A África é a grande derrotada na batalha do trigo ucraniano

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26 Março 2022

 

Não há apenas o gás, mas também o trigo e o milho. 85% da produção mundial de trigo vem de dez países, entre os quais Rússia e Ucrânia nas primeiras posições, junto com a China, os EUA e a Índia.

 

A reportagem é de Mario Giro, publicada por Domani, 24-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Os países árabes, a Europa, mas também a África ou o Brasil dependem desses produtores. A guerra em curso entre dois dos maiores exportadores torna o mercado global de grãos imprevisível e impõe uma forte pressão sobre os preços.

Segundo a diretora do FMI, Kristalina Georgeva, a invasão da Ucrânia "coloca em risco a segurança alimentar global", enquanto para a ONU estão em risco mais de 40 países africanos e menos desenvolvidos, que importam pelo menos um terço de seu trigo da Ucrânia e da Rússia, dos quais 18% até o 50%.

Todos podem sentir pessoalmente a crise alimentar: na Itália, o pacote de meio quilo de massa saltou de 90 centavos para 1,40 euros. A União Europeia é um grande produtor de trigo e milho, mas não satisfaz as suas próprias necessidades.

Por exemplo: a Itália importa 64% do trigo e 53% do milho, em particular da Hungria (mais de 35 por cento do total das importações italianas).

No entanto, desde o início da guerra, Budapeste suspendeu as exportações (contra as regras do mercado único europeu) e começou a estocar. Os Estados Unidos também estão limitando suas vendas para o exterior.

A produção da Ucrânia também caiu porque os portos do Mar Negro estão fechados e a navegação quase interrompida. O mesmo vale para o milho – essencial para a alimentação animal.

Não é só a guerra que pesa nos custos ou na produção de cereais: há a crise climática (diminuição da produção canadense); a pandemia (bloqueios logísticos devido aos No-vax em vários países); a reserva da China (que em 2021 estocou 60% da produção mundial).

 

Preços astronômicos

 

Para esclarecer: em 2021 uma tonelada de trigo custava 180 euros e a de milho 175. Hoje custam, respectivamente, 440 e 314 euros, como alerta alarmado - entrevistado por Luca Telese no Tpi – o presidente da Filiera Italia, Luigi Scordamaglia.

Os aumentos estão se ampliando para carnes, criadouros, laticínios, ovos e assim por diante. O cruzamento entre o aumento dos preços do setor agroalimentar e os da energia fará com que muitas empresas agrícolas na Europa fechem, não tendo condições de fazer frente a tal stress econômico.

A guerra deu o golpe de misericórdia: basta lembrar que a Rússia e a Ucrânia, juntas, respondem por 30% da produção mundial de grãos, 20% do milho e 80% do óleo de sementes.

O conflito coloca um dilema para a Europa: mesmo que se continue importando gás da Rússia, deve considerar a possibilidade de um aperto nos cereais. Assim como nos últimos vinte anos cometeu um erro na política energética (contando apenas com o gás russo sem passar para as energias renováveis), a Europa também errou na política agroalimentar, desmantelando produções inteiras de cereais. No final, vai superar, mas pagando mais.

Por outro lado, quem sofrerá mais que os outros será a África e o Oriente Médio. Até agora na África Ocidental as importações de trigo vieram da França, mas não é garantido que Paris possa continuar exportando metade de toda a sua produção como faz agora.

Já há algum tempo, o trigo russo desafia o de Paris com custos mais baixos e a Argélia já passou a se abastecer totalmente com Moscou. Da "batalha do trigo" deve-se esperar um aumento de custos e a retomada das "revoltas do pão", como já aconteceu no passado.

 

Revoltas árabes

 

As revoltas árabes de 2011 também foram o efeito do aumento do preço do pão: naquela época a tonelada de trigo havia subido para 280 euros. Não surpreende que muitos países africanos estejam agora olhando para a Rússia, que se tornou o maior exportador mundial de trigo nos últimos 20 anos (a China continua sendo o principal produtor, mas precisa importar).

Até o fim da Guerra Fria, a URSS dependia das exportações estadunidenses de cereais: agora está acontecendo o inverso. A modernização da agricultura russa valorizou terras pouco ou mal exploradas, tanto que Moscou havia acariciado a ideia de uma coalizão de produtores de cereais (tipo a OPEP) com o Cazaquistão e a Ucrânia.

Já hoje a Rússia é o primeiro exportador de trigo para Turquia, Líbia, Síria (nas áreas controladas pelo regime de Assad nunca houve falta de pão), Argélia, Irã e Egito: o valor do mapa geopolítico desse comércio salta imediatamente aos olhos.

A África espera que a Rússia não tenha de sofrer os choques econômicos do aumento dos preços de mercado e sobretudo as consequências sociais: é assim que se explicam muitas abstenções africanas na assembleia geral sobre a moção que condena a invasão da Ucrânia.

Em particular, o Egito e a Argélia continuam muito vulneráveis às variações de preços porque precisam importar quase todas as suas necessidades em trigo e outros cereais. No entanto, numerosos países africanos também são clientes de Kiev e estão tentando sobreviver.

A China continua sendo o maior produtor mundial, mas está longe a autossuficiência. Também para Pequim vale o que já aconteceu na África subsaariana e em outras partes da Ásia: a ocidentalização dos consumos provoca um aumento exponencial da necessidade de pão e dos derivados de farinha.

Outros cereais, como o painço ou o sorgo, eram tradicionalmente consumidos na China e na África. A dieta tradicional chinesa - como a de muitos países asiáticos - girava em torno da economia do arroz, mas hoje tudo mudou e as autoridades chinesas precisam atender uma demanda crescente por trigo.

A situação mais frágil continua a ser a da parte subsaariana do continente africano. Segundo os dados de Nigrizia, em 2020 os países africanos importaram produtos agrícolas da Rússia no valor de 4 bilhões de dólares, entre os quais cerca de 90% dos grãos consumidos.

Depois do Egito, os maiores importadores foram Sudão, Nigéria, Tanzânia, Argélia, Quênia e África do Sul. Por sua vez, a Ucrânia exportou produtos agrícolas no valor de quase US$ 3 bilhões para a África, dos quais 48% foi trigo, 31% milho e depois óleo de girassol e assim por diante.

O aumento dos preços do setor agroalimentar atingiria uma África já provada pela crise induzida pela pandemia à qual se soma a atual seca. Segundo os especialistas, o preço do pão poderia aumentar em 30% em vários países do continente, provocando instabilidade política e crises violentas.

Nem todos os países africanos e do Oriente Médio podem arcar com o programa de subsídios do Egito, que permite que 70% da população compre pão a preço subsidiado. No Cairo também, o preço do pão não subsidiado já subiu 50%.

O aumento dos preços poderia prejudicar o Líbano, que está passando por uma grave crise política e econômica e que importa mais de 80% de seus cereais da Ucrânia. Dois outros países em sério risco são a Líbia e a Somália, que também dependem de Kiev.

 

Quem corre o risco de carestia

 

Há um aspecto multilateral da crise dos preços agrícolas: segundo o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos, David Beasley, em 2021 o PAM comprou 50% de suas reservas de grãos da Ucrânia e da Rússia e no futuro poderia ter dificuldade para encontrar novos exportadores.

A Turquia é um grande importador da Rússia, mas não teme reduções graças às suas boas relações e ao seu atual papel de mediação.

O que preocupa Ancara é o aumento dos preços, já em alta antes da guerra, que pressiona uma economia em fase de piora. É complexo elaborar previsões precisas sobre os efeitos da guerra na Ucrânia sobre o fornecimento de grãos e produtos alimentares em geral.

Muito dependerá da duração do conflito, da capacidade dos ucranianos de proceder ao plantio em tempos de guerra e depois da colheita; das rotas de transporte e expedição dos suprimentos, do impacto das sanções sobre a Rússia.

Na longa lista de países em risco de carestia também estão Congo, Burkina Faso, Sudão e Sudão do Sul. Em alguns casos, a emergência de grãos poderia se transformar em uma catástrofe, como no Iêmen em guerra, que tem mais de 17 milhões de pessoas que precisam de assistência alimentar e uma parcela crescente da população em níveis de verdadeira fome. Atualmente, mais de 2 milhões de crianças em todo o país estão gravemente desnutridas, incluindo quase meio milhão em estado agudo e em risco de vida.

 

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