A guerra de Putin e Kirill. “O pluralismo religioso nunca foi um problema para a democracia, mas hoje o pluralismo ético moral é para as democracias.” Entrevista com José V. Casanova

Vladimir Putin e Patriarca Kirill. (Foto: Wikimedia Commons)

22 Mai 2022

 

A Ucrânia está sendo palco de três guerras: a do Patriarcado de Moscou contra a Igreja Ortodoxa autocéfala da Ucrânia, e as da Rússia de Putin contra a ex-república soviética e contra a OTAN e o Ocidente. É o que explica nesta entrevista por telefone José V. Casanova (Valdealgorfa, Teruel, 1951), professor emérito de Sociologia da Religião e Teologia da Universidade de Georgetown (Estados Unidos) e um dos maiores especialistas mundiais do mundo ortodoxo.

 

A entrevista é de Alex Rodrigues, publicada por La Vanguardia, 15-05-2022.

 

Segundo ele, "a questão religiosa hoje é fundamentalmente uma questão moral. (...) No Ocidente e em grande parte do mundo aprendemos a conviver com o pluralismo religioso, mas ainda não sabemos conviver com o verdadeiro pluralismo ético-moral. E é isso que está em questão hoje, nas guerras culturais globais. Na sociedade americana, o pluralismo religioso nunca foi um problema para a democracia, mas hoje o pluralismo ético moral é um problema para a sociedade americana, assim como para muitas sociedades democráticas europeias".

 

A revista IHU On-Line, no. 388, publicou uma ampla entrevista com José V. Casanova, realizada quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, sob o título "As religiões estão se tornando cada vez mais globais". Para acessar a entrevista clique aqui.

 

Eis a entrevista.

 

Há uma dimensão religiosa na guerra da Ucrânia?

 

Sim, e é duplo. Por um lado, é uma guerra contra a Ucrânia porque o patriarcado de Moscou diz que é seu território canônico, que a Ucrânia faz parte da Rússia sagrada ou da Russkiy Mir e que, portanto, deve ser incorporada à Rússia. A outra dimensão é uma guerra entre a Rússia e a OTAN, o mundo ocidental. A ideia de que a Rússia está defendendo os valores tradicionais do cristianismo contra uma Europa decadente e o mundo ocidental que os abandonou em favor do liberalismo, do secularismo, dos direitos feministas, da homossexualidade...

 

A Rússia é o bastião da confissão cristã na Europa?

 

Mas a confissão cristã em um modelo tradicional. Eles queriam uma aliança com a Igreja Católica, daí a importância do diálogo com o Vaticano e com os protestantes evangélicos fundamentalistas americanos. Nesse nível, eles trabalharam duro no que é chamado de guerras culturais globais, especialmente nos direitos da família "cristã tradicional". E eles organizam congressos familiares com evangélicos americanos há 15 anos. Há uma aliança sobretudo entre a Igreja Ortodoxa Russa, os evangélicos americanos e grupos de católicos também conservadores, grupos que são contra o Papa Francisco e se juntaram a eles.

 

 

Eles têm o apoio de partidos populistas e de extrema direita e alguns governos, como a Hungria, ou em sua época Trump...

 

Sim, faz parte do processo. Mas é claro que, uma vez que essa guerra cultural se torna uma verdadeira guerra sangrenta, há baixas, como é o caso da Polônia, que estava mais ou menos naquele campo, e agora se mudou para o outro. A guerra complicou tudo, porque agora é muito difícil para qualquer um desses agentes fazer uma aliança com Putin. Mas essa era a ideia. Partidos populistas antieuropeus, e sobretudo anti-imigrantes, juntamente com antifeministas… O nosso Vox é o partido que se encaixa perfeitamente neste tipo de aliança.

 

O Vox seria o aliado do patriarcado russo e de Putin nessa guerra cultural?

 

Na guerra cultural, sim, na guerra real é muito difícil para esses partidos apoiarem a guerra... Também não é uma união perfeita entre Putin e a guerra. Há dois aspectos desse conflito. O Russkiy Mir já era usado como conceito por Putin antes da aliança com a Igreja Ortodoxa, mas originalmente ele só tinha a ideia de defender os falantes de russo na antiga União Soviética: Estônia, Ucrânia, etc.

 

 

Quando Putin sela sua aliança definitiva com o Patriarcado de Moscou?

 

A união entre a Igreja Russa e o regime torna-se mais forte a partir de sua segunda presidência. Mas a aliança definitiva foi selada dois anos depois, em 2012.

 

Casanova lembra que naquele ano Pussy Riot, grupo feminista de punk rock, invadiu a Catedral de Cristo Salvador em Moscou para pedir à mãe de Deus que livrasse o mundo de Putin. Esse ato provoca a aliança definitiva de Putin com o Patriarcado. Sua líder Maria Alyokhina, sob vigilância e prisão domiciliar, fugiu de Moscou há alguns dias disfarçada de entregadora de alimentos. 

 

É a partir desse momento que Putin alcança a aliança definitiva com o Patriarcado. Antes, Putin falava da Eurásia como um projeto e não nomeava a Igreja. Mas é muito significativo que ele tenha começado a fazê-lo após a invasão da Crimeia, em 2014.

 

A Ucrânia e a Rússia são dois modelos diferentes de relacionamento Igreja-Estado-Nação e Sociedade Civil?

 

Não no início, porque ambos vêm da União Soviética. O Soviete era um estado oficialmente ateu que impunha a secularização de cima, mas ao mesmo tempo aceitava a Igreja Ortodoxa Russa como a única Igreja. O que aconteceu na Ucrânia é que ela manteve um estado secular neutro que não apoia nenhuma igreja como igreja nacional. Existe um modelo de pluralismo religioso muito grande, mas igualitário, porque todas as comunidades religiosas fazem parte da Associação de Igrejas e Comunidades Religiosas da Ucrânia, que tem 15 membros. A presidência gira a cada seis meses e é realizada por qualquer uma das igrejas ou denominações. É uma associação civil, sem interferência do Estado. Por outro lado, a Igreja Russa não é oficialmente uma igreja estatal porque, sendo um império, tem outros grupos étnicos que não podem aceitá-la, mas se considera como a igreja étnica dos eslavos, e todos os eslavos devem ser afiliados com a Igreja ortodoxa russa.

 

 

O pluralismo religioso da Ucrânia se manifestou na revolução laranja de 2013 e na praça Maidan…

 

Sim, em Maidan foi mostrado que não havia uma Igreja Estatal nacional. Todos os grupos religiosos estavam juntos... E cada funeral para cada uma das vítimas, seja greco-católico, ortodoxo, armênio ou judeu, eles presidiam juntos. O que também chamou a atenção em Maidan é que as pessoas falavam russo e ucraniano com indiferença, sem questionar nada. Esse pluralismo religioso e linguístico é a base da formação de um Estado-nação civil territorial não étnico e é o que de alguma forma foi institucionalizado na Ucrânia democrática.

 

Revolução Laranja, de 2013. (Foto: Wikimedia Commons)

 

Algo que Moscou não aceita.

 

Isso levou a um cisma entre Constantinopla e Moscou. E também desde 2014, quando Moscou percebeu que o Patriarca de Constantinopla estava pronto para aceitar a reunificação das novas igrejas ucranianas sob sua jurisdição. Cada nação ortodoxa ou estado-nação tem uma igreja nacional patriarcal autocéfala, como a da Ucrânia que está em comunhão há quatro anos com o patriarca de Constantinopla, mas não com a de Moscou, que também está em conflito com a de Alexandria. É parte de uma guerra dentro do mundo ortodoxo sobre a Ucrânia. Na Ucrânia há duas guerras transnacionais. Além da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, há a guerra entre a Rússia e a OTAN pela Ucrânia e há a guerra jurisdicional entre Moscou e Constantinopla pela Igreja Ortodoxa Ucraniana.

 

 

E recorrer ao nazismo?

 

É a forma de mobilizar as pessoas. Se eles são nossos irmãos, “pequenos russos” na língua oficial russa imperial do século 19, como vamos aniquilá-los? Não podemos. Só podemos aniquilá-los se não forem livres porque os nazistas os dominaram. Se são nazistas, significa que não são livres e devem ser libertados. Essa lógica sustenta que você tem que destruí-los para libertá-los.

 

Que papel você acha que a Igreja Católica, o Papa Francisco, pode desempenhar?

 

A Igreja Católica só pode desempenhar um papel importante se realmente aceitar as Igrejas ucranianas como interlocutoras essenciais. O problema com o Papa não é que ele quisesse falar com Moscou. O problema com o Papa é que ele não quis falar com a Igreja Ortodoxa Ucraniana. Ele aceitou a chantagem de Moscou de que se eles falarem com a Igreja Ortodoxa Ucraniana é o fim do diálogo com Moscou. Toda vez que há um congresso ecumênico inter-religioso onde há bispos católicos e aparece o arcebispo Hilarion, representante da Igreja Ortodoxa fora da Rússia, nem os ortodoxos ucranianos nem os greco-católicos ucranianos podem comparecer. O Vaticano não pode trabalhar com a Rússia da mesma forma que os Estados Unidos e a Rússia trabalham com a Ucrânia. Os ucranianos finalmente têm o direito de serem seus próprios agentes. O problema é que agora vai ser difícil, porque isso se transformou em uma guerra entre a Rússia e a OTAN. Mas o Papa deveria ouvir menos os "latidos" das grandes potências, Rússia e OTAN, e mais os gemidos, os gritos de desespero e as vozes autênticas que vêm do povo ucraniano.

 

 

Ecumenismo...

 

Para a Igreja Ortodoxa Russa, o ecumenismo sempre foi reduzido ao que Antonio Spadaro SJ, editor de La Civiltà Cattolica, tem chamado de “ecumenismo do ódio”, que tem pouco a ver com ecumenismo religioso, e muito mais a ver com discrepâncias morais, especialmente em questões de gênero. Aqueles que estão conosco nessas questões ideológicas, com eles temos um diálogo estratégico ideológico e não religioso contra os inimigos comuns.

 

A Igreja russa nunca entrou no autêntico ecumenismo religioso, porque não aceita a ideia de um pluralismo religioso que pratica o que o Papa Francisco chama de cultura do encontro com o outro, com o cismático, o herege, o infiel, como interlocutor religioso. Eles nunca praticaram o ecumenismo religioso autêntico. Eles buscam, como Hilarion disse repetidamente, uma aliança estratégica com grupos religiosos conservadores para enfrentar o secularismo, o secularismo, o feminismo, a UE e o declínio do Ocidente. Este não é um diálogo teológico. E se vê no documento de Havana de 2016, quando o Papa e Kirill, o patriarca de Moscou, se encontraram: há muito pouco ecumenismo religioso ali. Há simplesmente um acordo geopolítico.

 

Papa Francisco e Patriarca Kirill em Havana, 2016. (Foto: Vatican Media)

 

Uma guerra cultural pela ordem moral, uau.

 

A questão religiosa hoje é fundamentalmente uma questão moral. Não na Ucrânia. Suas igrejas cristãs e as comunidades judaica e muçulmana não parecem estar obcecadas, ao contrário da Igreja Ortodoxa em Moscou, com conflitos morais sobre questões de gênero e direitos dos homossexuais. De fato, no Ocidente e em grande parte do mundo aprendemos a conviver com o pluralismo religioso, mas ainda não sabemos conviver com o verdadeiro pluralismo ético-moral. E é isso que está em questão hoje, nas guerras culturais globais. Na sociedade americana, o pluralismo religioso nunca foi um problema para a democracia, mas hoje o pluralismo ético moral é um problema para a sociedade americana, assim como para muitas sociedades democráticas europeias.

 

 

Mas o pluralismo ético moral leva a polarizar as sociedades.

 

Sim, e de uma forma que o pluralismo religioso não tem mais. Estamos em uma polarização moral, fundamentalmente em questões de gênero, que foi a revolução moral mais importante da história da humanidade nos últimos cinquenta anos. As mudanças foram muito drásticas e as sociedades estão respondendo a elas. Por exemplo, na Holanda, não se poderia imaginar facilmente que isso se tornaria um ponto de conflito. No entanto, na Holanda, um partido liberal que surgiu inicialmente como um partido anti-islâmico defendendo os direitos dos homossexuais, rapidamente se tornou um partido anti-imigrante, xenófobo, anti-muçulmano, defendendo a cultura (não a religião) cristã, como a autêntica cultura nativa europeia. Tal posição, encontrada em toda a Europa hoje, não é frequentemente defendido por europeus cristãos praticantes, mas sim por europeus pós-cristãos seculares. Por meio dessa transformação, as sociedades são polarizadas.

 

O mundo parece estar virado de cabeça para baixo.

 

No início da guerra, eu esperava que estivéssemos diante de uma oportunidade única, um kairos global, um momento histórico propício à criação de uma nova ordem internacional baseada em regras acordadas que pudessem ser mantidas pela comunidade internacional. Uma situação como a atual em que a Rússia, superpotência membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é a que viola violentamente as regras do sistema internacional e também pratica a chantagem nuclear, é claramente um momento que nos obriga a refletir sobre a necessidade de reformar o sistema global.

 

Mas o Ocidente estaria errado se tivesse a ilusão de que estamos em uma nova versão da guerra fria bipolar entre o mundo ocidental livre e democrático e o outro mundo "autoritário". Grande parte do chamado “Sul global” não tem interesse nesta guerra e não vai tomar partido nem a favor nem contra a Rússia. O mundo neutro nesta guerra, a nível populacional, é muito maior do que o representado pelo Ocidente. A questão final será qual será a posição da China e da Índia.

 

A Rússia, com a guerra, apresenta-se como uma potência.

 

O problema fundamental é que a União Soviética se tornou a Federação Russa sem que houvesse um momento de reflexão histórica sobre seu passado. Quando Putin diz que a dissolução da União Soviética foi a maior catástrofe da história do século 20, isso leva a uma recomposição do império, sem reflexão e sem memória histórica crítica.

 

 

O problema é que a Rússia não é uma nação, é um império. Zbigniew Brzezinski já o disse: a Rússia sem a Ucrânia é uma nação; A Rússia com a Ucrânia é um império. A Rússia não quer ser uma nação europeia como as outras, quer ser um império dentro da Europa. Em sua primeira presidência, Putin buscou um papel global para a Rússia como parte da Eurásia. Mas agora tenho medo que ele queira fazer parte da Europa contra a própria ideia de Europa. Quer ser uma potência europeia para destruir a União Europeia.

 

Leia mais