Benjamin e o capitalismo. Artigo de Giorgio Agamben

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

13 Mai 2013

Publicamos a seguir um texto de autoria de Giorgio Agamben, traduzido por Selvino J. Assmann, professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

O título original do artigo é Benjamin e il capitalismo e acaba de ser publicado na revista mensal italiana Lo Straniero. Em seu artigo, Agamben explica que, segundo Benjamin, “o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. Ao refletir sobre a desmaterialização da moeda, Agamben afirma que “o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo”.

Eis o artigo.

Há sinais dos tempos (Mt.16,2-4) que, mesmo evidentes, os homens, que perscrutam os sinais nos céus, não conseguem captar. Eles cristalizam-se em eventos que anunciam e definem a época que vem, eventos que podem passar despercebidos e não alterar em nada ou quase nada a realidade a que se juntam e que, no entanto, precisamente por isso valem como sinais, como indicadores históricos, semeia ton kairon. Um destes eventos ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o governo norte-americano, sob a presidência de Richard Nixon, declarou que a convertibilidade do dólar em ouro estava suspensa. Embora tal declaração marcasse de fato o fim de um sistema que havia vinculado por longo tempo o valor da moeda a uma base em ouro, a notícia, comunicada no coração das férias estivas, suscitou menos discussões do que legitimamente se poderia ter esperado. Mesmo assim, a partir daquele momento, a inscrição, que ainda se lê em muitas cédulas (por exemplo, sobre a libra esterlina e sobre a rúpia, mas não sobre o euro), “prometo pagar ao portador a soma de...”, assinada pelo presidente do Banco Central, havia perdido definitivamente o seu sentido. Esta frase significava agora que, em troca daquela cédula, o banco central ofereceria a quem o pedisse (admitindo que alguém fosse tão tolo para o pedir) não uma certa quantidade de ouro (por um dólar, trinta e cinco avos de uma onça), mas sim uma cédula exatamente igual. O dinheiro esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que foi aceito o gesto do soberano norte-americano, que equivalia a anular o patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi sugerido, o exercício da soberania monetária por parte de um Estado consiste na sua capacidade de induzir os atores do mercado a empregarem os seus débitos como moeda, agora também o débito tinha perdido toda referência real, tornando-se puramente de papel.

Desmaterialização da moeda

O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos antes, quando as exigências do mercado levaram a vincular à moeda metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras de câmbio, cédulas, juros, goldschmith’s notes, etc. Todas estas moedas de papel, na realidade, são títulos de crédito e, por isso, são chamadas de moedas fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria valer – pelo seu conteúdo de metal precioso (aliás, como se sabe, inseguro: o caso limite é o das moedas de prata cunhadas por Frederico II, que logo depois de ser usada deixava aparecer o vermelho do cobre). Contudo, Schumpeter (que vivia, sim, numa época em que a moeda de papel já havia superado a moeda metálica) pôde afirmar, e com razão, que, em última análise, todo o dinheiro é apenas crédito. Depois de 15 de agosto de 1971, deveríamos acrescentar que o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo.

Benjamin e o capitalismo como religião

O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes fragmentos póstumos de Benjamin. Já foi observado mais vezes que o socialismo era algo como uma religião (entre outros autores, para Schmitt, “o socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para os homens dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o cristianismo para os homens de dois mil anos atrás”). Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características:

1.- É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Nela tudo só tem significado se for referido ao cumprimento de um culto, e não a um dogma ou a uma ideia.

2.- Este culto é permanente, é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”. Não é possível, aqui, distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa-trabalho, no qual o trabalho coincide com a celebração do culto.

3.- O culto capitalista não está destinado a trazer redenção ou a expiação de uma culpa, mas destinado à própria culpa. “O capitalismo é talvez o único caso de culpa não expiante, mas culpabilizante. Uma monstruosa consciência culpada que não conhece redenção transforma-se em culto, não para expiar nisso a sua culpa, mas para a tornar universal... e para, no final, capturar o próprio Deus na culpa... Deus não morreu, mas foi incorporado no destino do homem”.

Precisamente porque tende com todas as suas forças não à redenção, mas à culpa, não à esperança, mas ao desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a sua destruição. E o seu domínio é, em nosso tempo, tão total que até os três grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram, segundo Benjamin, com ele, são solidários, de algum modo, com a religião do desespero. “Esta passagem do planeta homem pela casa do desespero na absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o Sobre-homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o que foi removido, a representação pecaminosa... é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os juros”. E, em Marx, o capitalismo, com os juros simples e compostos, que são função da culpa... transforma-se imediatamente em socialismo”.

Em que crê o capitalismo?

Tentemos tomar a sério e a desenvolver a hipótese de Benjamin. Se o capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de fé? Em que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a decisão de Nixon? David Flüsser, grande estudioso de ciência das religiões – existe também uma disciplina com este estranho nome – estava trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam como “fé”. Naquele dia achava-se por acaso numa praça de Atenas e a uma certa altura, erguendo os olhos, viu escrito em caracteres cubitais diante de si Trapeza tes pisteos. Estupefato pela coincidência, olhou melhor e após alguns segundos se deu conta de se encontrar simplesmente na frente de um banco: trapeza tes pisteos significa em grego “banco de crédito”. Eis o sentido da palavra pistis – fé – é simplesmente o crédito de que gozamos junto a Deus e de que a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que cremos nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição, que a “fé é substância de coisas esperadas” (1): ela é aquilo que dá crédito e realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e temos confiança, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Creditum é o particípio passado do verbo latino credere: e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa fé, quando estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou tomando de empréstimo dele algum dinheiro. Na pistis paulina volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia que Benveniste reconstruiu, a “fidelidade pessoal”: “Aquele que detém a fides posta nele por um homem mantém tal homem em seu poder... Na sua forma primitiva, esta relação implica uma reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia e a sua ajuda”.

Capitalismo: religião fundada sobre a fé

Se isso for verdadeiro, então a hipótese de Benjamin de que há uma estreita relação entre capitalismo e religião acaba recebendo uma nova confirmação: o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé). E se, segundo Benjamin, o capitalismo é uma religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se emancipou de todo pecado, e, portanto, de toda possível redenção. Então, do ponto de vista da fé, o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito (believes on the pure belief), ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé – o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o dinheiro.

Isso significa que o banco, que nada mais é do que uma máquina para fabricar e gerir crédito (Braudel, p. 368), tomou o lugar da Igreja e, ao governar o crédito, manipula e gere a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda conserva em si mesmo.

Crédito: ser imaterial

O que significou, para esta religião, a decisão de suspender a convertibilidade em ouro? Certamente constituiu uma espécie de elucidação do próprio conteúdo comparável à destruição mosaica do bezerro de ouro ou à fixação de um dogma conciliar – em todo caso, trata-se de uma passagem decisiva para a purificação e a cristalização da própria fé. Esta – na forma do dinheiro e do crédito – emancipa-se agora frente a toda referência externa, cancela o seu nexo idolátrico com o ouro e se afirma na sua absolutidade. O crédito é um ser puramente imaterial, a mais perfeita paródia da pistis, que nada mais é do que “substância das coisas esperadas”. A fé – assim dizia a célebre definição da Carta aos Hebreus – é substância – ousia, termo técnico por excelência da ontologia grega – das coisas esperadas. O que Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis em Cristo, toma a palavra de Cristo como se fosse a coisa, o ser, a substância. Mas é precisamente este “como se” que a paródia da religião capitalista cancela. O dinheiro, a nova pistis, é, agora imediatamente e sem resíduos, substância. O caráter destrutivo da religião capitalista, de que falava Benjamin, aparece aqui na sua plena evidência. A “coisa esperada” não existe mais, e foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia no sentido técnico. E dessa maneira elimina-se o último obstáculo para a criação de um mercado da moeda, para a transformação integral do dinheiro em mercadoria.

A sociedade condenada a viver de crédito

Uma sociedade cuja religião é o crédito, que crê apenas no crédito, está condenada a viver de crédito. Robert Kurz ilustrou a transformação do capitalismo do século XIX, ainda fundamentado na solvência e na desconfiança com relação ao crédito, no capitalismo financeiro contemporâneo. “Para o capital privado do século XIX, com os seus proprietários pessoais e com os relativos clãs familiares, valiam ainda os princípios da respeitabilidade e da solvência, à luz dos quais o recurso cada vez maior ao crédito aparecia quase como algo obsceno, como o início do fim. A literatura popular da época está cheia de histórias em que grandes estirpes caem em ruína por causa da sua dependência do crédito: em algumas passagens dos Buddenbrook, Thomas Mann fez disso até mesmo um tema que mereceu um Prêmio Nobel. O capital produtivo de juros era naturalmente, desde o início, indispensável para o sistema que se estava formando, mas ainda não tinha importância decisiva na reprodução capitalista no seu conjunto. Os negócios do capital “fictício” eram considerados típicos de um ambiente de trapaceiros e de pessoas desonestas, à margem do capitalismo propriamente dito... Além disso, Henry Ford rejeitou por muito tempo o recurso ao crédito bancário, obstinando-se em querer financiar os seus investimentos unicamente com o próprio capital” (R. Kurz, La fine della politica e l’apoteosi del denaro, Roma, 1997, p. 76-77; Die Himmelfahrt des Geldes, em “Krisis”, 16, 17, 1995).

A hipoteca antecipada do trabalho

No decurso do século XIX, esta concepção patriarcal dissolveu-se completamente, e o capital das empresas hoje recorre em medida crescente ao capital monetário, tomado de empréstimo junto ao sistema bancário. Isso significa que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto. Mas não são apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide, a crédito (ou a débito). Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo crescente, estão da mesma forma religiosamente envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre o futuro. E o Banco é o sumo sacerdote que ministra aos fiéis o único sacramento da religião capitalista: o crédito-débito.

Notas:

1.- Cf. Carta aos Hebreus 11,1 (Nota da IHU On-Line).

Veja também:

 

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Benjamin e o capitalismo. Artigo de Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU