Mina Guaíba. “Agora é o momento de promover outro desenvolvimento”. Entrevista especial com Clara Pugnaloni

O atual modelo de desenvolvimento não tem preocupação com a finitude dos recursos naturais e abreviará a vida das espécies na Terra, diz a pesquisadora

Mina de exploração de carvão | Foto: Racismo Ambiental

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 23 Setembro 2020

No âmbito global e local se manifestam situações ambientais e sociais que nos levam a refletir sobre a espécie de desenvolvimento que desejamos para a nossa sociedade. Globalmente, a pandemia de covid-19 já é um fenômeno que mostrou suas inúmeras consequências e, localmente, o projeto de mineração de carvão mineral, areia e cascalho, conhecido como Mina Guaíba, que está em processo de licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul, poderá gerar impactos catastróficos para a população que reside no entorno de Porto Alegre.

 

Refletir sobre este modelo de desenvolvimento que se mostra cada dia mais insustentável é uma das tarefas da pesquisadora e doutora em Ciências Sociais Clara Pugnaloni. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela menciona que “a ideia de desenvolvimento ainda encerra as perspectivas que o alinham aos índices de crescimento, da industrialização, que é uma visão mais restrita”. Entretanto, pontua, “o limite desse modelo é bastante claro, pois não será possível manter o atual ritmo de exploração dos recursos naturais do planeta. Entendo que esse é um entendimento em evolução, pois o debate sobre as mudanças climáticas, o aquecimento global, a segurança alimentar e a escassez de recursos naturais está ativo nos meios de comunicação, uma vez que essas questões estão se materializando em nosso tempo”. E acrescenta: “Estamos em uma situação, como país e como mundo, nunca vista pelas gerações que foram próximas às nossas”.

 

A seguir, ela explica as razões que deveriam levar a sociedade gaúcha a questionar o projeto da Mina Guaíba e também discorre sobre problemas ambientais e sociais que são consequência do atual modelo de desenvolvimento em todo o mundo. “Não penso ser possível promover uma outra narrativa sobre desenvolvimento para o projeto de uma mina de extração de carvão a céu aberto, a quinze quilômetros de Porto Alegre. Agora é o momento de promover outro desenvolvimento, não outra narrativa, e esse com certeza não contempla empresas mineradoras”.

 


Clara Pugnaloni (Foto: Arquivo pessoal)

 

Clara Pugnaloni é doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. É pesquisadora do Centro de Estudos de Avaliação e Mensuração em Comunicação e Marketing - Ceacom, da Universidade de São Paulo - USP. Como Consultora Internacional de Comunicação na Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação - FAO, atuou no planejamento e gestão da comunicação em projeto da FAO e da Comunidade Europeia nas províncias de Luanda, Huíla e Benguela em Angola, na África Subsaariana.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Que ideia de desenvolvimento está presente atualmente nos meios de comunicação? Quais os limites desse modelo e em que medida o projeto da Mina Guaíba revela o esgotamento desse desenvolvimentismo?

Clara Pugnaloni – Penso que a ideia de desenvolvimento ainda encerra as perspectivas que o alinham aos índices de crescimento, da industrialização, que é uma visão mais restrita. O pesquisador do Núcleo de Economia Socioambiental da USP, professor José Eli da Veiga, afirma, no livro Sustentabilidade, que não houve mudança significativa no entendimento dos determinantes de progresso, prosperidade, ou do desenvolvimento. Concordo que continuam a ser percebidos como “resultados diretos, proporcionais lineares e unívocos do desempenho econômico medido pelo crescimento do produto bruto”.

O limite desse modelo é bastante claro, pois não será possível manter o atual ritmo de exploração dos recursos naturais do planeta. Entendo que esse é um entendimento em evolução, pois o debate sobre as mudanças climáticas, o aquecimento global, a segurança alimentar e a escassez de recursos naturais está ativo nos meios de comunicação, uma vez que essas questões estão se materializando em nosso tempo.

 

 

Mina Guaíba – retrocesso na produção de energia

A Mina Guaíba, que representa profundo retrocesso em produção de energia, seria um projeto impensável sob o entendimento do desenvolvimento holístico, na linha proposta por Amartya Sen. Para o prêmio Nobel de 1998, a ampliação das liberdades humanas é central para o processo de desenvolvimento por duas razões: (i) avaliatória - a avaliação do progresso deve verificar primordialmente a existência de aumento da liberdade das pessoas, (ii) eficácia - a realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de agente das pessoas. O fato de o projeto prever a “remoção forçada” dos atores sociais de suas próprias terras comprova a negação da liberdade humana.

Na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, a ativista de 12 anos do Environmental Children’s Organization, Severn Suzuki, fez um dos discursos mais marcantes daquele encontro e disse: “Se vocês não podem recuperar nada disso, por favor, parem de destruir!”

Sabe-se que existe um interesse grande na areia e cascalho que resultam da exploração do carvão por parte da construção civil. Uma cidade poluída tem acelerada desvalorização dos imóveis, pois hoje as pessoas prezam viver onde encontram qualidade de vida. Esperamos que a sociedade gaúcha entenda a gravidade de ter um projeto como a Mina Guaíba instalado nas cercanias de Porto Alegre, em uma região hoje dedicada à produção rural. O processo de mineração é uma produção da morte. Da morte do rio, da morte da vegetação de seu entorno, da morte dos animais silvestres, da morte dos humanos que adoecem por viver em suas cercanias e a morte da esperança das futuras gerações no legado de um mundo melhor.

Para fundamentar a minha afirmação, citarei uma das decisões judiciais do TRF4, “que fez história e teve grande repercussão na vida das pessoas”. Trata-se da manutenção da sentença que condenou a União e diversas mineradoras a efetuarem a recuperação ambiental da região carbonífera do Sul de Santa Catarina. E o interessante será ver os argumentos que levaram à condenação. Convém salientar que são minas de carvão a céu aberto como a Mina Guaíba que a Copelmi quer implantar no Rio Grande do Sul.

Autor da ação civil pública, o Ministério Público Federal - MPF ingressou com o processo na Justiça Federal de Criciúma, solicitando a recuperação e/ou indenização pelos danos provocados ao meio ambiente, decorrentes de mineração realizada a céu aberto e em vias subterrâneas entre os anos de 1972 e 1989, em áreas dos municípios catarinenses de Criciúma, Forquilhinha, Lauro Müller, Urussanga, Siderópolis, Içara e Orleans. Afirmou o MPF que a mineração provocou muitas doenças diagnosticadas na região, e “pelo depósito final de rejeitos sólidos e despejo de efluentes em cursos d’água, comprometeu mais de 4 mil hectares de terras e contaminou os rios Araranguá, Tubarão e Urussanga e as Lagoas Santo Antônio, Imaruí e Mirim. Mais especificamente o MPF citou “a contaminação dos rios pelas águas sulfurosas e ácidas, procedentes das minas de galeria e de mineração a céu aberto, dos processos de beneficiamento, dos depósitos de rejeitos (as cinco principais cidades recebem 300.000 metros cúbicos de efluentes líquidos), e a chuva que banha de ácido sulfúrico as plantações afetam diretamente a saúde da população”. (...) Mais grave ainda é a contaminação do ar, “que já causou milhares de pessoas com pneumoconiose (pulmões entupidos pelo pó de carvão)”.

A sentença destaca que a inadequada disposição de rejeitos sólidos e das águas efluentes da mineração e do beneficiamento de carvão acarretou uma degradação ambiental tão severa que a região foi considerada, pelo Decreto 85.206/1980, a 14ª Área Crítica Nacional para efeito de Controle da Poluição e Qualidade Ambiental.

Mapa cedido por Rualdo Menegat

 

IHU On-Line – Como superar o discurso corrente, endossado pelos meios de comunicação, de que o campo ambiental, especialmente o licenciamento, é entrave para o desenvolvimento?

Clara Pugnaloni – Creio que nos reportando às experiências anteriores que resultaram em empreendimentos danosos para o meio ambiente, para a saúde dos trabalhadores e dos moradores do entorno, e para as cidades que sediam essas iniciativas empresariais. E, principalmente, refletindo sobre que espécie de desenvolvimento desejamos para a nossa sociedade. Essa é uma decisão muito importante e que não pode ficar unicamente no âmbito das empresas e do poder público. A comunidade será impactada pela proximidade e exposição de longo prazo à mina de carvão e, portanto, deverá ter o direito de participar de todo o processo. Somente a informação poderá garantir às pessoas o direito de lutar pela sua saúde e por um meio ambiente saudável e livre da degradação.

 

Polo carbonífero de Santa Catarina

Podemos nos reportar aqui, novamente, ao polo carbonífero de Santa Catarina, como exemplo. Quem vai, no verão, de automóvel, para Santa Catarina, certamente já passou pela região do carvão. O cheiro pode ser sentido de longe. Eu duvidaria muito que se a comunidade local tivesse sido suficientemente informada, e tivesse poder decisório, teria aceitado a precarização da saúde e a devastação do meio ambiente, resultante daquela exploração predatória. Qual o motivo de dar visibilidade à tragédia ambiental provocada pela mineração em Santa Catarina? Para que saibamos, baseados no histórico do estado vizinho, o que ocorrerá nas cercanias de Porto Alegre caso essa mina se instale. Eu não quero que meus filhos e netos tenham que conviver com problemas ambientais tão graves e que são, comprovadamente, extremamente prejudiciais à saúde. Será que alguém quer?

 

 

Danos ambientais e sociais

De acordo com o Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, publicado pela Fiocruz, além dos desastres de deslizamentos de terra e da destruição de áreas urbanas e moradias, as pilhas de rejeitos da mineração de carvão com dezenas de metros de altura são lavadas por enxurradas, o que provoca reações que aumentam a acidez dos corpos d’água e das águas subterrâneas. Isso causa reações que podem alterar todo o ecossistema local. O aumento da acidez dos rios e do solo é acompanhado por emissões gasosas altamente poluentes e pode provocar a chamada chuva ácida. Essa resultará em sérios danos para a vegetação e atividades agrícolas, o que poderá tornar a terra improdutiva.

Esse é o dano visível. O dano invisível aos nossos olhos é o mais severo. Com o processo de mineração, os rejeitos infiltram-se no solo e chegam até as águas subterrâneas, contaminando irremediavelmente nossas reservas futuras. Como é conhecido, no local onde a Mina Guaíba pretende se instalar existe um importante aquífero. Será a água, e não carvão, areia ou cascalho, o bem mais precioso no futuro, pois dela depende a nossa vida. Há que ser repensado o modelo de desenvolvimento, porque deverá necessariamente estar alinhado com a preservação ambiental.

 

IHU On-Line – Em que consiste o conceito de comunicação para o desenvolvimento e como se articula com a ideia de desenvolvimento sustentável?

Clara Pugnaloni – A Comunicação para o Desenvolvimento - ComDev foi definida na Assembleia Geral da ONU (resolução 51/72, artigo, 6) como sendo um processo que permite às comunidades falar, expressar suas aspirações e preocupações e participar nas decisões que dizem respeito ao seu desenvolvimento. Assim, a Comunicação para o Desenvolvimento é um processo social, baseado no diálogo, que utiliza uma ampla gama de ferramentas e métodos com o objetivo de partilhar conhecimento e competências. Visa construir políticas e promover debates que resultem em mudança significativa e sustentada em direção ao desenvolvimento e ao bem comum (ONU, 2006:9).

Note-se que essa definição contrasta profundamente com a tendência de associar a palavra comunicação com conceitos como disseminação, informação, mensagem, mídia e persuasão. O jornalista boliviano Alfonso Gumucio Dagron sublinha que a Comunicação para o Desenvolvimento engloba esses conceitos e incorpora uma visão muito mais ampla para facilitar o diálogo, investigar riscos e oportunidades, comparar percepções e definir prioridades para mensagens e informações. E, o fundamental de um processo social, envolver as pessoas no seu próprio desenvolvimento.

A diferença real entre a comunicação e Comunicação para o Desenvolvimento reside nessa visão mais ampla, que considera as opiniões das pessoas afetadas pelas alterações decorrentes do desenvolvimento como participantes ativos de um processo social, e não apenas receptores de mensagens. Se o desenvolvimento é algo feito por e para as pessoas, a Comunicação para o Desenvolvimento deve ser central em qualquer iniciativa de desenvolvimento, pois envolve os right holders em seu próprio processo de inclusão e de crescimento.

Existem alguns aspectos diferenciadores que são fundamentais nesta comunicação: (i) buscar mais que a visibilidade institucional específica das relações públicas; (ii) ser um processo inclusivo e horizontal; (iii) constituir-se alternativa aos interesses políticos e comerciais hegemônicos; (iv) restituir o valor à terminologia social; e (v) rechaçar o mercantilismo dos meios massivos. Comunicação para o Desenvolvimento significa uma comunicação participativa que identifica as necessidades de informação dos interlocutores, encerra a produção das mensagens e a sua apropriação pela comunidade, igualmente de forma participativa. A reflexão sobre a Comunicação na contemporaneidade mostra e existência de uma unidade profunda entre todos os setores relacionados com a comunicação. A sociedade planetária, interligada pela comunicação, atingiu a profecia feita por Wainer em 1948 e materializou o conceito da “sociedade da comunicação”.

 

 

Desenvolvimento sustentável

O desenvolvimento sustentável é um conceito-chave criado por Gro Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega, que presidiu em 1983 a Comissão Internacional sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Em 1987, o Comitê Brundtland, que deveria esboçar novos modos de proteger o meio ambiente, de combater a pobreza e o descontrolado crescimento populacional, publica o relatório “Our common future”.

Nele fica estabelecido que um sistema socioeconômico somente é sustentável se: “(i) a atividade econômica puder se desenvolver de modo socialmente satisfatório, sem destruir a biodiversidade e sem alterar as coordenadas ambientais do planeta numa velocidade superior à sua capacidade de adaptação; (ii) a atividade econômica for capaz de “satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias”.

Na época, Gro Brundtland afirmou que o desenvolvimento sustentável se constituiria em um desafio importante e que a participação popular seria decisiva para atingi-lo. Enfim, a sustentabilidade deve ser uma meta da sociedade, pois “os problemas ambientais não desaparecerão sem um ativo desejo de mudança”. Em suas memórias, frisou que a pressão pública é crucial “em muitos países nos quais os políticos não levarão a questão a sério até que a pressão do povo seja forte o suficiente para ser efetiva”. A participação das pessoas em seu próprio desenvolvimento se constitui, a meu ver, no elo entre os dois conceitos.

 

IHU On-Line – Como compreender o papel das mídias sociais na Comunicação para o Desenvolvimento?

Clara Pugnaloni – A ComDev atua em eixos do Terceiro Setor como saúde, sustentabilidade, educação, cultura, governabilidade, gênero e segurança alimentar. A ComDev é fundamental em estratégias de desenvolvimento de Organizações Internacionais e ONGs ao valorizar a sabedoria tradicional das comunidades e torná-las participantes. Estamos em uma realidade em que as ações positivas e negativas não podem mais ser ocultadas. As ferramentas de comunicação – instantâneas e portáteis – tornam a todos passíveis de visibilidade local e global. E permitem que as transgressões à lei e aos direitos dos cidadãos, por parte do poder do Estado, cheguem rapidamente ao conhecimento da comunidade internacional. É a comunicação demonstrando seu poder e centralidade na sociedade contemporânea: ser matéria-prima estratégica. Demonstrando, também, que nada mais poderá ser ocultado, como pontua Ignacio Ramonet. O jornalista e sociólogo acredita que este será o século em que a comunicação e a informação finalmente pertencerão a todos os cidadãos.

 

 

Fontes confiáveis

Quando entrevistei o diretor da Human Rights Watch - HRW sobre essa problemática para minha pesquisa de pós-doutorado, ele entendia que o grande desafio para as ONGs, a partir da difusão por ativistas e extremistas de imagens e vídeos de rebeliões pelas mídias sociais, seria distinguir as fontes confiáveis. Jean-Marie Fardeau sublinhou que a disponibilidade imediata da informação nas mídias sociais transformou a capacidade de ONGs monitorarem e comunicarem sobre as relações de países com os direitos humanos. Além de possibilitar que uma informação fosse disponibilizada para o mundo inteiro em poucos segundos, Fardeau explicou como essa rápida disseminação de informação permitiu influenciar a maneira como Estados tiveram que proteger rapidamente certas populações de risco. As mídias sociais multiplicaram por cem o poder da comunicação. Com isso, a pressão sobre quem está no poder aumentou de maneira incrível por se saber tudo instantaneamente, pontuou o diretor da HRW na França. Os poderes estão desestabilizados com toda essa exposição. E pouco a pouco tentarão criar maneiras de evitar esse tipo de pressão, insuportável para eles.

As redes transformaram o trabalho da HRW e da Anistia Internacional, explicou o dirigente. Antes um processo levava meses, entre entrevistas no campo, redação, edição e publicação. Agora, adaptada ao novo contexto, a HRW tem o direito de comunicar ao vivo. São cento e trinta pessoas, na organização, que comunicam do Twitter, além da própria HRW que comunica em dez idiomas. Fardeau salientou o risco que a ONG corria – apesar da boa formação e o cuidado na verificação da informação – de retuitar vídeos que são manipulações de grupos extremistas. “Eles utilizam imagens de outros conflitos, ou de conflitos passados”.

O que compreendemos? Que as mídias sociais conferem poder e também fragilidade para a comunicação.

 

IHU On-Line – No caso do projeto da Mina Guaíba, quais os desafios para promover uma outra narrativa sobre desenvolvimento?

Clara Pugnaloni – Não penso ser possível promover uma outra narrativa sobre desenvolvimento para o projeto de uma mina de extração de carvão a céu aberto, a quinze quilômetros de Porto Alegre.

A população porto-alegrense já foi bastante impactada por um outro projeto. Depois de ter negada a sua fábrica de celulose em vários países, a norueguesa Borregaard se instalou em Guaíba, em março de 1972, tornando tóxicas e pestilentas as águas do Guaíba, fedorento o ar de Porto Alegre e causando sérios problemas respiratórios em parte da população. A reação contra a empresa fez surgir um dos mais combativos movimentos dos ecologistas que o país conheceu e resultou em um inédito processo de revisão dos métodos produtivos. A luta contra a Borregaard aglutinou e fortaleceu o movimento ambientalista gaúcho que teve em José Lutzenberger uma importante liderança. A história pode ser conhecida no livro Borregaard: um marco da luta ambiental no Rio Grande do Sul, da jornalista Lilian Dreyer.

Agora é o momento de promover outro desenvolvimento, não outra narrativa, e esse com certeza não contempla empresas mineradoras. O ponto positivo gerado por esse conflito de interesses é ter sido o movimento ambientalista gaúcho mais uma vez fortalecido. O lançamento do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul, apoiado por mais de 50 entidades, demonstra a mobilização social contra a entrada de quase duas centenas de projetos. Com eles, as mineradoras pretendem esburacar o Rio Grande do Sul e criar barragens de rejeitos como as que explodiram em Minas Gerais, em um rastro de destruição e mortes. No lançamento do comitê foi levantado um questionamento, a meu ver, fundamental: “Como pode um governo negociar a saúde e a vida da população?”. Não creio que os votos dados aos governantes lhes deem esse direito. E este é o momento certo para a população demonstrar isso.

 

IHU On-Line – A senhora afirma que o projeto da Mina Guaíba “destrói qualquer esperança de uma sociedade sustentável no Rio Grande do Sul”. Por quê?

Clara Pugnaloni – O fato de a capital do Rio Grande do Sul ser uma cidade banhada por um rio, lhe confere beleza (não consigo chamar de lago, apesar de Saint-Hilaire tê-lo classificado assim eu seu diário, e de ser conhecido, no século XVII, como Lago de Viamão ou Lago de Porto Alegre). Tem coisa mais bonita do que assistir ao pôr do sol sobre o Guaíba? O rio deixa a cidade mais humanizada e possibilita a fruição da população em esportes náuticos, passeios de barco, mergulhos no verão. Ou as tradicionais regatas que singram as águas do Guaíba.

Eu acredito que exista uma ligação sentimental do porto-alegrense com o seu rio. Essa afinidade está presente até no nome do estádio do clube mais popular do estado, o Gigante do Beira-Rio. A cidade nasceu e cresceu margeando o Guaíba e hoje pode contar com o serviço de transporte fluvial, o que facilitou a mobilidade da população que se desloca entre Porto Alegre e a cidade de Guaíba.

Quantas vezes foi citado o nome Guaíba? Quando falamos do rio, quando falamos do estádio do coração de muitos torcedores, da cidade que leva o seu nome e ao lembrarmos do seu pôr do sol, nos referimos a ele ao citarmos regatas como a mais tradicional da vela gaúcha, o Troféu Seival, em que os competidores velejam pelo Guaíba até a Lagoa dos Patos. São boas lembranças? Para mim, que me criei dentro do rio, sem dúvida.

 

 

Impacto ambiental

Pois o nome Guaíba pretende ser incorporado por um empreendimento de extração de carvão a céu aberto, altamente poluente, que produz material particulado profundamente prejudicial à saúde e resíduos de mineração que liberam todos os componentes da tabela periódica. E qual será a resultante desse descalabro? A profunda poluição das águas do Guaíba que abastecem a cidade, além da formação de imensas cavas e barragens de rejeitos que colocam em perigo o meio ambiente e a população. As imagens dos desastres de Mariana e de Brumadinho são autoexplicativas.

O carvão mineral é um combustível fóssil de alto teor energético e extremamente agressivo ao meio ambiente. Sua exploração iniciou-se na Primeira Revolução Industrial do século XVIII. A exploração desse minério causa sérios problemas socioambientais tanto na mineração, como no seu beneficiamento ou combustão, naturais e urbanos, pois são liberados poluentes que impactam negativamente os ambientes, gerando problemas que podem ser irreversíveis. Um deles é a formação de lagoas ácidas próximas a mineradoras ou empresas exploradoras de carvão como foi explicitado no estudo “Problemas Ambientais decorrentes da exploração do carvão mineral” (Torrezani &Oliveira, 2013).

Os elementos químicos resultantes da mineração causarão graves doenças na população. Algumas descritas a seguir:


O Greenpeace publicou, há alguns anos, o livro Carvão - O combustível de ontem (2004), coordenado por Kathia Vasconcellos Monteiro. Considero um ótimo material sobre exploração de carvão. Acredito que o fragmento de texto que selecionei dessa publicação responderá por que a Mina destrói qualquer esperança de uma sociedade sustentável no Rio Grande do Sul:

“(...) a história do uso do carvão mostra como ele pode afetar áreas naturais, comprometer a disponibilidade e a qualidade de recursos hídricos, destruir o potencial turístico de regiões inteiras, criar conflitos com comunidades locais, reduzir a biodiversidade e degradar frágeis ecossistemas. Os carvões contêm altos teores de sílica, ferro, enxofre, alumínio e, em baixas concentrações, praticamente todos os elementos da tabela periódica. Sua mineração, beneficiamento e combustão produzem uma variedade de resíduos ricos em elementos-traço como cádmio, zinco, cobre, níquel, arsênio, chumbo, mercúrio, cromo, selênio e em compostos orgânicos de elevado potencial de toxicidade. As características físico-químicas desses resíduos implicam em impactos significativos em ecossistemas terrestres e aquáticos. Eles podem mudar a composição elementar da vegetação e penetrar na cadeia alimentar. A degradação do solo e da água, pela drenagem ácida que se forma quando esses resíduos ricos em enxofre ficam expostos à ação do ar e das chuvas, pode continuar avançando por dezenas e até centenas de anos, sublinha a publicação do Greenpeace. Elementos que se encontram na natureza em pequenas concentrações que, quando liberados ou concentrados no ambiente pela ação do homem, apresentam grandes riscos à saúde e à vida. Consideramos esses fatores já bastante conhecidos, uma vez que a mineração do carvão tem seu início no século XVIII.

 

 

Impactos gerados pelos poluentes

Vejamos os Impactos de alguns poluentes gerados pela exploração do carvão, descritos na publicação do Greenpeace. A legislação classifica o material particulado em Partículas Totais em Suspensão, Partículas Inaláveis e Fumaça. As frações menores, inaláveis (PM10), penetram profundamente no aparelho respiratório e são as mais perigosas. No caso do carvão, o impacto do material particulado começa com a mineração, que provoca imensas nuvens de poeira. As partículas em suspensão na poeira potencializam os efeitos dos gases poluentes presentes no ar. Essa poeira afeta a capacidade de o sistema respiratório remover as partículas do ar inalado, que ficam retidas nos pulmões. A queima do carvão produz grandes volumes de partículas muito finas, que carregam consigo hidrocarbonetos e outros elementos. As partículas absorvem o dióxido de enxofre do ar e, com a umidade, formam-se partículas ácidas, nocivas para o sistema respiratório e o meio ambiente. Os efeitos da mistura são mais devastadores do que os provocados isoladamente pelo material particulado e pelo dióxido de enxofre.

A queima de carvão e petróleo é responsável por 85% do enxofre lançado na atmosfera (causa principal da poluição urbana e da chuva ácida) e por 75% das emissões de dióxido de carbono (ou gás carbônico – CO2), causadoras do “efeito estufa”.

Os efeitos mais perigosos da poluição atmosférica estão associados à saúde pública. No Brasil, há poucos dados que cruzem informações ambientais e de saúde, embora algumas doenças estejam definitivamente associadas às atividades carboníferas. Segundo a Fundação Nacional de Saúde - Funasa, a Pneumoconiose dos Trabalhadores de Carvão - PTC, doença causada pela aspiração do pó de sílica e carvão, ocorre com maior frequência, no Brasil, nos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, onde estão concentradas as maiores bacias carboníferas do país. Somente na região de Santa Catarina, existem mais de 3.000 casos de PTC.

 

 

IHU On-Line – Pelo que a senhora tem pesquisado, no Brasil e no mundo, quais as maiores ameaças a uma sociedade sustentável?

Clara Pugnaloni – Acredito ser o modelo de desenvolvimento que não tem preocupação alguma com a finitude dos recursos naturais, pois abreviará a vida das espécies na Terra, incluindo a nossa. Até os anos 1950, era esse o modelo vigente e se originava nos princípios da Revolução Industrial. A noção de desenvolvimento tinha relação direta com a industrialização e o crescimento econômico. Houve a implantação expressiva de indústrias nos países em desenvolvimento e, muitas delas, despejavam os resíduos de sua produção sem nenhum tipo de tratamento, nos rios ou no ar. Isso gerou uma série de catástrofes ambientais e o início da reflexão sobre o rumo das atividades humanas no planeta. Surge a ideia de estabelecer a limitação ao crescimento industrial como forma de conter danos irreparáveis aos recursos finitos da Terra.

A partir dos anos 1970, do século XX, os ambientalistas passam a divulgar os danos que o progresso e o desenvolvimento causavam ao meio ambiente e à vida na Terra. A Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada em 1983, publica o relatório “Nosso Futuro Comum”, em 1987. Ficou estabelecido no “Relatório Brundtland” que os problemas ambientais e a busca pelo “desenvolvimento sustentável” são diretamente ligados ao fim da pobreza e a satisfação básica de alimentação, saúde e habitação, assim como a adoção de matrizes energéticas que privilegiem as fontes renováveis e a inovação tecnológica. A síntese da história nos mostra que a luta pela preservação ambiental e a necessidade de adoção de matrizes energéticas limpas já tem quase meio século.

Talvez as maiores ameaças a uma sociedade sustentável sejam os governos que elegemos, pois a sociedade civil vem estabelecendo os marcos deste entendimento há quarenta anos, sem que sejam postos em prática. A pressa do governador Eduardo Leite (PSDB-RS) em aprovar na Assembleia Legislativa um novo Código Ambiental para o Rio Grande do Sul com o artifício da votação pelo acordo de líderes, sem ter sido analisado pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente, demonstra isso. Qual o motivo para tamanha pressa? Alguém pode considerar razoável alterar cerca de 500 pontos do código anterior, aprovado em 2000 depois de ter sido discutido por nove anos, realizando uma única audiência pública? O Estado não permitiu a participação da sociedade na discussão de uma legislação que terá impacto em todo o Rio Grande do Sul. Por sorte, especialistas entendem que a manobra do governo cria insegurança jurídica em torno do novo Código, e qualquer empreendimento que venha a ser instalado com base na nova legislação poderá ser questionado judicialmente.

 

IHU On-Line – Quais os desafios para a constituição de uma sociedade sustentável? Como mobilizar a sociedade civil, o poder público e as empresas privadas?

Clara Pugnaloni – Creio que o maior desafio será a necessária busca pelo entendimento e pela conciliação na defesa dos interesses diversos: da sociedade, do poder público e das organizações. Os dados divulgados pelo Banco Mundial são claros. O planeta não comporta esse ritmo de extração dos recursos naturais. E a se manter o atual nível de produção e de consumo, daqui a 30 anos, quando é previsto que o crescimento da população atinja a marca de 9,6 bilhões de indivíduos, o planeta Terra não mais poderá suprir recursos naturais suficientes para manter o nível de consumo atual. Esse prognóstico fez as Nações Unidas incluírem o consumo em sua discussão sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS para 2030. Eu abordei a questão da sociedade sustentável em meu livro Comunicação e Desenvolvimento: Entre imagens e bombas. Resgatarei parte daquele texto para responder a essa questão.

 

 

Três eixos de equilíbrio

A luta pelo desenvolvimento, estabelecida como uma condição existencial humana para a autorrealização, necessita do equilíbrio entre três eixos: (i) “ser mais”, que exprime os fatores culturais do desenvolvimento a partir do sistema de valores da sociedade humana; (ii) “ter mais”, que pressupõe a satisfação material progressiva que não contribua com o consumismo nem com o desequilíbrio do ambiente ecológico; (iii) “fazer mais”, que significa a dinâmica produtiva e institucional de criar ocupações dignas e postos de trabalho, ao invés do desemprego. Por fim, respeitadas as especificidades das culturas, percebem-se, associados à noção de desenvolvimento, valores como habitação, cuidados sanitários e educação, segurança ecológica, liberdades cívicas, segurança alimentar e o respeito aos direitos humanos, entre eles o direito à comunicação, esses próprios de sociedades sustentáveis.

A ideia de sustentabilidade acrescenta ao desenvolvimento um conjunto de ações que visam à salvaguarda da biosfera e, consequentemente, das futuras gerações. A noção contém um componente ético importante, pontua o sociólogo francês Edgar Morin. Ele não crê, no entanto, que aperfeiçoe a ideia de desenvolvimento de forma profunda. O problema de nossa civilização é de extrema complexidade, pois inclui complementarmente traços excepcionalmente positivos e traços excepcionalmente negativos. E a trajetória que percorremos até agora não nos permite, no entendimento de Morin, prever quais deles serão os dominantes.

 

IHU On-Line – Grandes desastres ambientais como os de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, e mesmo o derramamento de óleo no litoral brasileiro e incêndios na Amazônia geram narrativas midiáticas que causam grande comoção. No entanto, com o passar do tempo, o tema sai das manchetes e, efetivamente, pouca mudança ocorre. Como analisa esse quadro?

Clara Pugnaloni – Penso ser inacreditável que crimes ambientais do porte dos rompimentos das barragens de rejeitos de mineração do consórcio Samarco, Vale e BHP Billiton, em Mariana (MG), e da Vale, em Brumadinho (MG), tenham ocorrido e se repetido. A irresponsabilidade matou centenas de pessoas, destruiu localidades, a fauna, a flora, a vida e os sonhos das pessoas e, para os atingidos, continua impune. O crime ambiental das mineradoras matou o rio Doce, contaminou a água das populações atingidas, acabou com a agricultura, com a criação de pequenos produtores e produziu uma deterioração ambiental e social de uma magnitude nunca vista. A lama correu rápido, ao contrário do julgamento dos culpados, da indenização dos atingidos e da reconstrução das localidades.

Acredito ser essa uma pauta que continua atual. Li que o escritório inglês SPG Law, em parceria com um escritório americano, está processando a BHP Billiton, na corte britânica, por sua reponsabilidade no que era o maior desastre ambiental brasileiro, até o crime da Vale em Brumadinho. Parece que se estabeleceu uma outra relação de forças no caso, pois, na justiça brasileira, os executivos da Vale, com Joaquim Barbosa integrando a defesa, foram absolvidos. O julgamento inglês estava previsto para junho, antes da pandemia. Na decisão estará em jogo, caso a corte aceite o julgamento, além dos 5 bilhões de libras, para 200 mil vítimas do vazamento (700 empresas, 25 municípios, 3 comunidades indígenas e a diocese de Mariana), o entendimento de que o Brasil deixa de ser o país da impunidade.

Nem bem o país se refazia dos desastres de Minas Gerais e uma imensa mancha de óleo se espraiou pelas praias brasileiras, em julho de 2019, produto dos campos da Venezuela, como indicaram estudos realizados pela Universidade Federal da Bahia e pela Petrobras. A extensão do dano foi imensa, pois foram atingidas por manchas de óleo fragmentadas 286 localidades em 98 cidades do Nordeste, chegando a praias do Sudeste. As vidas nas localidades atingidas ainda devem estar sendo impactadas. O mais incrível é que o responsável por um desastre daquela proporção permanece até hoje ignorado e impune. Não é uma boa pauta investigativa?

 

IHU On-Line – No caso específico de Mariana e Brumadinho, como avalia a narrativa, a comunicação dessa catástrofe ambiental e social? Por que, mesmo depois de todo esse caos, megaempreendimentos de mineração ainda são defendidos como alternativa de desenvolvimento?

Clara Pugnaloni – O CEO da BHP Billiton, empresa dona de 50% da Samarco, Andrew Mackenzie, disse que a empresa se comprometia a reconstruir as casas de famílias atingidas pelo rompimento das barragens. Os outros 50% da Samarco pertencem à mineradora Vale. Este comprometimento público foi feito em novembro de 2015 e noticiado amplamente.

Em Mariana, o processo de comunicação foi inexistente antes e depois da catástrofe. Não houve nem ao menos o acionamento de algum som de alerta para informar o rompimento da barragem. Em um evento em São Paulo, ouvi o relato de que uma professora da escola local pegou a sua scooter e foi badalando o sino pelas ruas de Bento Rodrigues para avisar a população. No período posterior ao crime ambiental, houve a cooptação das lideranças dos moradores atingidos. Pescadores impossibilitados pela tragédia para o trabalho foram contratados pelo consórcio Samarco/Vale/BHP Billiton para monitorar as águas barrentas e contaminadas dos rios. A empresa prometeu para pessoas desalojadas de suas vidas, que logo a situação seria resolvida, como comprova a declaração do CEO da BHP Billiton, transcrita acima. Comprometeu-se a doar nova área para a reconstrução das localidades que foram soterradas pela lama. Moradores deram declarações, felizes com a promessa, demonstrando a ingenuidade do homem simples do interior.

Por sua vez, o consórcio se articulava com o governo Dilma, na tentativa de se livrar de uma condenação. Uma imagem para mim foi marcante. Alguns dias após o rompimento da barragem de Fundão, a mineradora Samarco deveria reunir-se com os prefeitos das localidades atingidas pelo mar de lama que varreu Bento Rodrigues do mapa, vitimou 19 pessoas e matou o Rio Doce. O programa de notícias mostrou uma Kombi lotada de prefeitos entrando nos portões da empresa. Não foi a empresa que promoveu o maior crime ambiental da história recente do Brasil que foi aos prefeitos; os administradores públicos foram até ela. Foi a lastimável imagem da relação de poder.

A comunicação que se seguiu foi um comercial feito pelo consórcio Samarco/Vale/BHP Billiton para a televisão. Gerou uma onda de protestos no país, tanto dos atingidos como de cidadãos solidários, reproduzidos a seguir. (Veja aqui)

“‘É sempre bom olhar para todos os lados’. Esta é a frase que estampa a página da Samarco (Vale e BHP Billiton) depois de ter um tempo precioso – e caro – em horário nobre na televisão brasileira para apresentar supostos e questionáveis benefícios após 102 dias do maior desastre ambiental da história do Brasil: o rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, em Minas Gerais.
Se formos mesmo olhar para todos os lados, queremos saber por que após mais de 100 dias do acidente não houve nenhum tipo de punição para as empresas responsáveis por esse crime ambiental. Queremos saber por que a Samarco não fala sobre o indiciamento pela morte de 17 pessoas. Queremos saber se cada família que ficou desalojada recebeu 100 mil reais de indenização. Queremos saber se os bens da mineradora Samarco estão bloqueados, como determinou a Justiça de Minas Gerais. Queremos saber até onde vai chegar a lama tóxica causada pela ambição da mineração até que a justiça seja feita”.

Os atingidos pela lama criticam publicidade da Samarco por mascarar e não assumir responsabilidade pelo crime socioambiental que protagonizou em Minas Gerais. O grupo fez a denúncia em nota e em vídeo.

Quatro meses depois do rompimento da barragem, o governo Dilma Rousseff apressou-se a fechar um acordo com a mineradora que foi rechaçado pelo MPF. Os procuradores retiraram-se da mesa de negociação por entender que o acordo proposto pelo governo interessava mais às mineradoras do que aos atingidos pelo rompimento da barragem em Mariana. Consideraram que o acordo era “insatisfatório e injustificável”. Que comunicação direta das intenções da empresa. O surpreendente é que, depois de todos os crimes ambientais, a empresa Samarco foi novamente licenciada e divulgou que voltará a operar no final de 2020. É incompreensível como esse tipo de atividade possa ser defendido como alternativa de desenvolvimento, especialmente após as imagens da destruição que assistimos.

 

 

IHU On-Line – A senhora teve uma experiência em Angola. O que esse país africano pode ensinar ao Brasil no que diz respeito a conflitos ambientais e desenvolvimento?

Clara Pugnaloni – Estive em Angola em 2007 como consultora internacional de comunicação de um projeto de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura - FAO, financiado pela comunidade europeia. O país havia saído de uma guerra civil que durou 27 anos e o esforço das ONGs e Organizações Internacionais que trabalhavam no campo era para a reconstrução. Naquele momento, os projetos de emergência davam espaço para projetos de desenvolvimento, como o Projeto Terra, do qual participei.

 

Conflitos em Angola

Na época, o maior conflito ambiental, a meu ver, era o fato de que 60% da área agricultável estava minada, assim como parte expressiva da malha viária do país. As minas terrestres inviabilizavam o trabalho no campo para muitas famílias e o escoamento da produção. Até hoje as minas e outros artefatos explosivos afetam de maneira expressiva algumas comunidades mais desfavorecidas, muitas em situação de insegurança alimentar crônica, impedindo o acesso seguro à terra e a outros recursos. Mesmo 18 anos após o fim do conflito, ainda provocam mortes, amputações e muito medo.

Segundo o chefe do gabinete de Intercâmbio e Cooperação da Comissão Intersetorial de Desminagem e Assistência Humanitária - CNIDAH, há 12 anos existiam 3.600 áreas minadas que, atualmente, foram reduzidas para 1.220. Adriano Gonçalves lastima que Angola possua ainda 105 milhões de metros quadrados afetados por esse material explosivo. Em 2019, foram desminados um milhão e 193 mil e 720 metros quadrados de terra, uma queda bastante expressiva frente aos nove milhões de metros quadrados de 2018. Desde 2002, após o final da guerra civil, Angola já retirou os artefatos de mais de dois mil campos de minas, mas mesmo assim mantém-se como um país com contaminação massiva, figurando entre os dez países mais minados. De acordo com o Landmine Monitor, estão nessa classificação países com mais de 100 quilômetros quadrados de áreas com minas terrestres e outros engenhos explosivos.

As minas não foram o único legado da longa guerra civil. Ela quase levou ao extermínio a palanca-negra-gigante, animal que tem os maiores cornos de todos os antílopes e é o símbolo de Angola. Em 1970, existiam cerca de dois mil desses animais e hoje chegam a 100, uma redução de 95%. Sobreviveram graças a um projeto de conservação da espécie, realizado por pesquisadores da Universidade Católica de Angola, que localizaram e introduziram um macho no grupo de nove fêmeas de outra região do país. A caça que por décadas foi para obter os cornos, que chegam a atingir um metro e meio de comprimento, na guerra civil era organizada para abastecer as tropas e os comércios clandestinos. O que pode nos dar ideia da fome que assolou o país.

 

 

Problemas ambientais

Apesar de trajetórias bastante distintas – não passamos por uma guerra recente de quase três décadas – creio que Angola e Brasil possuem conflitos ambientais que se assemelham. Angola é considerada pela Organização Mundial da Saúde um dos países africanos com maior taxa de mortalidade associada à poluição atmosférica. Lá são computados 50 indivíduos, em cada 100 mil mortes, a perecerem por exposição ao ar poluído. As principais cidades do país são afetadas pelos gases produzidos por automóveis, geradores e pela queima de lixo. As frequentes queimadas, por sua vez, liberam monóxido e dióxido de carbono em enormes quantidades, podendo causar problemas pulmonares e cardíacos.

A degradação da terra causada pela agricultura não sustentável, mineração, poluição e expansão das cidades já está prejudicando fortemente o bem-estar de cerca de 3,2 bilhões de pessoas, ou 40% da população mundial. A degradação dos solos afeta quase a metade da população do planeta e a condição da terra é crítica, como alertou a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços dos Ecossistemas - IPBES.

De acordo com a FAO, cerca de 33% dos solos do planeta estão degradados devido à erosão, salinização, compactação, acidificação e poluição química. No caso de Angola, a FAO atribui três causas diretas para a degradação do solo, que são (i) agricultura insustentável e derrubada de florestas, (II) uso insustentável das florestas e (iii) uso intensivo das áreas de pastagens. A organização cita ainda a alta taxa de crescimento populacional, o efeito das mudanças climáticas e as queimadas descontroladas como causas da degradação dos solos.

As semelhanças se impõem, pois só em 2019 o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe registrou um aumento de 30% no número de focos de fogo na Amazônia em relação ao ano anterior. Foram detectados por satélite 89.178 incêndios de 1º de janeiro a 31 de dezembro.

Creio que, com relação a conflitos ambientais e desenvolvimento, tanto em Angola como no Brasil, poderíamos nos reportar ao pensamento de Edgar Morin. Para o sociólogo francês, será preciso unir o melhor do desenvolvimento, respeitando as qualidades e valores de diferentes culturas. É preciso combinar crescimento e decrescimento, ou seja, o que deve crescer e o que deve decrescer. Morin pontua que o que deve crescer é uma economia verde, de energia limpa, uma economia que possa transformar as cidades tornando-as saudáveis e humanizadas. Propõe também que a palavra desenvolvimento seja substituída por política de humanidade, por acreditar que o desenvolvimento é uma fórmula-padrão aplicada a povos e culturas que já possuem suas próprias riquezas.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Clara Pugnaloni – Estamos em uma situação, como país e como mundo, nunca vista pelas gerações que foram próximas às nossas. A pandemia de covid-19, ou o novo coronavírus, vem somar-se a uma série de eventos climáticos extremos que o mundo atravessou. Os especialistas afirmam que esses serão mais frequentes e mais intensos daqui para a frente, devido ao desequilíbrio ambiental que a espécie humana está provocando no mundo com a exploração intensa dos seus recursos naturais. Consideremos apenas alguns episódios dos últimos quatro anos.

 

Eventos climáticos internacionais

Foi com tristeza que vimos os incêndios consumirem florestas, casas, carros e esperanças em Portugal. Destruidores, os incêndios colocaram em risco as populações, além dos prejuízos econômicos e ambientais que causaram. Em 2017, as queimadas deixaram um rastro de mortes por onde se alastraram. Arderam 440 mil hectares de floresta e povoados, o que significou quatro vezes a média dos anos anteriores. Os 160.458 hectares queimados em 2016 saltaram para 442.418 hectares em 2017. Desses, 260 mil hectares foram de povoados e 177 mil de matos. No ano seguinte, queimaram 15 mil hectares em Faro, no Algarve.

Em 2019 foi a vez de a Espanha protagonizar incêndios de grandes proporções na península. Declarações do ministro do Interior da Catalunha, Miquel Buch, afirmaram que era uma escala não vista em 20 anos. O fogo destruiu 5.500 hectares em Terragona. As chamas se espalharam em uma área de cultivo de frutas, oliveiras e vinhedos distante apenas 200 km de Barcelona. As terras arderam, destruindo matas e propriedades, deixando os moradores do país desolados e matando centenas de ovelhas.

Em sua volta ao mundo, os incêndios chegaram à Califórnia. O imenso incêndio florestal cresceu, se espalhou pelo sul da Califórnia e se aproximou da área metropolitana de Los Angeles. O rescaldo apontou que 88 pessoas morreram, 11 foram declaradas desaparecidas, 14,5 mil construções e 61,9 hectares foram consumidos pelo fogo.

 

Brasil em chamas

Logo em seguida foi a vez de o Brasil arder em chamas. Os dados divulgados na época, pelo Inpe, revelaram que houve nove mil focos de incêndios simultâneos na floresta tropical do Brasil e que atingiram ainda Bolívia, Peru e Paraguai. A seca extrema propagou rapidamente o fogo ateado muitas vezes para “limpar” a terra para criação de gado, agricultura e extração de madeira. De acordo com o Inpe, os incêndios, que podiam ser vistos do espaço, tiveram um aumento de 80% em relação ao mesmo período do ano anterior. Os milhares de espécies da floresta e a vida selvagem foram profundamente prejudicados pelos os incêndios no curto prazo. As declarações feitas na época pelo pesquisador Mazeika Sullivan apontavam que a floresta amazônica abriga uma em cada dez espécies que vivem no planeta e que em um incêndio têm pouquíssimas opções. Os animais podem tentar escapar pela água, fugindo do fogo pelo território ou se enterrando. Morrem pelas chamas, pelo calor do fogo ou por inalação de fumaça.

William Magnusson, pesquisador especialista em monitoramento da biodiversidade no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa e em Manaus, declarou, durante a calamidade das queimadas na Amazônia, que nela nada está adaptado ao fogo. “Basicamente, a Amazônia não queimava há centenas de milhares ou milhões de anos”. A floresta tropical não foi feita para o fogo e não é como na Austrália, por exemplo, onde o eucalipto morreria sem os incêndios regulares, afirmou. O pesquisador não imaginaria o que estava por vir para a Austrália um ano depois...

O que aconteceu na Austrália, onde os incêndios devastaram uma área de mais de 10 milhões de hectares, 100 mil km², ou uma área maior que a de Portugal, que é de 92,212 km², deve ter servido de alerta aos céticos de que os cientistas devem ser ouvidos. O mundo alerta que será preciso rapidamente repensar o atual modelo de desenvolvimento. Foi computada a cifra de um bilhão de animais mortos em estimativa de Christopher Dickman, professor de ecologia terrestre da Universidade de Sydney e ex-presidente da Real Sociedade Zoológica de Nova Gales do Sul. Os números basearam-se em estudo de densidade animal, realizado em 2007 pela WWF. Houve 28 mortes e duas mil casas queimadas.

Durante o longínquo encontro da Rio92, Severn Suzuki, que representava uma organização de crianças em defesa do ambiente, a Environmental Children’s Organization, fez um dos discursos mais impactantes do evento, realizado de forma suave. A menina de 12 anos alertou:

Estou aqui para falar em nome das incontáveis espécies de animais que estão morrendo em todo o Planeta, porque já não têm mais aonde ir. Não podemos mais permanecer ignorados. Eu tenho medo de tomar sol, por causa dos buracos na camada de ozônio. Eu tenho medo de respirar este ar, porque não sei que substâncias químicas o estão contaminando. Eu costumava pescar em Vancouver, com meu pai, até que recentemente pescamos um peixe com câncer e agora temos o conhecimento que animais e plantas estão sendo destruídos e extintos dia após dia…

Parece um discurso datado? Eu penso que não. É só olharmos para os números divulgados após o desastre ambiental sem precedentes ocorrido neste ano de 2020, na Austrália. E os números dos incêndios ocorridos na Amazônia. Quantos animais pereceram somente em 2019? Não sabemos.

Mas por que a fala de Severn Suzuki, agora desconhecida para as novas gerações frente à midiática Greta Thunberg, foi trazida à tona? Para nos darmos conta de que as crianças reclamam há quase trinta anos para que não destruamos o seu futuro. E o que aconteceu nessas quase três décadas? As energias limpas foram priorizadas? Mudamos o modelo de exploração das energias fósseis, tão lesivo ao meio ambiente?

 

 

Vilões

Vejamos quais são os vilões no comprometimento irreversível dos recursos naturais do planeta e, consequentemente, da vida dos seres vivos na terra, além da ganância do homem. De acordo com as Nações Unidas, a indústria global do automóvel necessita de quantidades enormes de metais. E como são extraídos esses metais? Pela mineração, é claro. Estudos do Banco Mundial revelam que 66% da energia global é fornecida por combustíveis fósseis. A ONU pede a aceleração da transição energética, dos combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás – para fontes renováveis de energia, como eólica e solar. Essas fontes têm o poder de transformar vidas e economias e proteger o planeta, argumenta a organização.

Mas por que falarmos de meio ambiente e recursos naturais? Pela afirmação feita pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - Pnuma de que o surto do coronavírus é reflexo da degradação ambiental. As doenças são transmitidas de animais para humanos na medida em que seus habitats são destruídos. Os humanos e a natureza fazem parte de um sistema interconectado e ela fornece recursos para o homem prosperar. Como em todos os sistemas, lembra o Pnuma, é preciso entender como ele funciona, pois exagerar na retirada dos recursos naturais poderá provocar consequências negativas. Pelos dados e pelos fatos apresentados, percebe-se que a degradação ambiental da indústria da mineração é imbatível como consequência negativa.

O impacto da pandemia do coronavírus sobre a economia global pode ser equiparado a uma terceira guerra mundial. Afetou todos os continentes e matou pessoas em quase todo o mundo. Quanto ao impacto econômico, poderá ser maior do que o de uma guerra mundial, pois, pela sua natureza, impacta todos os países. Em uma guerra, o impacto é maior na economia dos países envolvidos diretamente no conflito. Quem sabe não seja um bom momento para repensar o modelo de desenvolvimento

 

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