“Vivemos uma época de fascismos derivativos”. Entrevista especial com Óscar Guardiola-Rivera

Facismo en Mexico | Foto: Francisco/Flickr CC

Por: João Vitor Santos | Tradução: Isaque Gomes Correa | 19 Fevereiro 2020

Quando nos vemos diante de elementos tais como plágio de discursos de Joseph Goebbels e rompantes totalitários, racistas, machistas, xenofóbicos e homofóbicos, parece não haver dúvida: estamos bem próximos do que conhecemos por fascismo. Mas não o do passado, uma espécie de neofascismo, ou um fascismo do século XXI. Mas, especificamente, do que se trata? Para o filósofo e jurista colombiano Óscar Eduardo Guardiola-Rivera, trata-se de “uma época de fascismos derivativos”. “Emprego o termo ‘derivativo’ aqui em seu sentido capitalista financeiro”, explica. “Um derivativo é algo que pode ser precificado com base no valor de algo mais que permanece subjacente e, como tal, pode ser negociado como uma aposta contra alguém em relação a um preço futuro especulativo”, completa. E, logo, compreende que “as nossas políticas não mais se sustentam com base em contratos sociais e naturais, mas também, ou antes ainda, com base em contratos derivativos”.

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Guardiola-Rivera se detém a observar como o fascismo, o nazismo e o totalitarismo do passado usaram das imagens para sustentar suas narrativas e como essas práticas vêm se ressignificando no neofascismo. “Versões anteriores do fascismo, o tipo hitleriano e mussoliniano da década de 1930, ou mesmo o tipo das décadas de 1960 e 1970 que conhecemos tão bem no Brasil e noutros lugares das Américas, não são o que conhecemos hoje”, reitera. No entanto, percebe que funcionam não como um cadáver, mas uma espécie de “morto-vivo” que ainda impõe força à sua presença. “Funcionam como aquilo que subjaz, subordinado, que morreu impregnado com o renovado contrato de morte entre o nosso capitalismo atual em crise quase terminal e os teatros da política repletos de espetáculo com uma ‘esfera pública’ moribunda”.

Estudioso da realidade latino-americana, Guardiola-Rivera também analisa os movimentos ao sul do continente em 2019 em perspectiva a esse avanço do “fascismo derivativo” pelo mundo. Aliás, movimentos que podem inspirar saídas ou mesmo revelar resignações. “O Chile e a Colômbia mostram o caminho para os filhos e filhas, especialmente as filhas, despertando dos sonhos dos nossos pais. A Bolívia foi um golpe. Agora está sob uma forte panelinha viciosa, racista, religiosamente fanática. Enquanto isso, os intelectuais falam da pureza das definições”, avalia. Já o caso da Venezuela, para ele, é de um golpe abortado, ainda agravado pelo “risco de uma catástrofe humanitária, como as sanções desumanizantes impostas pelos EUA aprofundam as condições que já podem estar havendo”. “As Américas estão em chamas neste momento. Uma tentativa de traçar uma nova linha global. É um tempo de conflitos”, resume.

Guardiola-Rivera (Foto: Renegadeinc)

 

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera é filósofo, jurista e escritor colombiano crítico da globalização e do colonialismo. Seu livro “Si Latinoamérica gobernase el mundo” (RBA Libros, 2012) ganhou o Prêmio Frantz Fanon em 2010, quando da publicação das primeiras edições.

Atualmente é professor de filosofia política, estudos latino-americanos, política e direito internacional na Birkbeck College, Universidade de Londres.

Estudou direito na Pontificia Universidad Javeriana e, ainda quando universitário, participou da mobilização estudantil denominada "Sétima cédula" que influenciou especialmente a abertura política, social e institucional a um novo processo constituinte na Colômbia em 1991. É doutor em Filosofia pela Universidade de Aberdeen, na Escócia, onde defendeu uma tese sobre Marx, a consciência e problemas de ética. É colaborador de diversos jornais, entre ele The Guardian e El Espectador.

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 31-01-2020.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a relação entre o fascismo e as imagens desde a modernidade?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Sabemos que os fascistas das décadas de 1930 e 1970 não poderiam ter angariado o apoio que tiveram sem suas imagens e gestos teatrais amplificados por meio das ondas de rádio e televisão. O fascismo é coterminal com a degradação do ser para dentro do ter e, então, para o parecer, motivo pelo qual, longe de ser anticapitalista, ele pareceu se enervar contra o dinheiro e o desejo, ao mesmo tempo que se aproveitou da miséria do desejo provocada entre a classe média, em particular pela percepção dela de que ter mais dinheiro permite desejar as oportunidades de contornar todas as proibições morais impostas à maioria dos que não o têm pela maioria dos que têm quando estes assumiram o poder.

Hoje, as imagens tornaram-se imagens de si mesmas, e os neofascistas são cópias dos fascistas do passado, investindo em formas derivativas do fascismo. Para evitar analogias impróprias entre estes e aqueles, devemos enquadrar as transformações em rádio, imprensa e, especialmente, os dados demográficos da televisão. Em particular, a fragmentação ou “dividuação” (em oposição à individualização, mas mais próximo do fatiamento dos indivíduos por classificação de crédito e outros esquemas de seguro) da massa-público do entretenimento de massa tecnicamente reproduzido ao longo de linhas de classe e estratificação educacional. De modo crucial, isto ficou marcado pela ascensão da programação a cabo e, mais tarde, da mediação social digital, em dança balética com a tribalização política fomentada pelos proprietários oligopolistas de meios de comunicação como Fox News, O Globo ou Facebook.

 

As pessoas esquecem que é daí que alguém como Donald J. Trump vem. A sua primeira aparição foi no “Today Show”, com Tom Brokaw, em 1980, trazendo uma versão amansada de si mesmo. Isto já era passado quando ele recebeu o segmento “Mondays with Trump” na Fox & Friends, tornando-se o principal apresentador de O Aprendiz, que ficou 14 anos no ar. Este último antecipou o modus operandi do atual regime [do programa televisivo da MSNBC] “1600 Pennsylvania Avenue”. Paulo Ghiraldelli traçou uma ascensão semelhante no caso de Jair Bolsonaro. Mas a lição é não os classificar como meros idiotas. Eles não são. Os seus gestuais e a imagem da imagem gestual devem ser levados muito a sério.

IHU On-Line – De que forma o fascismo se apropria dos discursos imagéticos para propagar e consolidar seus valores e perspectivas?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Do mesmo modo, a imagética é a máscara que permite que os públicos esqueçam as batalhas pelo dinheiro após os beijos e após “ocultar – como se fosse suja – a necessidade de amor e prazer”, conforme observou Pierre Yoyotte. O fenomenólogo latino-americano foi um dos melhores comentadores e críticos do fascismo. O argumento que ele traz é o de que as emoções sobrevivem a partir de máscaras, não de realidades. Sabendo que são incapazes ou não estão dispostos a dar muito em termos de satisfações materiais aos eleitorados potenciais e reais, recorrem ao emocional ou ao tipo falsamente religioso. Este último têm a vantagem de uma “pré-história”. Escondida atrás da letra da lei, uma tal pré-história (de soberanos reais, heróis de guerra e líderes fálicos a gritar com toda a força) domina o presente de forma ainda mais implacável.

 

Walter Benjamin, talvez o crítico e analista mais afiado da imagem entre os séculos, notou isto quando falou a propósito dos escritos de Kafka sobre violência preservadora do direito. Que os fascistas e neofascistas pouco podem dar em termos de bem-estar material é, no entanto, exatamente o ponto central. A igualdade capitalista não é, na realidade, inimiga, de forma alguma, da exaltação histérica das pessoas que temem que, ao escapar do feitiço do ocularcentrismo (cartesiano, colonial) das nossas sociedades de finanças e espetáculos, irão perder tudo. O fato é: este último desconhece a felicidade do pensamento quando este se liberta da dependência de uma ontologia de apego a algo.

Na verdade, trata-se de uma ontologia da anexação por adesão, que também significa que o nosso fascínio pela abominação com a imagem pode remontar até às gravuras e aos mapas feitos sob as convenções da perspectiva linear da Renascença, como os mapas e as crônicas de Américo Vespúcio ou como a gravura que Theodor de Bry fez para o livro “Warhaftige Historia”, de Hans Staden. Para que não nos esqueçamos, este último foi o “livro iluminado” mais popular de sua época na Europa. Kant e outros podem ter baseado os seus escritos geográficos e pedagógicos no poder destas imagens, as quais condenavam os apetites supostamente excessivos e culinários dos homens e mulheres ameríndios, quem, aos olhos dos europeus, eram considerados menos do que humanos ou, em todo caso, infantis. A obra foi também a base para a justificação da guerra e da pilhagem nas Américas, sob observação (quer dizer, visual) puramente “pragmática” e “empírica”. De certo modo, o segundo escolasticismo nos brinda com antecedentes obscuros para as justificações contemporâneas das guerras “híbridas” e dos golpes políticos “suaves”.

IHU On-Line – Quais os desafios para desvelar os discursos fascistas orquestrados através de imagens?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Por um lado, para relegar estes recursos retóricos como tolice. Por outro, para acreditar que basta parar de assistir à TV Trump para acordar do sono no sofá. Nada disso funciona. Na verdade, estas coisas não se opõem. Levar a sério tais recursos retóricos não nos torna conformistas ou conservadores. Assim como manter uma distância segura ou irônica da TV Trump e do espetáculo não nos torna progressistas, muito menos um revolucionário.

É por isso que os pseudoargumentos de críticos falsos como Mario Vargas Llosa contra aquilo que ele chama de “sociedades do espetáculo” erram totalmente o alvo (parece que ele não leu os situacionistas, muito embora empregue a terminologia deles; e se leu, pior ainda). Como diz o meu amigo e colega da Birkbeck College Slavoj Žižek, a marca própria da ideologia, hoje, é exatamente a coincidência destes supostos contrários. Eles não são contrários, de forma alguma, mas aspectos da mesma ideologia: a ideologia da não ideologia.

 

A interseção de tais opostos é o fato de que aqueles que nos abordam com as suas afirmações e notas supostamente não ideológicas não precisam acreditar em seus “valores” e restrições morais. Este não só é o caso de que estes são para os outros, as pessoas que eles consideram ignorantes o suficiente para precisar de espetáculo e salvação do espetáculo. Mas também, ou antes, eles podem sempre suspender ou contornar a confiança destas pessoas em tais valores e costumes. O dinheiro oferece tantas oportunidades de desejo como a abundância de oportunidades que frequentemente se sobrepõe às restrições morais. Para dizer nos termos de um famoso pregador, ou pastor, episcopaliano: “Não acredito; tenho fé”. Apenas que o objeto real da fé não é o Filho – Jesus, o judeu que ficou ao lado dos pobres contra o império –, mas o Pai vingativo e zangado ou, mais precisamente, o dinheiro (Mamom, para os antigos).

Deus dinheiro

É evidente que Deus não está morto. Ele simplesmente se transformou em dinheiro, que é um “equivalente universal”. Isto é, a imagem de uma imagem capaz de transformar tudo e todos em uma imagem deles mesmos. De novo, aqui reside a raiz daquilo que a imprensa e o pseudojudiciário (falso exatamente porque também não é independente) chamam, moralizando-o, de “corrupção”. Prefiro evitar a moralização da política, tanto quanto evito a sua estetização. Não é o caso de que as pessoas e os políticos, de direita e esquerda, são corruptos porque carecem de um código básico de ética. Este tipo de visão abstrata da ação corresponde meramente à abstração e ao encerramento da imaginação em nossas sociedades de finanças e do espetáculo. Pelo contrário, é o motor das nossas sociedades atuais – adquirir cada vez mais dinheiro para contornar as proibições morais que nos impusemos sobre nós mesmos e sobre as pessoas – que explica a “corrupção”.

 

É o mesmo negócio de sempre, com o perdão do trocadilho. Isto também explica por que as medidas gradualistas de melhorias da pobreza não bastam. Pois, tão logo colocamos dinheiro no bolso das pessoas, trazendo-as para além de algum (imaginariamente criado) limiar da pobreza, elas agirão conforme o movimento impulsionado daquele mesmo motor. Ou seja, irão querer mais e ser mais como os bilionários que, por causa da riqueza, podem passar por cima das restrições morais. Não estou dizendo que a pobreza não é real. Ela é muito real, e o sofrimento que ela provoca é bastante real. O que digo é, em primeiro lugar, que a pobreza não é só um problema socioeconômico determinado pela privação de dinheiro, mas também um tormento sociopsicológico que tem relação com – mas que deve ser diferenciado do – problema anterior em sua essência e em seus procedimentos.

Cultura do consumo de imagem

Movimentos e partidos progressistas devem se perguntar como lidar com esses dois casos; as soluções para eles não são as mesmas. Na verdade, remediar somente o primeiro pode agravar o segundo. O Partido dos Trabalhadores, no Brasil, está aprendendo esta lição à maneira difícil. Mas não são os únicos. Em segundo lugar, digo que temos testemunhado em nossos dias a transposição dos próprios direitos humanos do reino da mobilização política para o da cultura popular em massa. Esta cultura, que é uma cultura do consumo de imagem, supõe e espera que a proliferação das imagens de agonia e sofrimento levarão as pessoas da apatia à empatia.

Mas esta mesma cultura também diz aos públicos de consumidores de imagens que eles realmente não devem ser culpados por causa da relação que têm com os perpetradores e beneficiários das injustiças do passado ou pelo locus que ocupam em relação aos eventos históricos de pilhagem e genocídio (incluo o tipo cultural, muito embora o direito internacional atual tende a reduzir o significante “genocídio” ao tipo físico). Ela processa a responsabilidade das pessoas em termos de não estarem sendo empáticas ou atenciosas para com os fatos. Aprisiona a responsabilidade ético-política e a possibilidade de corrigir erros históricos nas imagens do noticiário, das classificações e distinções entre as coisas “superflua, ephemera e utilitas” (que são, na verdade, originalmente teológicas, remontáveis à obra de Agostinho).

 

Isto nos coloca em rota de colisão com a história. Encerra o futuro assim como encerra a nossa capacidade de memorializar e imaginar modos mais ricos, utópicos ou “eucrônicos”, se me permitem usar este meu neologismo (de eucronia). O incêndio no Museu Nacional de Antropologia, do Rio de Janeiro, os incêndios na Amazônia este ano, o fato de que proprietários de terras no Mato Grosso Sul estão realizando leilões enquanto falamos para comprar armamentos visando armar milícias (ou “paramilitares”, como dizemos na Colômbia) a fim de sair e “caçar” indígenas, o fato de que o mesmo há pouco aconteceu na vizinha Bolívia e tudo o que intelectuais e jornalistas (esquerda, direita, decoloniais, nem tão decoloniais, etc. ad nauseam) puderam fazer foi debater se foi ou não golpe e quem era mais puro no próprio raciocínio do que os outros, são reveladores a respeito do estado em que se encontram os mais pobres em relação à indigência do nosso desejo e da nossa imaginação.

IHU On-Line – Atualmente, vivemos uma ameaça de reedição do fascismo? Por quê? E no que consiste esta ideia de neofascismo?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Como dito acima, em vez da reedição do fascismo, vivemos uma época de fascismos derivativos. Emprego o termo “derivativo” aqui em seu sentido capitalista financeiro. Um derivativo é algo que pode ser precificado com base no valor de algo mais que permanece subjacente e, como tal, pode ser negociado como uma aposta contra alguém em relação a um preço futuro especulativo. Um derivativo é um contrato. As nossas políticas não mais se sustentam com base em contratos sociais e naturais, mas também, ou antes ainda, com base em contratos derivativos.

O neofascismo é o mais recente a erguer a sua cara feia. Nesse sentido, não precisamos de fato acreditar em nada do que sua boca de merda fascista jorra aqui ou ali. Podemos acreditar ou não. Podemos acreditar, se formos Luis Alfredo Camacho ou Jeanine Añez – a “presidente” autodeclarada da Bolívia –, ou podemos não acreditar. Uns dizem que Trump, na realidade, não acredita. Outros, como Cornel West, afirmam que Trump é um supremacista branco e não tenho motivos para duvidar do brilhante Doctor West (quem, aliás, apareceu num filme; a saber, The Matrix). Em todo caso, versões anteriores do fascismo, o tipo hitleriano e mussoliniano da década de 1930, ou mesmo o tipo das décadas de 1960 e 1970 que conhecemos tão bem no Brasil e noutros lugares das Américas, não são o que conhecemos hoje. Funcionam como aquilo que subjaz, subordinado, que morreu impregnado com o renovado contrato de morte entre o nosso capitalismo atual em crise quase terminal e os teatros da política repletos de espetáculo com uma “esfera pública” moribunda.

 

Os situacionistas previram isso, os surrealistas negros, antes deles e Jürgen Habermas depois, entre outros. Nas Américas, eles se apresentam vestidos de terno e gravata (não mais em uniformes verdes e de tons escuros), destacando o não rosto dos âncoras dos noticiários televisivos padronizados e carregando a cruz e a bandeira nacional em lugar da suástica. Estas pessoas não precisam mais apagar a cruz de Jesus nem bombardear estações de rádio, como Pinochet e seus capangas em 1973. Pelo contrário, simplesmente guardam os seus bastões policiais dentro da cruz, segurando nas mãos os Evangelhos enquanto ordenam que a polícia use suas armas e cassetetes para massacrar indígenas e outros “indesejáveis”, e assim o fazem diante da imprensa. Eles sabem que mesmo se o público ou parte dele considerar esta postura “politicamente incorreta” ou mesmo racista e nojenta, muito rapidamente a imprensa e estas pessoas irão esquecer e seguir em frente para a próxima fotografia a mostrar a agonia de outro alguém (normalmente, em algum outro lugar no sul global).

O conforto da distância, os deslocados, os mortos e os desaparecidos

O que significa que nós, como parte do tipo público, podemos permanecer no conforto seguro da nossa distância irônica, olhando para todas estas coisas em nossos aparelhos de TV. Pelo menos até que, por coincidência ou não, acabemos no outro lado. Então, é claro, será tarde demais. Nós colombianos deveríamos saber. Aqui estamos nós. Sete milhões de deslocados. Duzentos mil mortos. Oitenta mil desaparecidos, se não mais, mais do que todas as ditaduras do cone sul juntas. E somente agora alguns de nós começam a despertar do sonho dos nossos pais. De novo, nunca é tarde para começar. Contra Horkheimer, que ensinava que o passado estava acabado, que o sofrimento estava acabado, a nossa relação com a memória e a história é uma relação de incompletude. Os projetos interrompidos do passado podem ser intensificados e reativados precisamente porque a história não acabou, não ainda.

 

Recorro não à esperança, mas a um princípio-esperança. No sentido forte do termo “princípio”: não só um novo, mas também diferente começo, e um começo capaz de conduzir este princípio à sua futura realização, dando-lhe consistência. Eis uma concepção bastante diferente da imagem, da memória e da história. Devemos ela aos nossos ancestrais ameríndios e aos nossos ancestrais afro-latino-americanos em interlocução com antropólogos como Manuela Carneiro da Cunha ou sociólogos como Orlando Fals Borda e filósofos como Enrique Dussel. Alguns destes estão realizando “viradas estéticas” por si próprios. No sentido das práticas artísticas de pessoas como Oscar Murillo, Carlos Motta, Gabriela Cunha, Marcia Wayna Kambeba e DJ Nkisi. Os sons e as representações performativas deste último nos devolvem a visibilidade que o ocularcentrismo tirou e saqueou.

IHU On-Line – Como analisa o avanço da ultradireita no mundo?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Como o momento da maior fraqueza do capitalismo de hoje, que também é o momento do nascimento e renascimento dos sujeitos larvais. O segundo caso, em sua fraqueza aparente (tornada aparente pela imprensa convencional a desaparecer) não apenas sobreviveu aos ataques mais violentos, mas pode transcender a formas econômicas e políticas sem a necessidade de destruição. Recentemente invoquei um dos meus orientadores, o ex-reitor da Birkbeck College e historiador latino-americanista Eric Hobsbawm, quem está entre os pouquíssimos que interpretaram esta figuração fundamental do interesse perene de Karl Marx nas chamadas “formações arcaicas”. Algo do tipo pode surpreender muitos dos “autonomistas” e “decolonialistas” da esquerda desencantada, também não poucos marxistas típicos e, evidentemente, os próprios neofascistas. Todos eles gostam de usar as cartas antimarxistas e antiesquerdistas, exatamente no momento em que o “socialismo” – ou mesmo o “comunismo” – se torna assunto entre as conversas mais uma vez ou pela primeira vez em muitos anos em lugares como os EUA e a Inglaterra.

Não importa o que aconteça nas eleições destes países, esta paisagem diferente que surge não irá embora. Essa é a maneira como o capitalismo aumenta os esforços nas suas apostas remanescentes. Eis como vejo a “ascensão” da ultradireita no mundo. Isso quer dizer que não podemos ignorá-los e não podemos esperar que vão embora porque as nossas estruturas democráticas farão o que devem fazer (impeachment, deliberação, imprensa responsável etc.). As nossas estruturas estão também muito fracas. Cabe a nós intensificar o valor e a importância delas, e o valor e a importância de tudo o que existe. Especialmente aquilo que é, mas não ainda. São os desejos do passado, que servem como significado, contexto e orientação das nossas ações no presente de forma a produzir o futuro diferente.

 

A resposta ao problema do avanço da alt-right e da ultradireita é nossa, é uma inventio. É preciso criar instituições diferentes e reinventar aquelas que existem em estado de incompletude ou mesmo de fracasso. Nesse caso, então poderemos optar pela “pureza” (ideológica ou não ideológica), como no puro horizontalismo, ou na pura ecologia profunda, ou ainda no puro não extrativismo, ou teremos condição de pedir por uma pureza moral no estilo da esquerda e centro-esquerda “mais santa do que vós”, característico das nossas culturas de destaque, dos direitos humanos e da impunidade. Atitudes assim acabam, quase sempre, levando água aos bastardos. Não existe autoafirmação alguma antes de deliberar com eles. Se formos empregar o termo “negociações” aqui, seria no sentido derridiano: tomar posição. No caso de o leitor não ter percebido, já estamos em guerra. Mas não podemos lutá-la de acordo com as regras deles. Fazer isso seria concordar com a derrota mesmo antes de entrar no campo de batalha.

 

IHU On-Line – Se as imagens foram importantes para a propagação de ideais fascistas, podemos considerar que as redes sociais e a internet têm papel central nas estratégias da ultradireita?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Os casos da Cambridge Analytica (cujas práticas já se normalizaram) e as atuais encarnações da aliança de vigilância conhecida como Five Eyes [1] , bem como aquilo que muitos chamam Condor II nas Américas, lançaram luz suficiente sobre o papel das redes sociais e da internet. Esta última, nas mãos de oligarcas e oligopólios, serve como câmara de eco e para os propósitos de direcionamentos capilares de grandes públicos em nível mundial. A solução, uma vez mais, não é desligar a TV Trump, o Facebook e o Instagram. Mas produzir câmaras de eco por nós próprios, novas ressonâncias sonoras juntamente com cerimoniais e cosmologias diferentes acompanhadas por estados intensificados ou alterados, ou mesmo psicodélicos, de consciência no combate à inconsciência capitalista/colonial.

Por que não? Pesquisas recentes mostram que saturar estruturas cerebrais em altos níveis com neurotransmissores reduz a capacidade delas de regular a atividade de baixo nível. O resultado é uma maior conectividade entre partes diferentes do cérebro. O farmacólogo Robert Carhart-Harris traçou um paralelo entre o controle excessivo de cima para baixo dos processos cognitivos que os agentes psicodélicos interrompem e a influência destrutiva do capitalismo impulsionado pela imagem industrial sobre os ecossistemas cognitivos e planetários. Também, em um congresso realizado recentemente na Europa, Gal Bradbrook, um dos fundadores da Extinction Rebellion, propôs uma ingestão massiva de remédios psicodélicos como um ato de desobediência civil contra o sistema baseado na “escassez, separação e impotência”.

 

É claro que as crises são questões políticas, econômicas, jurídicas e sistêmico-culturais, e que as soluções devem igualmente ser políticas, econômicas, jurídicas e culturais. Mas a forma como concebemos as soluções e os princípios que podem orientar estas soluções exigem que vejamos que, neste sistema de coordenadas, as coisas não mais recaem em seus supostos lugares próprios. Além disso, que um tal sistema está dentro de nós, em nossa autovitimização constante, acompanhada da autoafirmação do tipo Jordan Peterson.

Mudança de perspectivas e consciência

Se sim, os remédios psicodélicos, as experiências sônicas, os novos cerimoniais, as práticas artísticas são oportunidades para nos ajudar na mudança de nossas perspectivas e consciência. Que tal um ato massivo de obediência como aquele, guiado por nossos mamos [2], nossos palabreros [3] e nossos homens e mulheres médicos aqui nas Américas? Que tal realizarmos eventos como o festival “Nature Loves Courage” [4], transformados através dos nossos rituais, não mais como mera distração ou zona autônoma temporária? O objetivo? Descolonizar a imagem como disse Silvia Rivera.

IHU On-Line – Qual a sua análise do avanço da direita conservadora na América Latina? Existe uma relação mais próxima com a ascensão da ultradireita na Europa ou nos EUA?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Na realidade, a ultradireita latino-americana do sul pode ter se inspirado nas ultradireitas do norte global. A filósofa Linda Martin Alcoff publicou certa vez que, apesar de todo este ódio declarado pela comunidade latina, Donald J. Trump foi influenciado e inspirou-se nos “homens fortes” do sul do Rio Bravo. Pessoas como o notório Álvaro Uribe Vélez, da Colômbia. Em troca, Trump e Bannon, com a imensidão dos recursos que têm ao dispor, ajudam, mais certamente, no avanço dos ultraconservadores em nosso meio, de uma maneira que nem sequer ainda conhecemos.

Neste momento, essa ajuda tem sido decisiva nas Américas. Vejamos a Venezuela, a Bolívia e o Brasil. Mas também em uma direção inteiramente diferente no Chile e na Colômbia, mais recentemente. O caso de Álvaro Velez mostra que estas pessoas não são eternas, apenas contingentes, do tipo estátuas de Ramsés à luz do espetáculo, mas com os pés de barro... Estão desmoronando. Vejamos a “Colectiva Feminista en Construcción”, em Porto Rico, no começo deste ano e a “Colectiva Lastesis”, nas ruas do Chile também este ano. O dedo a apontar para o líder fálico, a gritar com toda a força de seus pulmões, revela-lhe aquilo que todos são: imperadores sem roupas.

IHU On-Line – O avanço da direita sobre a América Latina é estratégico no controle geopolítico? Por quê?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Porque, durante a última década de meia, a América Latina mostrou que existe uma outra forma de liderar o mundo em direção a um mundo diferente, governar no sentido próprio de “guiar” e “mediar”, ou facilitar, como afirmo em meu livro What if Latin America Ruled the World [E se a América Latina governasse o mundo]. Este livro recebeu todo o tipo de elogio, prêmios e aclamação da crítica na Europa; foi traduzido no todo ou em parte e é uma vergonha que não tenha alcançado o público brasileiro com uma tradução apropriada. Eu adoraria a oportunidade de atualizar as suas teses em termos dos desdobramentos mais recentes aqui, no Brasil e em outros lugares. Pois há, evidentemente, uma lógica estratégica para fazer avançar a ala ultradireitista na América Latina com a finalidade de recuperar o controle sobre o hemisfério ocidental, e domar/conter as iniciativas de integração regional da fronteira sul dos EUA.

Esta lógica é bastante simples: cada um por si, divididos e isolados, os países e povos das Américas perdem-se e se submetem por outros cem anos de alienação exploradora, como Gabriel Garcia Márquez tão bem explorou em sua literatura. Nenhum outro escritor nas Américas alcançou alturas literárias e político-históricas como este. Talvez com a exceção de Chico Buarque, que está dando o seu melhor e que é bem-conhecido por isso. Mas certamente não os escritores do tipo Vargas Llosa, cuja obra empalidece se comparada, não importando os elogios ou títulos reais espanhóis, especificamente quando se trata de suas pretensões político-filosóficas – que são apenas isso, pretensões.

Felizmente, existem pensadores e teóricos atuais muito melhores entre nós. Todos nos ajudam a entender que isto é o controle, mas não no sentido do marionetista e de suas marionetes. Claramente não em sentido antiamericano, ou da teoria da conspiração. Isso é o escopo de uma ficção ruim. Em vez disso, os porquês e para-quês da geopolítica do hemisfério ocidental têm tanto a ver com a política dos “nossos dedos para todos os lados, as nossas digitais em lugar algum” de Washington desde, pelo menos, o auge com Henry Kissinger, quanto com as inclinações das nossas próprias elites que parecem incapazes de coexistir com as regras democráticas ou mesmo existir em seus próprios lugares.

Incapacidade para existir

Inferno, eles parecem incapazes de existir! Existir aqui, quero dizer, em suas próprias rotas históricas cultural e existencialmente criolizadas. Eles parecem querer ser espanhóis, portugueses, ingleses ou americanos, loiros clareados ou brancos mascarados. Nunca ameríndios nem negros, nunca crioulos. Motivo pelo qual o nacionalismo deles é imitação barata, uma outra máscara, simbolizando a “armadilha” da qual Frantz Fanon nos advertia. Querem transar com a esposa do senhor. Pedem pela intervenção do senhor. Clareiam os cabelos, usam máscaras e vão às ruas protestar com a babá negra a reboque, esta carregando o carrinho de bebê, todos do tipo “Poder Femenino”, “Liga Crucenista”, “fascismo nos trópicos”, “Tradição, Família e Propriedade”, “professores antiesquerdistas”, “machões com armas em punho de pinto pequeno”, temendo a castração pelas verdadeiras feministas e devorando os próprios filhos e filhas como uma antropogafia de Saturno. Aquela sobre a qual Gabriel Garcia Márquez escreveu nos anos 1950, quando disse das “posibilidades de la Antropofagia”.

 

Este tipo de controle não é o da vulgata marxista. É mais a do tipo que Fichte denunciava na Alemanha, quando alertou que as guerras expansionistas tendem ao combate por duas razões: primeiro, para tornar as classes média e outras cúmplices nas vitórias infantis do tipo marciais contra os desejos primários, que dotam o líder fálico e suas hordas ou satisfações místicas com a aparência de um paraíso. Segundo, para distraí-los da carência de satisfações materiais em casa pelo gesto enganador de criar um bode expiatório a um “inimigo da nação” imaginário, interno ou externo. Como o dos “professores comunistas” ou “Leo Di Caprio”. Suely Rolnik está certa: eis o controle no nível da inconsciência capitalista/colonial. O que é, evidentemente, o anverso perverso da pilhagem bem consciente a fim de manter vivas as economias enfermas do norte no norte e no sul, ao mesmo tempo pacificando o sul no norte e o sul no sul. Não sou eu quem diz isso. Mas o próprio Trump.

IHU On-Line – Como analisa o caso brasileiro neste contexto?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Esta resposta precisaria de um livro especialmente dedicado a ela, o que eu ficaria feliz de fazer se tivesse a oportunidade. Por enquanto, digamos apenas que o Brasil se tornou a quinta ou sexta maior economia do mundo durante a última década e meia; que Lula, independentemente do que as pessoas pensem de sua “pureza”, foi e ainda é, de acordo com muitos, o político mais popular do mundo, o que é um grande feito numa época de políticos profundamente impopulares; que, se estivéssemos em uma praia em algum lugar do mundo, se olhássemos para baixo veríamos chinelos Havaianas, e se olhássemos para cima, veríamos um avião da Embraer; que os alunos brasileiros de doutorado brilhavam nas universidades inglesas e francesas (eles ainda brilham, com grande sacrifício pessoal); que o BRICS estava prestes a ficar de pé por suas próprias forças, que é aquilo que toda sociedade madura faria; que fui convidado pela Intelligence Squared [empresa de mídia que organiza debates e eventos culturais em todo o mundo] para falar sobre se o próximo capítulo na história do mundo seria escrito pelo Brasil ou pela China (sinto muito, fui um defensor terrível, não acredito em história linear).

Também, que não haveria nenhum Podemos na Espanha e nenhum Corbyn na Inglaterra, nenhum Syriza na Grécia sem as visitas de Costas Douzinas ao Brasil e sem a “inspiração latino-americana”; que há tanto no Brasil que pode ser (a) privatizado, (b) vendido para a oferta mais alta de apostas, (c) saqueado; que o Brasil não é exatamente um país quanto o é um subcontinente; que o Bolsa Família poderia ter sido transformado em um grande experimento em nível nacional na questão dos serviços básicos universais e da Renda Básica Universal, caso o PT tivesse mantido o foco; que este programa tirou milhões de pessoas da linha da pobreza – o que é um evento a entrar para a história –, mas depois não pensou o dia seguinte; que, mais uma vez, confundimos a miséria econômica com a miséria do desejo, e assim fazendo acabamos cometendo (o PT, em particular) um erro fundamental.

Ainda, que a esquerda brasileira, como um todo, caiu na armadilha da esquerda “mais santa do que vós” e no horizontalismo e desencantamento no primeiro sinal de fracasso ou carência; que, por causa de tudo isso acima e apesar da minha hipérbole, o Brasil não é um caso singular, mas em sua especificidade faz parte do quadro mais amplo descrito acima. Que, por causa disso tudo, os brasileiros têm tudo para evitar cair no buraco negro ético e político em que nós colombianos caímos. Que os brasileiros podem agir assim. Que não é tarde demais. Nunca é tarde. Pois ninguém conhece o final da história antes de ele acontecer.

 

IHU On-Line – O ano de 2019 foi extremamente intenso na América Latina. Como analisa os cenários do Chile, da Venezuela, do Equador, da Colômbia e da Bolívia?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – O Chile e a Colômbia mostram o caminho para os filhos e filhas, especialmente as filhas, despertando dos sonhos dos nossos pais. A Bolívia foi um golpe. Agora está sob uma forte panelinha viciosa, racista, religiosamente fanática. Enquanto isso, os intelectuais falam da pureza das definições. A Venezuela passou por um golpe (abortado), mas o risco de uma catástrofe humanitária, como as sanções desumanizantes impostas pelos EUA aprofundam as condições que já podem estar havendo, permanece tão real quanto a dignidade dos que permaneceram e dos que saíram. As Américas estão em chamas neste momento. Uma tentativa de traçar uma nova linha global. É um tempo de conflitos.

 

IHU On-Line – Como a história da globalização se atualiza hoje na América Latina? E de que forma as novas tecnologias impactam neste novo capítulo na história da globalização?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – Pode ser uma boa ideia fazer uso do projeto de Enrique Dussel para a destruição da moral formalista e da história da ética, e defender uma “virada estética” no projeto e na mudança decolonial como um todo. Este é o tema de um livro que estou preparando, que é bastante adequado para conectarmos as histórias da globalização atualizadas nas Américas e a questão das chamadas novas tecnologias. Podemos reinterpretar o critério material de Dussel de uma ética da libertação, o corpo vivo, sensível e inteligente, de acordo com esta ideia benjaminiana. Isto é, em termos da conexão do corpo com o tipo de imagética cosmológica evocada na esteira de sua palestra na Universidade de Murcia.

Como um reconhecimento de que, fundado em uma variedade de contrastes (como eu-você, acima-abaixo, leste-oeste, norte-sul), o corpo humano, suas partes e funções, irá aparecer ou vir a estar presente como signos icônicos, não meros símbolos ou imagens de imagens, mas semelhanças prováveis ou imagens verdadeiras (cf. o coração como o lugar do desejo e da iluminação do sol, segundo a analogia “assim na terra como no céu”), que são indicadores de verdade e vetores da memória-habilidade para atos históricos ou eventos.

Isto é extremamente importante para o propósito da nossa investigação sobre as condições da redenção dos erros históricos fora dos contextos dados da cultura popular e do espetáculo em massa. Pois assumir o corpo vivo como paradigmático, um modelo de imagens que fazem justiça histórica às injustiças do passado, é compreender que a memória nunca é uma relação com um passado acabado ou uma história que já findou. Contra Horkheimer, mas também contra a cultura atual dos direitos humanos e da justiça transicional (para os quais “a injustiça passada ocorreu e está acabada”), a história de Dussel, inspirada em Benjamin, não é simplesmente uma narrativa linear, feita e polvilhada, calculável e previsível ou gerenciável de acordo com as convenções da perspectiva linear. É também uma história, forma teatral da memória (Eingedenken); uma rememoração que “pode transformar o inacabado (a felicidade) em algo acabado, e o acabado (o sofrimento) em algo inacabado”, como Benjamin diria (Benjamin, Arcades, n. 8, 1, 471).

Ação para correção de erros históricos

Mas, diferentemente de Benjamin (pelo menos, em sua primeira fase), não necessitamos de teologia para fundamentar uma perspectiva sobre a história como redenção. Podemos pensar a respeito e agir para corrigir os erros históricos do passado como uma opção que pode se redimir no sentido material próprio das nossas práticas financeiras: extraindo um preço do governo e beneficiários atuais das injustiças passadas como um prêmio com o qual apoiar a realização dos desejos passados hoje. As reivindicações históricas inacabadas ou não realizadas do passado funcionam como o elemento subjacente de uma opção que pode ser negociada na atualidade.

Em outras palavras, aos que dizem “as injustiças do passado ocorreram, uma e outra vez; a história está acabada, viremos a página”, podemos responder: “Dizem que a história se repete. Mas a história é uma his-story [história de alguém], e vocês não ouviram a minha ainda”, como Sun Ra diz no vídeo de arte coletiva “Race for Space”, de Soda_Jerk. A reativação de possibilidades e desejos específicos do passado, encarnados nos corpos reais a protestar nas ruas, põe um risco aos mercados de capitais tal que estes logo se prontificariam a pagar para resolver as injustiças históricas, o que pode financiar uma maior justiça aqui e agora, em troca daqueles corpos ou partes deles que não provocam julgamento final ou revolução, pelo menos não por enquanto.

A descrição que faço da justiça histórica, como uma opção, e da política democrática, como negociações, reúne elementos daquilo que Dussel chamaria de teologia da libertação em combate com as chamadas teologias da austeridade e prosperidade, mas não em termos da palavra reveladora de Deus. Antes, ela rearticula esta dimensão reveladora em termos do testemunho e da denúncia da carência em nossas sociedades e instituições atuais (que é o que os defensores dos direitos humanos e as comunidades lutam para ter), combinadas com a visualização de como seria a plenitude nestas sociedades, o que é o que os artistas e líderes comunitários “proféticos” fazem – contadores orais de histórias, palabreros, xamãs etc. –, mas também historiadores imaginativos e cientistas sociais ou teóricos investidos quando escrevem utopias ou retratam outros mundos e uma eucronia alternativa via imagens chocantes.

Nesse sentido, refiro-me a imagens do “mundo de cabeça para baixo” ou performances que deslocam a normalidade espaçotemporal dos espectadores abordando-os como participantes, um outro público diferente daquele que é espectador do espetáculo do consumo, e produzindo um futuro diferente. Estas imagens são mais eficazes quando invocam o modelo do corpo vivo: os desaparecidos, os mortos resistentes, os combatentes da liberdade e os corpos que se unem nas ruas para protestar. Não como simples vítimas com as quais simpatizar, mas como agentes de um curso diferente da história que começa a aparecer nos seus atos sem nenhuma garantia de sucesso ou acabamento. Tais corpos são, como diria Dussel, um modelo.

Corpo como fonte de analogia

Isso não equivale a dizer que o corpo pode ser lido como uma simples metáfora poética ou simplesmente em analogia com o criado em relação com a palavra criativa de Deus. Em nossos tempos, este tipo de poesia tende a ser confuso ou mesmo “demoníaco” se – e quando – enfatiza uma condição generalizada da vitimização. Uma condição como esta traz consigo, com bastante frequência, um olhar eterno ad pessimum – uma perspectiva negativa, um pessimismo existencial. Em vez disso, equivale a dizer que o corpo é a fonte das analogias e um modelo particularmente apto para uma semiótica cósmica ou história universal.

Uma tal semiótica da história pode começar com certos binários analógicos (acima/abaixo, norte/sul, 1%/99%), mas logo parte e encarna em corpos presentes e ausentes que buscam negociações específicas ou determinadas em sociedade (limitações e lacunas ou faltas concretas) que podem se comparar com uma plenitude visualizada ou uma imagem dialética atrativa a fim de unir-se em combate com eles. Esta seria uma imagem capaz de deslocar coordenadas espaçotemporais e de normalidade. Uma imagem dialética retém a distinção entre “verdade” como indelével ou irredutível ao mero capricho humano ou intenção transitória e imagens e discursos “falsos” ou mesmo “demoníacos”. Uma tal distinção pode ser teológica em suas origens ou mesmo cosmológica. No entanto, em termos da virada estética que queremos traçar aqui, o segundo termo designa mais exatamente o tipo de valor ou exibição expositivo (especificamente, a exibição de obras de arte) que funciona como um trabalho corretivo na socialização: venha e brinque com a gente, converse, assista, agite, envolva-se em disputas implacáveis.

Se o cerimonial para um ajuntamento e participação parecer ameaçado em outras esferas (públicas), compensar privilegiando práticas participativas e a coletividade na arte seria um substituto pálido – falso, até mesmo demoníaco. Uma imagem verdadeira em nossas sociedades do espetáculo seria uma imagem capaz de questionar ou, pelo menos, de nos ajudar a fazer um melhor sentido da combinação específica entre os meios de comunicação da reprodutibilidade tecnológica tais como a TV a cabo ou as mídias sociais digitais, e as mudanças na demografia (por exemplo, na fragmentação e na estratificação por classe/formação do entretenimento em massa) e o papel de tais meios (incluindo o formato dos programas de reality show) na promoção de uma visão de mundo implacavelmente hobbesiana e politicamente pessimista. Enquanto isso, esta imagem condensa a sua consciência sobre a atual crise da maneira como juízos, vereditos e pronunciamentos (justos) são alcançados com o preconceito frequentemente inconsciente do nosso imaginário em favor da harmonia contra o conflito, a fim de despertarmos dele.

O preconceito inconsciente do nosso imaginário, buscando anatematizar o conflito, ressoa, mais ou menos de forma secreta, com o sonho (atual, neoliberal) de proibir qualquer outro regime de governo ou ideologia que não aquele atualmente em vigor. O que é reprimido ou negado, hoje, é o conhecimento de que não é tarefa fácil persuadir pessoas concretas de que a escravidão é justa ou que a exploração é agradável. Em vez disso, é melhor acreditarmos que as coisas são simplesmente assim, inevitavelmente, e que é a única maneira que elas podem ser.

Aqui, como em outras ocasiões, a familiaridade de Dussel com a obra de Benjamin e com o escolasticismo tardio é útil. No segundo caso, estão os mestres modernos originais do jogo de cartas da inevitabilidade e do gradualismo, como creio que pode ser visto em suas argumentações relativas à “justiça” da escravidão (africana) e da guerra expansionista que, com razão, servem como os precursores obscuros das nossas justificações atuais das formas “zero-hora” de exploração e golpes políticos “soft”, bem como para a nossa supercompensação da “estética relacional” no mundo da arte e da religião em massa voltadas às exibições assim como o entretenimento.

Imagem dialética

O que uma imagem dialética pode fazer a este respeito? Além de ajudar a melhor compreendermos estas conexões – históricas, econômicas, sociológicas etc. –, uma imagem como esta pode ser um indicativo da verdade. Pelo menos na medida em que pode neutralizar o sentido atual de desorientação e mal-estar sociopolítico. Como? Em primeiro lugar, como dito acima, ajudando-nos a melhor entender o fato de que o nosso sentimento de desorientação é um efeito da percepção gradual de que inexiste um ponto de referência último, nem redenção no final da história, tampouco predestinação.

A experiência que se segue à percepção é vertiginosa – uma experiência de inexistência do fundamento, de nadidade ou “choque do aberto”, como diria Theodor Adorno. Como tal, esta experiência e o sentimento que traz consigo podem estar mascarados ou equivocados. Podem ser cobertos, reembalados, tomados como mais uma commodity na era das commodities-imagens. E são revendidos para nós como um outro ponto de referência final.

Mas transformar a nadidade ou a falta de fundamento em um outro fundamento ulterior é nos sujeitar a um feitiço. O feitiço do imutável. Ele diz: não importa o que fizer, somente será uma gota de água no oceano. Aquilo que é, é inevitável. Não nos preocupemos em tentar. Nada muda. Façamos nada. Desejemos nada. Não é este exatamente o feitiço que os neofascistas e populistas de direita empregam hoje para nos manter acorrentados a um sistema cujos elementos não se encaixam mais? O nome deste feitiço é niilismo. Um desejo assim pela nadidade toma conta de nós. Ele age sempre que sabe que não gostamos da maneira como as coisas são; apenas somos levados a acreditar que esse é o único arranjo viável e porque este é supostamente o único sistema possível de ordem no mundo, devemos querê-lo, escolhendo-o sempre de novo. Caso contrário, seríamos os culpados pelas consequências e merecedores de punição.

Classes média e sua culpa moral

Observemos como, neste caso, uma equivalência de culpa e penitência transfere-se para a sequência de pensamentos e sentimentos, tornando-nos maduros para uma contrarrevolução das emoções e ideais reforçados contra o desejo e ridicularizados pelo dinheiro. Este é especialmente o caso, o estado da situação, para as classes médias sobrecarregadas pela culpa moral e pelo desejo de adquirir mais dinheiro e poder de compra de forma a serem capazes de contornar as proibições morais. Assim como os muito ricos podem fazer. Aí jaz a raiz da nossa corrupção, se é que podemos empregar uma linguagem moralizante. Esta situação é o que precisa ser visto.

A resposta da arte

A função da arte nestas circunstâncias é, precisamente, ver através da situação. Mas essa seria uma arte bastante diferente, uma arte enraizada na classe, uma arte radical, em combate com o chamado quadro de referência que emerge da geometria analítica de Descartes e do sistema de coordenadas dos cosmógrafos imperiais em que todos e tudo teriam o seu lugar próprio; contra o ocularcentrismo cartesiano. Nesse caso, o que uma arte diferente deve fazer através de suas imagens impressionantes é experimentar com as demais formas de desejo e explorar um leque muito mais rico de possibilidades. Mais rico do que aquele que os filósofos (Kant, Hegel e assim por diante) pensavam como possíveis.

Este último tende a reter o ponto de discórdia, o ponto-zero da perspectiva, no sujeito absolutamente ancorado no lado de fora do quadro teórico, e a reter o imutável (objetividade) deste quadro. Através deste enquadramento, dentro dele, tudo é capturado e fica contido. Daí a importância da ideia de imanência, mas também a importância de se questionar uma ênfase exagerada na imanência. Walter Benjamin, para mencionar uma das fontes de inspiração de Dussel, não foi somente um pensador da imanência pura. Foi, como Adorno, um pensador da verdade e transcendência. Para eles e para Dussel, a verdade é para ser encontrada somente no ato que se lança para longe sem um cinto de segurança, sem uma cobertura de suas apostas, à fonds perdu. Assim concebida, a vertigem trazida à existência pelo pensamento e pelo ato (estético e político) que não consegue acabar e fundamentar-se completamente, ou não consegue se reafirmar, é o indicador da verdade.

Um tal ato e a verdade de um tal ato não podem garantir, antecipadamente, as coordenadas da sua presentificação ou realização. É mais como aquilo que, sem cessar, forma a si mesmo. Autopoiético, no sentido dado ao termo pelos biólogos latino-americanos. É também a salvação do empirismo, ou melhor, um empirismo da salvação/resgate. Salvar não é uma questão de pensar sobre o concreto e os detalhes concretos da história. Os atos de salvação performam e filosofam a partir deles, reunindo conceitos em torno, como dizem os críticos.

A famosa asserção de Hegel de que o particular é o universal adquire o seu sentido mais poderoso aqui, na crítica do clichê segundo o qual “a verdade é concreta”, o que muitas vezes está associado a imagens em nossas sociedades do espetáculo. Estas sociedades preferem imagens que apenas comunicam a mensagem da realidade predominante.

Nesse caso então a arte não deve atender à mensagem carregada pelo seu conteúdo. E os artistas não devem desempenhar o papel de preencher as fendas dos vínculos sociais. Isso só duplicaria as apostas dos ricos na sociedade do espetáculo em se tornar uma sociedade dos extras ou, na melhor das hipóteses, dos participantes de um reality show em que cada um repete as tramas pesadamente roteirizadas da interatividade ilusória (ou democracia interativa) em canais ainda mais truncados de comunicação.

 

O papel e ação da horda

É claro que não há nada interativo em tais tipos de comunicação, que em geral são mais interpassivos. Neles, as pessoas desempenham o papel da horda. E a horda considera como bruxaria tudo o que difere da realidade predominante, como diz Adorno, preferindo, sob o feitiço, a vantagem de todas as coisas familiares, o lar e a segurança. No entanto, o lar e a segurança são precisamente as imagens daquele falso mundo. “As pessoas temem que, ao escapar do feitiço, perderão tudo porque desconhecem a felicidade, nem mesmo a felicidade do pensamento, além da capacidade de se apegar a algo”, observa Adorno. Esta “falta de liberdade em perpetuidade” é o que os neofascistas aproveitam e reinventam (Adorno, [2003] 2008, p. 146).

O que antes o sistema desejava obter para eles, um senso de que tudo recai em seu devido lugar, um pouco de ontologia em meio à crítica deles contra ela, pode ser encontrado somente como o outro qualitativamente na arte (política, de origem de classe) que estamos propondo aqui. Ou seja, dentro de fatos concretos e das ruínas do sistema histórico a desmoronar, indo de uma catástrofe para a próxima. Tudo está ruindo, mas não há nada em sentido do qual ruir. Nesta situação, o risco é crer que tudo é estático, que o fim chegou. Aproveitar-nos deste risco não exige um choque, uma sacudida, como aquela da consciência psicodélica ou do investimento radical dos místicos, profetas e xamãs.

A atual geração de artistas tem menos medo destes estados de consciência e investimento radical, que são incompatíveis com o fechamento atual da imaginação. É evidente que eles e nós seremos acusados de “bruxaria” e de envolvimento em pensamento mágico como o das mulheres romanas e ameríndias. É o líder fálico a gritar a toda força e a sua “base”, a horda, quem nos acusa. A propensão dele pela simplificação é a inverdade; a mesma coisa que fingir ser estúpido. Este esquema tem mercado em nível mundial hoje.

Artista em oposição

Os artistas que se posicionam contra o mercado, contra o império do mercado no mundo da arte, e contra “fingir ser estúpido” combatem o feitiço. Certas práticas artísticas e estratégias estéticas podem forjar uma conceitualização diferente de justiça. Uma conceitualização liberta da determinação histórica sufocante bem como do feitiço do ocularcentrismo (pós-)colonial, ou da ontologia da aparência eterna ad pessimum. Eles não temem escapar do feitiço porque, como os seus irmãos e irmãs que protestam nas ruas, foram roubados de tudo e nada mais têm a perder. Esperam, ao modo de Bertholt Brecht, chocar-nos contra uma visão e uma postura exterior a partir das quais a arbitrariedade e a contingência de qualquer sistema se revelam. Esperam sistematizar a tradição da revolta, exatamente no sentido do qualitativamente outro: uma alteridade social. Como pode estar já aparente para os leitores desta entrevista, acredito que as práticas e os processos artísticos de pessoas como Oscar Murillo e Carlos Motta mais que alcançam esta qualidade: a veracidade.

Esta veracidade – utopia, festa na natureza que ama a coragem, a eucronia – é sempre possível ou alcançável, mesmo não sendo compossível nas atuais condições, mesmo induzindo a uma forma de vertigem existencial. Contra a aparência eterna ad pessimum que é a moeda hoje, essa visão vertiginosa (a visão do outro) focaliza-se nas fendas concretas do sistema em ruínas, não preenchidas. Este olhar é metódico, do tipo detetive. Assim, propusemos também extrair um método para uma ciência do sentido de libertação, a partir da perspectiva analógico-dialética, de contraste, de Dussel, sobre o corpo como organismo vivo, faminto, sedento, forçosamente deslocado, rompido e rompedor, tanto um sistema de sinais quanto aquilo que os sistemas de sinais significam.

IHU On-Line – Qual o papel do Direito, hoje, na consolidação das democracias latino-americanas? Por que é importante que os operadores do Direito saibam identificar estas mensagens e ideais totalitários, fascistas e neofascistas? Como isto pode contribuir para a garantia do Estado democrático de direito?

Óscar Eduardo Guardiola-Rivera – O nosso foco principal no Direito e nas tecnologias jurídicas de negociação estão nas leis escritas e na persuasão retórica, especialmente no caso das chamadas democracias de “consolidação” nas Américas. Mas a “consolidação” e as “culturas dos direitos humanos” agora deram lugar ao lawfare e, talvez por algum tempo já, também ao “imperialismo legalista”. Importa aos operadores jurídicos e alunos de direito, como também os demais participantes do sistema jurídico, que aprendam a identificar e distinguir bem como a ler criticamente as mensagens da alt-right e de grupos neofascistas, porque o que está em jogo é a própria ideia de Estado de direito.

Não nos enganemos: apesar de todas as mensagens em contrário, os neofascistas não fazem justiça, em vez disso eles destroem as instituições. Somos nós que desejamos fazer justiça e que respeitamos o Estado de direito. Proponho que, para alcançar esta mudança de ponto de vista, devemos nós nos educar e educar os nossos operadores da lei bem como os estudantes na arte de ler criticamente as imagens e os emblemas jurídicos uma vez mais. Como? O nosso foco específico deve estar em formar, daqui em diante, a ideia de que o ver vem antes das palavras, que podemos aprender a olhar e reconhecer antes de falar, mas também – e isso é importante – que o ver estabelece o nosso lugar no mundo circundante precisamente através da exploração da recorrência dos ritmos nos padrões e sistemas de um mundo no qual os nossos corpos e tudo mais ressoam uns com os outros. Nesse sentido pelo menos, ver é também ouvir, escutar ondas, e ver é sentir bem como recursivamente refletir. Daí a importância da ideia da inteligência sensorial, lo sentipensante, em nossas explorações.

 

Afinal, seja audível, seja visual, toda a comunicação é rítmica, como uma dança, em que recebemos e emitimos partículas em forma de ondas, movimentos. Isto são atos, transmitindo e recebendo informação através de formas com e sem voz. Se estes atos não se reduzem a atos de fala (pois podem ser sem voz ou apofáticos), então a força deles não pode ser compreendida unicamente em termos de performance linguística ou força repetitiva das convenções estabelecidas, ou outros pontos de referência pragmático-transcendentais ulteriores.

Em lugar de uma questão de fundamento, de persuasão, a força destes atos reside não simplesmente na capacidade que têm de resolver o nosso comportamento em relação aos padrões das convenções, mas na capacidade deles de nos perturbar. E não somente na capacidade de nos impelir à ação, mas também na capacidade de nos impelir a funcionar como vetores de transição, um vetor intervalar ou um campo vetorial que assinala a direção para cada ponto no espaço, abrindo assim o espaço-tempo entre, digamos, este ponto e um outro, entre o som e o silêncio, ou entre a ausência e a plenitude. Falamos, pois, de um retorno a se fazer presente. Um ato nos produz. E o futuro.

Justiça histórica

Acredito que este insight importa para a questão da justiça em geral, e em particular para a justiça histórica. Isso porque podemos explicar a justiça em geral em termos da distância entre o que está em falta na ordem presente e uma ordenação mais completa por vir, bem como a ressonância no presente entre tal ordenação por vir e ordens normativas existentes. A justiça histórica em particular lida com os erros históricos do passado que continuam no presente e como corrigir tais erros. Conforme mostraram teóricos como Robert Meister, isto requer uma opcionalidade. A justiça histórica é, em si, uma opção que tem valor hoje, muito embora não seja uma opção que se possa exercitar, pelo menos não ainda. Em vez disso, o seu valor ou preço vem a se fazer presente na ressonância entre a possibilidade de se exercitá-lo no futuro e na escolha de não o realizar agora, ou na distância, que age como uma câmara de eco ou amplificador.

 

Esta distância importa, o intervalo histórico em que uma realidade antecipada, vista ou ouvida, real ou não ainda, vem a estar presente. Em uma sociedade tal como a nossa (uma sociedade do valor expositório, da disposição e da especulação), fazer justiça em ambientes democráticos pode ser melhor compreendido como um projeto de intensificação e realização do valor presente da justiça histórica como uma opção em cenários não revolucionários. Movimentos de protesto e progressistas fazem isto introduzindo um choque no sistema, o risco político de o Estado não restaurar a liquidez para os mercados financeiros, que podem ser precificados e, portanto, segundo Meister, tornam-se o prêmio político disponível para financiar uma maior justiça que se pode extrair para permitir ganhos cumulativos das injustiças passadas visando permanecer, ou postergar, a redistribuição em larga escala por enquanto (Meister, 2011; 2016; 2018).

Diferença

Chamamos esta distância de diferença. A abertura entre a experiência de repressão, falta e exclusão, e a visualização da plenitude por vir, que pode dar às vítimas motivos para exigir a perturbação da ordem estabelecida. A questão crucial para uma política de justiça na área dos direitos humanos, da recolonização e da financialização é o que acontece neste intervalo. Ou, em outras palavras, como domar a diferença protegendo-se, desse modo, contra o risco de que as vítimas ajam radicalmente com base na memória de suas experiências de repressão ou nos sentimentos de falta e anseio por justiça histórica.

Lembremos, no entanto, que sob as atuais configurações dos direitos humanos e da justiça transicional é fundamental que as vítimas sejam vistas como dóceis, carentes, exigentes, sem voz e invisíveis, ou como um sujeito interpassivo. Isso é um indicativo da transposição dos direitos humanos em si a partir do registro da mobilização política (revolucionária) em massa para aquele do espetáculo (interpassivo) na cultura popular mundial. Nessa cultura, a apatia que acabamos sentindo para com a fotografia da agonia e da denúncia sentimental que domina o noticiário e o marketing das ONGs/direitos humanos deveria ser substituída pela empatia, a virtude moralmente induzida para sentir a dor dos outros como a nossa própria dor.

O argumento segue dizendo que se mudassem da apatia para a empatia, os consumidores de tais imagens iriam se responsabilizar pela permissão da ocorrência da vitimização e pelo fato de existirem vítimas. A cultura também lhes assegura que eles mesmos podem não ser diretamente os responsáveis, pois não foram os perpetradores nem eram as vítimas, mas meros espectadores, os quais simplesmente não demonstraram compaixão alguma ou não estiveram atentos aos fatos. Em suma, os consumidores nos mercados (das imagens) dos direitos humanos recebem uma satisfação emocional em oposição a conceder satisfação material aos desejos das vítimas históricas. As vitórias dos direitos humanos são emocionais e neste respeito, pelo menos, são vitórias infantis sobre desejos primários, mas também vitórias que dotam estas emoções e vitórias (como na guerra) com a aparência de paraíso (Meister, 2011:213; Yoyotte, 2009, p. 43).

Vítimas

É assim que, através de um tal deslocamento, as atuais configurações da política e dos direitos humanos conseguiram conter todas as antecipações e desejos afetivos de gerações sucessivas de vítimas. Nesse caso, a questão que os atos estéticos do distanciamento que nossos críticos e artistas põem em prática e conversam a respeito é a de mostrar-lhes sob uma nova luz. Não mais como meras vítimas, mas como a própria encarnação da possibilidade histórica de chocar o sistema. E, como tal, do valor.

Como? Intensificando os seus efeitos anexados às ocorrências e projetos interrompidos do passado, cursos alternativos da história, ainda latentes mas ainda não realizados. O tempo se faz presente como incompleto, um intervalo diferencial. No intervalo, aqueles que sofreram injustiça no passado passam a se ver como uma possibilidade não realizada (a possibilidade de trazer plenitude ao invés de uma falta ou de preenchimento da lacuna). Mesmo se aos olhos dos atuais beneficiários das injustiças passadas eles só podem aparecer com um risco. Fundamentalmente, em nossas sociedades um tal risco pode ser precificado. E as antigas vítimas podem negociar as suas reivindicações históricas como se fossem opções com o Estado e os beneficiários a fim de extrair os prêmios que podem financiar uma maior justiça em troca de se postergar a revolução por enquanto.

 

Em outras palavras, o passado como futuro ressoa com o presente e o futuro no passado pode ser ouvido ou visto. Ele ou ela que age (o espectador-agente, não mais um mero observador, digamos um manifestante nas ruas da Colômbia em fins de 2019, um participante em um dos “atos” de Carlos Motta, ou um poeta) não é contemporâneo porque está familiarizado com o passado, pode restaurá-lo ou rejeitá-lo. Em vez disso, é contemporâneo porque existe como o resultado de uma série de ressonâncias nas câmaras de eco da história, movendo-se entre o passado como futuro e o futuro no passado. Este espectador-agente existe como um “resultado dialético” daqueles conjuntos da existência passada, para pôr na linguagem hegeliana do teórico do jazz e filósofo surrealista negro René Ménil. Desse modo, explica ele, ao mesmo tempo o ator ou poeta “é uma negação viva e uma preservação viva de todas as velhas formas culturais. O seu aspecto contemporâneo será de um valor mais amplo e maior por causa do fato de ser uma totalidade do passado”, em ressonância com o futuro.

Pode-se entender isto no sentido de que as tradições culturais refletidas pelo poeta, pelos artistas ou manifestantes não podem servir como um modelo, dado que inexiste um modelo daquilo que ainda não se tornou realidade em existência plena. Ele existirá, entretanto, numa espécie de estado ressonante, vibratório ou ao modo de onda do estado do passado, situando o poeta, o artista ou o manifestante, inflexivelmente, em seu tempo; transforma esta pessoa em um agente moderno numa época moderna, ou perigoso em uma época perigosa. Esta ressonância desbanca as ordens normativas estabelecidas, reorientando elas e a nós. Um choque para o sistema. É muito para a liberdade e para a defesa das liberdades na arte e na política: “diante de nós o futuro, ainda sem forma” (Ménil, 2009, p. 85).

Tradição de revolta

Precisamos fazer mais para sistematizar esta tradição poética de ressonância e deslocamento que é uma tradição de revolta, a qual também acontece de ser uma tradição ética extremamente relevante para as nossas conjunturas atuais dos direitos humanos, espetáculo de imagens e financialização. Precisamos trabalhar mais para descompactar aquilo que se entende por poder de tropos e imagens, vibrações e ressonâncias do tipo relâmpago. Especialmente na sequência que vai dos deslocamentos brechtianos de Benjamin, do choque de sistematização da tradição poética da revolta por negros surrealistas como Ménil ou Simone e Pierre Yoyotte no século XX, até os deslocamentos acumulados no espaço-tempo da pintura, fotografia, do cinema, das paisagens sonoras e performances de artistas como Carlos Motta, Melika Ngombe Kolongo e Oscar Murillo nas Américas de hoje e alhures.

Esta tradição foi passada através dos séculos “pelos poucos rebeldes que contrariaram a invasão monstruosa” da especulação nos altares do dinheiro, como diz Yoyotte. Ela nos insta a olhar para a música, o cinema e as artes visuais fora da indústria do entretenimento não só como uma forma remedial material como também uma terapia de choque com base no conceito de classe para o sistema capaz de se expandir rapidamente às fronteiras entre espaços de exibição e espaços de posição e disposição, para fins de negociação em que os riscos podem ser altíssimos, se não absolutos.

Tradição poética, ética e política

Por meio deste trabalho experimental, descobrimos que esta tradição poética igualmente acontece de ser uma tradição ética e política. Se estes novos casos parecem “limitados” do ponto de vista histórico calculista diante de perversões e violações mais numerosas da dignidade humana, de forma alguma eles são excepcionais. O próprio sucesso do surrealismo, e a obra de pessoas como Yoyotte, Rivera e Dussel, ou Motta e Murillo, tendem a demonstrá-lo. Não devemos esquecer – e isto é importante – do retorno dos rebeldes às ruas das Américas e em outros lugares no fim de 2019.

Começando com uma repressão emocional, “parte ainda pungente da realidade de hoje”, os negros surrealistas, seus sucessores, e os artistas e críticos que vieram depois dirigiram-se imediatamente para a “defesa do desejo”, para a inspiração individual em lugar da aspiração, a soluções e, mais do que isso, a princípios diametralmente opostos ao mussolinismo da época deles e dos fascismos derivativos dos nossos tempos. Em combate com a militarização racista de nossos dias, por valor e justiça como uma opção.

Neste empreendimento, o conceito de destruição dos ideais morais, que pego emprestado de Yoyotte e de Dussel para reinventá-lo na era do espetáculo e das finanças, deveria ser entendido com sensibilidade e inteligência. Como observa Yoyotte, é profundamente contraditório haver uma sociedade sem nenhuma exaltação coletiva ou viver e conformar-se com um senso degradado da importância e do valor de tudo o que existe, a começar pela dignidade humana. Como revolucionário, como alguém que não se apressa a dar voltas para garantir a nossa falsa harmonia, mas sim que olha para o movimento do cosmos na busca de inspiração, eu prefiro a ideia de não apenas uma consciência e uma sociedade toleráveis, mas historicamente saltitantes e ampliadas.

“A ética do futuro não consistirá na supressão das emoções irracionais”, escreve Yoyotte. Concordamos com ele. Em vez disso, devemos aproveitá-las para uma política do desejo no interesse de uma maior justiça, para caminhar de peito erguido e dançar para frente (ao som das fortes vibrações do échos-monde, de Nkisi) em direção a uma história cheia de anseios. A fim de aprender a escutar o que os nossos olhos nos falam sobre os padrões e sistemas de um mundo no qual tudo está em ressonância rítmica, o som pode nos dar de volta a visualidade e a visibilidade que o ocularcentrismo reprimiu, como diz Nkisi.■

 

Notas

[1] Ou “Cinco Olhos”, acordo entre Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos que visou a cooperação entre os centros de inteligência destes países.  (Nota do tradutor)

[2] Líderes espirituais altamente treinados do povo indígena da Sierra Nevada de Santa Marta, cadeia montanhosa da Colômbia. (Nota do tradutor)

[3] Figuras centrais na administração da justiça, mediando e negociando conflitos entre diferentes clãs, pessoas ou organizações do povo Wayuu. (Nota do tradutor)

[4] Evento de dois dias que acontece no sul de Creta, um dos pontos europeus mais próximos do continente africano. (Nota do tradutor)

 

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