“A pandemia econômica será de uma brutalidade desconhecida”. Entrevista com Ignacio Ramonet

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13 Agosto 2020

Há décadas, seu nome está associado à publicação jornalística Le Monde Diplomatique, tanto na França como em nosso país [Espanha]. Este jornalista e professor de teoria da comunicação foi também o impulsionador do movimento ATTAC, protagonista no movimento antiglobalização com eventos muito destacados como o Fórum Social de Porto Alegre e as sucessivas edições.

A entrevista é de Miguel Muñoz, publicada por Cuarto Poder, 09-08-2020. A tradução é do Cepat.

Fecundo autor de livros, premiado em diferentes ocasiões e Doutor Honoris Causa por várias universidades. Durante o início do confinamento esteve em Cuba. De lá, Ignacio Ramonet (Redondela, Galícia, 1943) escreveu um extenso ensaio com suas reflexões sobre o mundo atual e o futuro, em meio a uma pandemia sem precedentes. Desses pensamentos, e já de Paris, onde reside habitualmente, temos o prazer de falar com ele.

Eis a entrevista.

Definiu a pandemia como um “fato social total”. O que significa?

É uma expressão que alguns sociólogos utilizam. Em particular, um sociólogo de grande referência como Norbert Elias. O que é um fato social total? Pois, às vezes, na história, há acontecimentos, por exemplo, uma guerra, que têm repercussões em todos os âmbitos da sociedade. Primeiro, na organização própria da sociedade, na economia, na cultura, na política, na organização da vida das pessoas.

A pandemia, da forma como nos surpreendeu, funcionou e está funcionando como um fato social total. Realmente, há poucos espaços em nossa vida cotidiana e na das sociedades que não se viram afetadas de maneira particularmente impactante pela pandemia.

Destacou, assim como muitas outras pessoas, que o mundo e a vida não serão iguais quando tudo isso acabar. Parece que isto está claro para todos.

Eu acredito que sim. Melhor, para todos não, houve uma série de intelectuais que disseram que tudo seria exatamente igual. Por exemplo, aqui na França, Michel Houellebecq escreveu um texto dizendo que após a pandemia tudo será igual. Em que sentido tudo continuará igual? Continuaremos em uma sociedade vertical, o capitalismo não terá sido derrubado, as grandes empresas continuarão tendo um papel determinante. Nesse aspecto, não resta dúvida de que a estruturação, o esqueleto portador da sociedade, provavelmente não irá se mover, ao menos em um primeiro momento.

Mas, sim, muitas coisas já estão se movendo. E podemos dizer talvez que muitas já mudaram. Por exemplo, a questão do teletrabalho. Hoje em dia, sabe-se que, em particular em nossas sociedades desenvolvidas, certa quantidade de pessoas pensa que ir ao escritório todos os dias faz cada vez menos sentido. E que durante estes meses ficou demonstrado que é possível trabalhar perfeitamente da mesma forma, em casa.

Por outro lado, uma parte do consumo virtual pode se dar de maneira virtual. Globalmente, não resta dúvida de que a aceleração de toda a virtualidade, de todo o universo da internet, ainda que já estivesse bem ancorada em nossas sociedades, conheceu um avanço muito notável. Não é por acaso que justamente as empresas GAFA (Google, Amazon, Facebook, Apple) sejam as que mais ganharam e as que menos sofreram com esta pandemia. Sendo assim, podemos dizer que muitas coisas mudaram.

Provavelmente também, embora eu tenha dito antes que o capitalismo permanecerá, o neoliberalismo como o havíamos conhecido até agora não será possível. Porque esta pandemia tem três tempos. Estamos vivendo o tempo sanitário, que é o mais importante nesta fase. Mas já está vindo o tempo econômico, e a pandemia econômica será de uma brutalidade desconhecida. Os últimos números publicados a respeito das expectativas para a economia espanhola, a situação dos bancos na Espanha... Tudo isto dá uma ideia da colossal tempestade que as economias estão vivendo.

E o terceiro tempo será o social. Não resta dúvida de que se as economias sofrem, os que sofrerão serão os trabalhadores em todos os níveis. Por conseguinte, isso irá produzir, aqui e ali, protestos e revoltas. Seja eleitoralmente ou por outras vias, veremos muitos Governos mudar de cor pelos efeitos da pandemia.

Também está sendo muito ressaltado, especialmente em nível europeu, que a crise não seja paga pelos de sempre, como aconteceu em 2008. Devemos ser otimistas a esse respeito?

Por exemplo, qualquer país do Sul. Do que vive? A maioria vive de três coisas. A maioria dos países da África, América Latina, de grande parte da Ásia, vive de três coisas. Ou bem das exportações dos produtos do solo e subsolo, a mineração e a agricultura. Segundo, das remessas que seus trabalhadores emigrados enviam. E terceiro, em alguns deles, do turismo. Hoje em dia, estas fontes de recursos estão muito impactadas pela pandemia.

O turismo está com um encefalograma plano. As remessas, como a maioria destes trabalhadores está nos países desenvolvidos e evidentemente entrarão em uma crise colossal, vão diminuir massivamente. Assim como, por outro lado, a economia está meio paralisada, as exportações também estão em baixa. Então, imagine quando esses três recursos desabarem em um país, obviamente, o número de falências será colossal. Quando as empresas quebram, os que sofrem são os bancos. Porque conferiram créditos para que as empresas funcionem. Portanto, o próprio sistema bancário pode desabar em muitos países.

Isto é o que normalmente poderia ter acontecido na Europa. Não acontecerá devido ao acordo alcançado. Porque a União Europeia, que vislumbra esta situação, está disposta a se endividar sem limite para que justamente todo o sistema bancário, que é um pouco o sistema de irrigação sanguínea da economia europeia, não vá à falência e entre em colapso.

Na Europa haverá um grande sofrimento social, mesmo que haja muito capital para ajudar. Mas isso não mudará o fato de que muitas pessoas perderão o seu emprego. Na França, por exemplo, o próprio presidente anunciou, há duas semanas, que no próximo outono se espera a perda de um milhão de postos de trabalho. É muita coisa, quando se nota que cada posto de trabalho sustenta de duas a três pessoas.

Mudando de assunto, há muitas referências, também descritas por você no artigo, sobre a irrupção da vigilância massiva digital. Suponho que em tais situações há riscos e benefícios dentro de uma crise sanitária.

A era digital, na qual já estávamos há uns 30 anos, agora alcançou uma normalidade. O mundo atual é o mundo da virtualidade. Para os que ainda duvidavam de que estávamos em um prolongamento da era industrial, agora estamos na era virtual e da ciberatividade. Por conseguinte, isso significa que cada vez que toco em uma tecla de meu computador, telefone ou Ipad, estou deixando uma pegada do que faço. Não resta dúvida de que agora, sim, confirma-se algo que alguns de nós já havíamos pressagiado há muito tempo.

É que os dados que cada um de nós fornecemos passam a ser uma matéria-prima de alto valor e que, provavelmente, podem se transformar em matéria-prima da era digital. Isso terá um valor econômico na medida em que no mundo do 5G e Big Data se trabalhará exclusivamente com dados. No melhor dos casos, para conhecer melhor do ponto de vista comercial ou publicitário todas as simpatias e desejos dos indivíduos. Mas, além disso, permitirá às grandes empresas digitais e aos Governos e institutos de inteligência ter um conhecimento muito refinado de cada um de nós.

Então, essa ideia de que precisamente exista uma espécie de Big Brother que conhece cada um dos 7 bilhões de habitantes do planeta, ou os 5 bilhões que usam constantemente a internet, que era ficção científica quando Orwell escreveu 1984, está sendo cada dia mais real. Eu escrevi, pouco tempo atrás, um livro chamado El imperio de la vigilancia e acredito que ficou aquém. Porque com a pandemia isto se confirmou completamente. Antes, podiam dizer que era um pouco paranoico e coisas assim, mas agora é a realidade.

Uma das coisas pelas quais mais ficou conhecido foi a sua luta no movimento antiglobalização e a fundação ATTAC. Já se passaram várias décadas, mas como as críticas que já eram feitas naquele momento sobre o mundo se relacionam com a realidade atual, em plena pandemia?

Nós lançamos o movimento, há uns 20 anos, com a ideia de que Outro mundo é possível e com o Fórum Social. A crise de 2008, que foi financeira e de crédito, já nos deu a razão de que obviamente a globalização, ou seja, o neoliberalismo globalizado, nos conduzia para um mundo em que haveria cada vez pessoas mais ricas e, relativamente, pessoas cada vez mais pobres. Hoje, o 1% da população mais rica possui mais da metade da riqueza do mundo. Hoje em dia, esta desigualdade é tão visível que o escândalo se generalizou.

A pandemia também está estabelecendo a crise do modelo neoliberal. Por exemplo, vimos como muitos países se fecharam, como muitos países apostam no mercado interno. A crise demonstrou que, por exemplo, na Europa não eram fabricadas máscaras, paracetamol, respiradores... Sabemos que ocorrerão outras crises, porque nos últimos 15 anos houve outras três crises epidemiológicas, ainda que não tenham afetado a Europa.

O SARS e o MERS foram crises muito graves para a Ásia. Ninguém pode dizer que não haverá outra crise pandêmica daqui a 5 ou 10 anos. Não temos autonomia em matéria de produção do que é minimamente indispensável para combater uma ameaça deste tipo. Todo este modelo que consistia em fabricar tudo com trabalhadores mal remunerados no outro lado do mundo é o que hoje temos, ao mesmo tempo por razões econômicas, sanitárias e ecológicas.

Não nos esqueçamos de algo importante, que a pandemia nada mais é do que uma manifestação da crise ecológica. Porque o vírus surgiu pelo desprezo à natureza, pelo ataque constante a ela e, em particular, aos animais selvagens. E o vírus saltou precisamente por esse desprezo. Não podemos continuar fabricando uma camisa no outro lado do mundo que será transportada e consumindo uma quantidade excepcional de petróleo e energia para depois ser vendida a um preço ridículo. É impensável. Este tipo de modelo é ao que hoje, por razões econômicas, ecológicas e políticas, a sociedade deveria rejeitar.

Em nível geopolítico, perguntamo-nos muito acerca do papel que a China e os Estados Unidos cumprirão agora. Podemos ver alguma mudança no equilíbrio entre as forças?

No aspecto geopolítico, iremos dizer algo que é o mais central. É a primeira vez, desde o início do século XX, que há uma crise mundial e que os Estados Unidos não têm um papel protagonista. Isto nunca tinha sido visto até agora. Sua intervenção na I Guerra Mundial foi decisiva. Em 1944 também. E desde os anos 1950, os Estados Unidos estiveram em todas as partes. Desta vez, não enviaram sequer uma máscara para alguém. Não enviaram uma seringa, nem médicos. Esta ausência dá uma ideia da fragilidade dos Estados Unidos. O país mais impactado pela pandemia é os Estados Unidos, por uma condução política completamente errática, equivocada, com um problema de liderança enorme que coloca em risco a continuidade de Trump, conforme apontam as pesquisas. Somente isto já é uma indicação de como a pandemia está modificando a geopolítica.

Por outro lado, a pandemia também deteve todos os conflitos no mundo, durante algumas semanas, com muito mais eficácia que a ONU. Outra coisa, as Nações Unidas estiveram absolutamente ausentes nesta crise. Não se ouviu alternativas. Portanto, há algo na estruturação e funcionamento geopolítico até agora que demonstra que da forma como o mundo funcionava, não era eficaz.

Sobre a China, poderíamos dizer duas coisas. Primeiro, tem uma responsabilidade, na medida em que o vírus surgiu lá e não pôde impedir que saísse. Por outro lado, a China combateu com grande eficácia a pandemia e é o país que ajudou enormemente outros países, enviando medicamentos, médicos, etc.

Você esteve em Cuba durante as primeiras semanas de confinamento. Exaltou sua gestão da pandemia. Por quê?

Cuba combateu a pandemia com muita eficácia, sem declarar um confinamento obrigatório, mas com muita disciplina social, com muito voluntarismo e de maneira bastante inteligente, e com uma organização social muito eficaz. Por outro lado, Cuba também não hesitou em enviar para cerca de 45 países brigadas médicas com pessoal: Itália, Andorra, nos domínios da França no Caribe, na América Latina e África. Cuba, sim, deu mostras de um internacionalismo solidário e acredito que isto vale a pena ser destacado. Infelizmente, os grandes meios de comunicação europeus não dão destaque.

Por outro lado, observamos que a União Europeia publicou uma lista dos países dos quais se pode aceitar viajantes e noto que não está Cuba, sendo que é um dos países com menos casos no mundo. Para dar uma ideia, Cuba tem mais ou menos a mesma população da Bélgica, 10-11 milhões de habitantes. A Bélgica tem 9.000 mortes. Cuba só 85. Então, evidentemente, há uma forma de enfrentar esta questão do ponto de vista sanitário que demonstra o que já se sabia, que Cuba é uma grande potência médica. Mas é uma grande potência com uma generosidade e solidariedade espetacular, quando bem poucos países no mundo enviaram ajuda para tantos países.

 

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