não é uma tarefa fácil, mas imprescindível para não deixar marcas para sempre a seus filhos e filhas. Isso está nas entrelinhas da Exortação Patris corde. Neste aspecto, não há maiores novidades teológicas, coisa que aparece melhor na Redemptoris Custos de 15 de agosto de 1989, uma Exortação Apostólica de João Paulo II. Faz aí uma afirmação arrojada no n. 21 ao sustentar que a paternidade humana de São José vem assumida no mistério da encarnação, assinalando assim uma certa dimensão hipostática.

 

IHU On-Line – O que é ser um “pai de coração”? Qual a importância dessa figura em nosso tempo?

Leonardo Boff – Nós vivemos numa sociedade dominada pela inteligência instrumental analítica com a qual mudamos a face do planeta, introduzindo profundas modificações na natureza e na sociedade mundial, algumas positivas, como o antibiótico e os meios de comunicação, e outras questionáveis. Na Laudato Si’ se faz uma severa crítica à ditadura da tecnociência assentada exclusivamente na inteligência intelectual e eficientista. Trouxe muitas comodidades humanas, mas tornou as relações funcionais e frias. Faltou o coração. Sabemos que o coração é sede da empatia, do sentimento profundo, da solidariedade, da compaixão e principalmente do amor, da espiritualidade e da ética, numa palavra: da inteligência cordial, emocional e sensível.

 

Ela surgiu há 220 milhões de anos com a irrupção do cérebro límbico dos mamíferos. Ao dar à luz a sua cria, a amam, cuidam e a defendem. A razão intelectual transformada em instrumental-analítica apareceu com o cérebro neocortical há 7-8 milhões de anos. Ela é a mais recente mas não a mais decisiva para a existência humana, embora precisamos dela para dar conta da complexidade de nossas sociedades, mas não à custa da empatia, da gentileza e da ternura.

 

Esquecemos que somos mamíferos sensíveis e racionais. Houve um desencontro entre as duas inteligências. A intelectual e analítica reprimiu a inteligência emocional, a mais profunda e ancestral em nós, pois se alegava que ela atrapalhava o olhar objetivo da ciência. Hoje sabemos que nunca existiu uma inteligência fria e absolutamente objetiva. O ser humano está sempre presente com seus sentimentos e interesses. O desafio atual consiste em resgatar a razão sensível e enriquecer a razão intelectual. Não basta saber, precisamos sentir o grito do pobre e da Terra. É esse sentimento, ausente em grande parte de nossa cultura que, unido à inteligência intelectual, nos poderá salvar da atual derrocada de nosso paradigma tecnocientífico. Ele não tem sentimentos face à dor humana e da natureza. Ou resgatamos a razão cordial e sensível ou assistiremos ao assalto cada vez mais insensível e avassalador da razão tecnocientífica sobre a natureza, até com o risco de pôr a vida do planeta em um processo de erosão.

 

Daí a importância de resgatarmos os direitos do coração, tão exemplarmente vividos pelas práticas do Papa Francisco para com os pobres e para com a Mãe Terra, expressas maravilhosamente nas duas encíclicas ecológicas Laudato Si’ e Fratelli tutti.

 

IHU On-Line – O Papa Francisco referiu inúmeras vezes, especialmente através da figura de Nossa Senhora de Guadalupe, a necessidade de não nos tornarmos uma sociedade do ‘desmadre’ [que esquece a memória da mãe]. O que isso significa?

Leonardo Boff – Um dos temas mais queridos do Papa é o da ternura. Ela deve compor o comportamento principal da pastoral a ponto de falar da urgência de uma revolução da ternura. Já Fratelli tutti fala que “há lugar para o amor com ternura para com os pequenos e mais débeis, aos mais pobres” (n. 194). A ternura é uma relação doce, suave como a mão que acaricia. Ela é uma derivação do cuidado essencial, o verdadeiro título da Laudato Si’: sobre o cuidado da Casa Comum. Todos os seres humanos são portadores de cuidado e de ternura. Mas ela ganha uma densidade maior nas mulheres. São elas que cuidam por nove meses a vida que cresce dentro delas. Depois é o cuidado e a ternura que devotam aos filhos e filhas que os faz crescer sem medos existenciais.

 

 

O Papa Francisco vive pessoalmente este enternecimento maternal para com os pobres e refugiados vindos da África e os da América Latina querendo ir aos EUA, e estende o cuidado à nossa relação para com a natureza e a todos os seres tidos como irmãos e irmãs na grande Casa Comum. Maria viveu este cuidado para o seu filho que crescia dentro dela, durante toda a vida até ao pé da cruz. Isso deve ser assumido pelos seguidores de seu Filho, que foi educado neste cuidado e que mostrou um cuidado especial para com os doentes e empobrecidos. Essa atitude deveria ser vivida pela Mater Ecclesiae, fora dos burocratismos e ritualismos que se exercem quase mecanicamente sem envolvimento pessoal. Daí a importância que tributa a Maria nas atitudes da Igreja, por vezes demasiadamente doutrinalista e ritualista.

 

IHU On-Line – Quem foi São José? Como compreender essa figura no seu tempo, um homem judeu que acaba acolhendo uma mulher grávida?

Leonardo Boff – O José da história é um artesão, um pai, um esposo e um educador. Não sabemos suas origens. São Mateus diz que seu pai foi Jacó (Mt 1,16). São Lucas refere que foi Eli (Lc 3,23). Quer dizer, não o sabemos exatamente nem como foi seu fim. Apenas sabemos que ele não vem do mundo das letras (escribas), nem das leis (fariseus), da burocracia estatal (cobradores de impostos e os saduceus), nem da classe sacerdotal e levítica. Ele é um interiorano, morador de uma desconhecida vila, Nazaré. Chamar alguém de nazareno como a José e depois a Jesus equivalia a chamá-lo de “severino e pobretão” como aparece no evangelho de São João e que alguns renomados exegetas sustentam ser esta a interpretação correta no evangelho de São João.

 

Sua profissão é em grego tékton, nome genérico para alguém que trabalha a madeira, um carpinteiro multifuncional, pois construía casas, telhados, cangas, móveis, rodas, prateleiras, carros de boi. Sabia ainda trabalhar com pedras, construindo muros e sepulturas, e manejava o ferro para fazer enxadas, pás, pregos e grades. Jesus foi iniciado na profissão do pai, pois o chamam “o filho do carpinteiro” (Mt 13,55). Ninguém vivia só de uma profissão. Quase todos trabalhavam no campo, no cultivo de frutas e legumes, numa terra ainda hoje considerada das mais férteis do mundo. Também cuidava do pastoreio do gado, de cabras, de ovelhas e de gado. Tudo isso está implícito na profissão de Jesus como tékton, um factotum.

 

O pai corajoso

 

Já nos referimos a José como pai e como esposo. É uma pessoa corajosa que assumiu uma jovem grávida e a levou para casa, sabe lá Deus os comentários da pequena vila onde todos sabem tudo de todos. Não o fez sem preocupação. E diz-se que era um “homem justo” (Mt 1,19a). Mas não é no sentido nosso, como aquele que dá o valor exato às pessoas e às coisas e que faz tudo direitinho. Biblicamente o justo é também isso, mas, principalmente, é uma pessoa piedosa. Essa vive a ordem do amor a Deus, às tradições do povo e frequenta a sinagoga semanalmente. Quem vive assim se transforma, biblicamente, num justo, vale dizer, uma pessoa que irradia socialmente e pelo exemplo se torna até uma liderança espiritual.

 

 

Esta atmosfera fez dele um educador especialmente do menino que crescia em sabedoria e graça. Iniciou-o nas tradições e festas do povo, como todo pai faz em qualquer lugar. Se Jesus na vida pública prega o amor incondicional e chama a Deus de “Abba” (paizinho querido), foi na carpintaria de José e junto com Maria que experimentou esta intimidade. Jesus viu essa atitude em seu pai e a assumiu como experiência típica sua.

 

IHU On-Line – Por que, nos Evangelhos e demais livros do Segundo Testamento, não se ouve a voz de José? Como podemos interpretar o silêncio de José?

Leonardo Boff – O silêncio de José não é nenhum mutismo de quem não tem nada a dizer. É um operário que fala pelas mãos e pelo exemplo (justo). Nem é absentismo de um alienado que não capta o que está se passando com ele. Ele sabe, como esposo, pai e educador, qual é a sua missão que importa cumprir. Está sempre presente quando se faz necessária a sua presença: na gravidez, no parto, na escolha do nome do bebê, na hora do batismo judaico (circuncisão), na fuga para o Egito, na definição do lugar onde morar, Nazaré, na iniciação de Jesus nas tradições religiosas de seu povo, indo ao templo aos 12 anos.

 

São José, aquele que assume as responsabilidades de pai de Cristo, é muito lembrado na piedade popular | Foto: Vatican News

 

Estas ações se expressam mais por gestos do que por palavras. Paul Claudel, que amava muito São José, por causa de seu silêncio, escreveu em 1934 a um amigo: “O silêncio é o pai da Palavra. Aí em Nazaré há somente três pessoas muito pobres que simplesmente se amam. São aqueles que irão mudar o rosto da Terra”.

 

O silêncio de José representa o nosso cotidiano. Grande parte de nossa vida acontece no seio da família e no trabalho. Logicamente há palavras demais. Mas quando temos que ouvir o outro silenciamos. Quando trabalhamos não conversamos nem discutimos. O trabalho só será bem feito quando nos concentramos, silenciosamente. Possuímos também nosso mundo interior, nossos sonhos, nossas perguntas e preocupações. É silenciando que vemos melhor e escutamos o chamado do coração e nascem visões que dão sentido à vida e nos alimentam a esperança. Não foi diferente com o pai e trabalhador José.

 

Os sonhos de José

 

Mas há uma razão mais profunda que cabe à teologia investigar. O Pai eterno é o mistério absoluto para o qual não há palavras. Ele não fala. Quem fala é o Filho. Mas como disse Jesus, que seu Pai trabalha e ele também. O inefável se expressa pelo mais profundo que existe em nós que é, segundo psicólogos como C. G. Jung, o inconsciente universal. Sua forma preferida de comunicação é através dos sonhos e dos Grandes Sonhos. Este os teve José de Nazaré. É a morada do mistério, do Pai do Filho na força do Espírito.

A imagem da visita do anjo durante o sono de José também é muito popular entre os fiéis | Foto: Wikipédia

 

Ora, São José não fala porque é o portador deste mistério abissal no qual o Pai habita. José se faz a pessoa que apresenta, pelo seu silêncio, o mistério do Pai. Ele acaba sendo a sombra do Pai, a própria personificação terrestre do Pai celeste. Este é o sentido secreto do silêncio de José adequado ao mistério que pede o silêncio reverente porque nenhuma palavra o poderá exprimir.

 

 

IHU On-Line – O senhor quer dizer que José é a personificação do Pai?

Leonardo Boff – A tese central de meu livro é sustentar que Deus se autocomunica assim como ele é. Se é Trindade de Pessoas e sempre estão eternamente juntas e juntas atuam segundo a sua singularidade pessoal e assim se autocomunicam no mundo. Sustento que a primeira Pessoa divina a vir a este mundo foi o Espírito Santo. São Lucas 1,35 o diz claramente que o Espírito veio sobre Maria e armou sua tenda sobre ela (episkiásei), isto significa que começou a morar definitivamente nela.

 

Por trás está o verbo skené que significa tenda, moradia. É a mesma palavra que São João usa para a encarnação do Verbo, do Filho (eskénosen). Aplicando o conceito à vinda do Espírito Santo sobre Maria equivale a dizer que ele a assumiu e a elevou à sua altura divina. Por isso, consequentemente diz: “por causa disto (dià óti) o Santo gerado será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35).

 

Somente quem for feita divina poderá gerar o Divino. Foi o que ocorreu com Maria. Se ela não tivesse dito “fiat”, faça-se, o Filho não teria sido concebido e nascido de Maria. Essa porção divina de Maria é raramente assumida pelas mulheres que estão ainda reféns da cristologia, do Cristo, esquecendo que sem Maria não haveria o Cristo. Da encarnação do Filho não há dúvida, pois se transformou em doutrina dogmática em todas as igrejas cristãs. E São José, ficou de fora? Minha tese é que a Família divina inteira se autocomunicou ao mundo. O Pai, mistério absoluto que guarda um eterno silêncio (quem fala é o Verbo, o Filho), encontrou a pessoa adequada que podia acolher sua presença entre nós, em São José, o homem do silêncio e do trabalho. São José, segundo esta compreensão, é a personificação terrestre do Pai celeste.

 

Equilíbrio perfeito

 

Agora, temos um equilíbrio perfeito porque Deus-Trindade se autocomunicou totalmente a nós: a Maria pelo Espírito Santo, a Jesus pelo Filho, o Verbo e São José pelo Pai. Deus, assim como é, comunhão de Pessoas que eternamente estão juntas (pericórese) no amor mútuo e na mútua entrega de um ao outro.

 

Assim se fecha o círculo: a Família divina está para sempre na família humana que foi assumida por Maria, por Jesus e por José. Pertencemos eternamente ao Reino da Trindade, feitos Deus por participação, correspondendo a cada uma das divinas Pessoas em sua singularidade. Esclareço, isto não é ainda doutrina, mas um teologúmeno, vale dizer, uma reflexão teológica bem fundada que um dia poderá ser assumida por toda a comunidade cristã.

 

IHU On-Line – Uma das cenas mais comoventes da natividade é a jornada de José e Maria a Belém. Como o senhor interpreta essa passagem? Quais as questões de fundo presentes ali e que normalmente são apagadas?

Leonardo Boff – Essa jornada de Nazaré até Belém deve ser corretamente interpretada. O imperador César Augusto decretou a realização de um recenseamento. A finalidade não era simplesmente saber quantos habitantes havia no Império, mas estabelecer um imposto por cabeça. Este imposto anual era para manter a infraestrutura de sacrifícios ao Imperador que se apresentava como Deus. Os judeus não podiam aceitar semelhante blasfêmia, pois implicava reconhecer um Deus que não era o único verdadeiro, Javé.

 

Por isso houve muitas revoltas e a última, no ano 67, que significou a total dizimação do povo e do templo. E os que restaram foram levados como escravos para fora da Judeia. Foram eles que, obrigados, construíram o canal de Corinto, existente até os dias de hoje, que une o Adriático com o Mediterrâneo.

 

José e Maria tiveram que submeter-se a este edito. Como não havia lugar nas hospedarias da região não restou alternativa senão refugiar-se numa estrebaria de animais. Ali nasceu Jesus, fora da comunidade humana e entre os animais. Aquele que veio da escuridão foi o primeiro a ver “a Luz verdadeira que ilumina cada pessoa que vem a este mundo” (Jo 1,9).

 

 

IHU On-Line – Outra cena que completa a jornada de José e Maria é a fuga para o Egito, já com o menino Jesus. Poderia nos explicar esse outro momento? E o que ele revela sobre o entendimento de José acerca do poder político, especialmente de Herodes?

Leonardo Boff – Herodes era um rei sanguinolento e temeroso de perder o trono. Sabendo que nascera um menino da descendência de Davi, eventual sucessor do trono, mandou matar todos os meninos abaixo de dois anos para assim se assegurar que não teria pretendentes. O genocida assim fez. E as Escrituras trazem uma das mais comovedoras expressões das mães que perderam os filhos: “Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: a mãe chora os filhos mortos e não quer ser consolada porque ela os perdeu para sempre” (cf. Mt 2,28).

 

 

Quantas mães hoje na Baixada Fluminense choram seus filhos inocentes mortos pela polícia enquanto estavam brincando ou simplesmente conversando na porta de casa. Sabendo o quanto sanguinolento era Herodes, José tomou Maria e Jesus, atravessou o deserto, com todos os riscos que os evangelhos apócrifos relatam, e chegou com eles ao Egito, país odiado pelos judeus pelo tempo de escravidão que lá sofreram. Somente quando se certificou de que Herodes havia morrido, voltou e foi se esconder numa vila desconhecida ao norte, em Nazaré, para lá estarem finalmente seguros.

 

IHU On-Line – Que narrativa se constitui de São José até o decreto Quemadmodum Deus, assinado em 8 de dezembro de 1870 por Pio IX, em que torna José Esposo de Maria e Padroeiro da Igreja Católica? E o que muda na história contada acerca de José depois desse decreto?

Leonardo Boff – De modo geral São José nunca teve centralidade na Igreja latina. Quase tudo se concentrava em Jesus e em Maria. Somente no século VIII se começou certo culto a São José. Só a partir dos anos 800 aparecem os primeiros sermões, pois a Igreja não sabia o que fazer com alguém que não dissera nenhuma palavra e tivera somente sonhos. Só em 1870 foi proclamado patrono da Igreja Universal não pelo Papa Pio IX, mas por um decreto da Congregação dos Ritos.

 

Pio XII proclamou o dia primeiro de maio o dia de São José, o trabalhador. Mas foi somente o Papa João XXIII que introduziu seu nome no cânon da missa, “São José, Esposo de Maria. O verdadeiro culto a São José, seja como trabalhador ou patrono da boa morte, foi por séculos venerado pelo povo. Eles conheciam os apócrifos, cheios de detalhes da vida cotidiana de Jesus, que inspirou os artistas renascentistas e até hoje em dia, como entre outros ‘A história de José, o carpinteiro’ e ‘Diálogos de Jesus, Maria e José’”. Comovente são as palavras de Jesus, no A história de José, o carpinteiro: “Vendo que expirava eu me atirei sobre o corpo de meu pai José, fechei seus olhos, cerrei sua boca e levantei-me para contemplá-lo”. Mais tarde confidenciou aos Apóstolos “quando iam sepultá-lo, não me contive, lancei-me sobre seu corpo e chorei longamente”.

 

São José, por causa da devoção popular – é o patrono do Ceará – dá nome a pessoas, ruas, edifícios, escolas e a várias congregações religiosas, especialmente dos Josefinos, que levam pelo mundo seu nome. Comenta, entretanto, um dos maiores conhecedores da Josefologia, dos estudos sobre São José: “a Santa Sé foi a última a ser conquistada para a devoção de São José”. Com a Exortação Apostólica Patris corde do Papa Francisco se deu mais um passo na consolidação da devoção daquele que, segundo minha compreensão, é a personalização do Pai celeste.

 

 

IHU On-Line – São José também é uma das figuras mais presentes na piedade popular. Como o senhor analisa essa devoção, especialmente no Ceará e Nordeste brasileiro?

Leonardo Boff – Na Igreja oficial são os papas, bispos e padres que detêm a palavra e possuem visibilidade. São José, oficialmente, é quase invisível. Mas existe um poderoso cristianismo popular, cotidiano e anônimo do qual poucos tomam nota. Nele vive a grande maioria dos cristãos, nossos pais, avós e parentes que tomam a sério o Evangelho e o seguimento de Jesus. São José por seu anonimato e silêncio se insere dentro desse mundo pequeno que é das grandes maiorias.

 

Mais que patrono da Igreja universal, é o patrono da Igreja doméstica, dos irmãos e irmãs menores de Jesus. Ele é um representante da “gente boa”, da “gente humilde”, sepultados em seu dia a dia cinzento, ganhando a vida com muito trabalho e suor e levando honradamente suas famílias pelos caminhos da honradez, da solidariedade e do amor. Orientam-se mais pelo sentimento profundo de Deus que por doutrinas teológicas sobre Deus. Para eles, como para José, Deus não é um problema, mas uma luz poderosa para os problemas.

 

Foi num ambiente assim popular que cresceu e se educou Jesus. E o povo inconscientemente em sua fé intuitiva captou essa singularidade, de que não fala, mas sempre acompanha os fiéis em suas dificuldades e em suas festas.

 

IHU On-Line – Que mensagem o senhor pode nos deixar para que enfrentemos 2021 com coragem e alegria e que, mesmo diante das adversidades, nutramos a esperança por um novo tempo?

Leonardo Boff – Vivemos tempos sombrios como aqueles vividos por São José. Ele nunca abandonou Maria e ficou junto ao Filho até que ele começasse sua missão libertadora. Cumpriu sua missão e desapareceu, pois fez tudo o que tinha a fazer, como pai, esposo, trabalhador e educador. Ele pode nos acompanhar nestes tempos de abatimento e dor de tantos milhares e no mundo milhões que perderam seus entes queridos.

 

 

Seu filho não morreu na cama, mas em dores terríveis no alto da cruz. Mas ressuscitou para nos dizer: a morte não tem a última palavra. Mesmo os que morrem, me seguirão em minha ressurreição. Eu sou apenas o primeiro entre muitos irmãos e irmãs. A vida não é feita para acabar na morte, mesmo de forma tão triste como agora, mas para se transformar através da morte em vida nova em Deus, que recebe a todos como Pai materno ou Mãe paterna para viverem felizes com todos os que os antecederam, avós, pais, irmãos, parentes e amigos. A vida sempre escreve a última página.

 

Palavra final: eu assumi intencionalmente o mandato que Jesus deixou aos Apóstolos: “Quando fordes revestidos de minha força e receberdes o Espírito de meu Pai, o Espírito Paráclito e quando fordes pregar o Evangelho, pregai também a respeito do meu querido pai José” (A história de José, o carpinteiro, capítulo 30, n.3). O Papa Francisco com sua Exortação Patris corde e eu fizemos nossa parte. Que os cristãos, homens e mulheres, façam também a sua.

 

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