“Não consigo imaginar que haverá plantio em meio à guerra. A questão é como será daqui para a frente”. Entrevista especial com Sílvio Porto

Debate sobre efeitos da guerra no Brasil é hegemonizado pela discussão do mercado internacional, adverte o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB

Foto: Vatican Media

Por: Patricia Fachin | 23 Março 2022

 

Ao comentar os efeitos da guerra entre a Ucrânia e a Rússia no BrasilSílvio Porto afirma que se o país ampliar a exportação de commodities, "vai prejudicar ainda mais o mercado interno". Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU via Zoom, o ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab critica o modo como o tema tem sido discutido no país, "hegemonizado pela discussão do mercado internacional". Segundo ele, embora a guerra tenha escancarado "a dependência brasileira brutal da importação de fertilizantes", que é da ordem de 85%, e demonstrado novamente que o "Estado brasileiro" trabalha "em função dos interesses privados", a discussão a ser feita no país não pode ser reduzida à dependência tecnológica ou à produção de insumos. "Eu tenho dificuldade de fazer esse diálogo porque, na minha avaliação, essa é uma inversão da pauta. Discutir a questão tecnológica da produção agrícola desassociada do aspecto social, do interesse público, é um grande equívoco", pontua.

 

A concentração fundiária, consequência do modelo agroexportador de commodities, é o problema central do Brasil e "está comprometendo a nossa soberania alimentar e a nossa capacidade de abastecimento de alimentos no mercado interno, reduzindo a área de feijão, arroz e mandioca", adverte.

 

Sílvio Porto também comenta como a negociação das commodities na bolsa de valores tem alterado "ficticiamente o mercado físico", repetindo nos dias de hoje o que ocorreu na crise internacional de 2008, contribuído para inflação dos alimentos, e chama a atenção para os riscos de uma crise alimentar global como efeito da guerra. "Os grãos que foram colhidos têm dificuldade de escoamento em função da guerra e a questão é como será daqui para a frente: não consigo imaginar que haverá plantio em meio à guerra. O problema será grave dentro da Ucrânia, com aumento da fome e da pobreza, e também entre aqueles países que se abasteciam dela", conclui.

 

Silvio Porto (Foto: Arquivo pessoal)

 

Sílvio Porto é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel, mestre em Agroecologia pelas Universidades Internacional da Andaluzia, de Córdoba e UPO, com diploma revalidado no Brasil pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural - PGDR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, e doutorando em Meio Ambiente e Sociedade pela Universidade Pablo de Olavide - UPO, em Sevilha. Atualmente é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB.

 

IHU – Ao analisar os possíveis efeitos da guerra da Ucrânia e da Rússia no Brasil, o senhor tem chamado a atenção para a dependência tecnológica do modelo de produção brasileiro, sobretudo em relação às commodities. Pode desenvolver essa ideia? Como a guerra pode afetar o país ainda mais em relação a essa questão?

 

Sílvio Porto – A produção brasileira, em termos de grãos, está focada basicamente em soja e milho e, depois, em cana-de-açúcar e café. Essas são as commodities mais expressivas da produção nacional. A produção de carne, de outro lado, tem uma relação de interdependência com a pastagem e com a produção de milho e soja, mas sobretudo milho, que é a base das rações. Em termos de modelo e de padrão de produção, o Brasil – e não só ele – reproduz o padrão internacional da Revolução Verde, que vem da modernização conservadora da agricultura. Esse modelo é altamente dependente de insumos, sobretudo de fertilizantes e de agrotóxicos e de sementes transgênicas, no caso do milho e da soja.

 

 

Dependência internacional

 

A guerra escancarou a dependência brasileira brutal da importação de fertilizantes. Segundo o Ministério da Agricultura, essa dependência é da ordem de 85%. Ou seja, a cada ano o Brasil amplia a área plantada, amplia o consumo de fertilizantes e, consequentemente, a importação desses produtos. Três anos atrás, tínhamos uma dependência menor desses produtos, mas, com o atual governo, a situação piorou porque não se fez absolutamente nada a respeito. O anúncio por parte do governo do Plano Nacional de Fertilizantes para reduzir a dependência internacional foi hilário, especialmente depois de o governo ter vendidos unidades da Petrobras que estavam destinadas à fabricação de nitrogenados. Desde o governo Temer não só não se deu segmento às unidades como, inclusive, elas foram privatizadas.

É importante entender que, independentemente de o fertilizante ser produzido ou não no Brasil, há uma dependência tecnológica, da mesma forma que ocorre com as sementes transgênicas. Elas são produzidas no Brasil, mas há uma relação de dependência tecnológica porque o gene da transgenia está atrelado a uma propriedade intelectual, que está atrelada a uma grande empresa, que está atrelada a um produto químico, a um princípio ativo, como o glifosato, que gera toda a dependência tecnológica. Então, mesmo que a Embrapa participe do desenvolvimento de novas variedades transgênicas, o padrão de dependência tecnológica permanece.

 

Concentração fundiária

 

O que se vê cada vez mais é o Estado brasileiro trabalhando em função dos interesses privados. Com isso, há uma concentração fundiária no país, uma concentração de poder nas grandes corporações de insumos e nas grandes redes de supermercado. Isso conforma uma enorme dependência econômica e tecnológica, o que faz com que o país, em que pese todo o seu potencial agrícola, tenha um padrão de produção e consumo altamente dependente de ultraprocessados. Consequentemente, há um processo de incapacidade de reagir ao aumento dos preços porque não se tem estoques reguladores e não existem políticas de Estado via Plano Safra para fomentar a produção de alimentos para o mercado interno. É essa conformação que é o centro deste debate.

 

Oportunidades e enfrentamento às mudanças climáticas

 

Este momento seria uma grande oportunidade em termos mundiais para reagir ou estabelecer um plano de enfrentamento às mudanças climáticas porque se sabe que o setor agropecuário, em decorrência da mudança no uso do solo, da grilagem de terras, do desmatamento, das queimadas, do uso de insumos e do consumo energético de combustível fóssil, gera emissão de gases de efeito estufa e compromete ainda mais o processo de mudanças climáticas. Na verdade, deveríamos estar discutindo uma perspectiva de reforma agrária, de produção em bases agroecológicas, de aproximação dos mercados e, portanto, de valorização dos mercados locais e da produção camponesa, aproximando a produção das grandes cidades, das periferias e das populações de baixa renda que vivem em situação de fome e miséria.

 

 

IHU – Muitas críticas estão sendo feitas neste momento em relação à dependência brasileira de fertilizantes, uma vez que o país é um grande produtor de grãos. Como você avalia, de um lado, essas críticas e a própria dependência e, de outro, a própria crítica que é feita, tendo em vista a discussão sobre o modelo agrícola que se deseja, que visa, inclusive, não utilizar determinados tipos de fertilizantes?

 

Sílvio Porto – Atualmente, existem grandes áreas de plantio de cana-de-açúcar e de soja – da ordem de cinco a 20 mil hectares – que produzem com insumos alternativos, como os chamados bioinsumos. No Rio Grande do Sul existem lavouras de 400 hectares de soja orgânica. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST produz mais de três mil hectares de arroz orgânico. No Centro-Oeste há grandes fazendas produzindo com outras bases tecnológicas em relação aos fertilizantes, o que não quer dizer que não estejam usando herbicidas. É difícil que uma produção em larga escala não dependa dos herbicidas. Mas, para mim, a questão é justamente esta: quanto maior a área, é mais difícil falar em substituição de herbicidas. Cerca de 2/3 da produção de milho e arroz e mais de 70% da produção de soja estão concentradas nos estabelecimentos rurais que possuem área acima de 2,5 mil hectares. O fato é que temos uma concentração da produção em grandes propriedades e em grandes lavouras.

Há soluções técnicas que permitem ter uma outra racionalidade no manejo dos agroecossistemas, mas o problema é que quando se trata de produção em grande escala é muito difícil sair do padrão industrial. Se torna mais complexo e difícil fazer o manejo em grandes áreas do que em uma escala agroecológica. Essa é a questão. Vamos imaginar que o agricultor possa usar adubação verde como forma de substituir a ureia ou a amônia, que são os principais fertilizantes nitrogenados usados nos plantios de milho. Mas a eficiência de absorção para a gramínea é muito diferente da absorção para leguminosa. Algumas lavouras já têm utilizado microrganismos para a absorção de nitrogênio, mas a eficiência é menor e, portanto, há que ter um aporte, seja orgânico ou sintético. É evidente que o sintético acaba sendo a saída em função exatamente da produção em larga escala e do manejo. O ponto que sempre volta à discussão é como manejar uma área de dois mil hectares, de cinco mil hectares, dez mil hectares ou acima de 100 mil hectares, como são as áreas de empresas como a Amaggi ou a Scheffer, que têm 300, 400 mil hectares. O fato é que nessa escala se torna muito difícil.

Mas mesmo que fosse viável fazer esse tipo de manejo, é inaceitável essa concentração fundiária e a concentração da produção em lavouras dessa magnitude por uma questão de justiça. A Constituição diz que a propriedade deve cumprir a sua função social e ambiental e, para cumprir a sua função social, é inadmissível ter esse nível de concentração fundiária. Ao mesmo tempo, 50% dos estabelecimentos rurais brasileiros têm menos de dez hectares, enquanto 1% dos estabelecimentos rurais brasileiros ocupa 47,5% da área total dos estabelecimentos. Então, essa questão precisa estar presente no debate porque não se trata de um debate simplesmente tecnológico. É um debate de concepção de desenvolvimento: que tipo de uso e de ocupação do solo será feito no país, conforme determina a Constituição?


A narrativa hegemônica é a do agronegócio. É por isso que não se debate reforma agrária nem mudança da estrutura e de modelo. Quem reforça essa narrativa é a mídia hegemônica e as organizações que dominam, sejam elas do governo ou da bancada ruralista. Elas têm a hegemonia dessa narrativa e estão defendendo um mesmo modelo de produção.

 

 

IHU – Em relação às críticas feitas à dependência de fertilizantes, retomou-se a discussão sobre a produção de bioinsumos ou alternativas para que o país produza seus próprios fertilizantes, reduzindo a dependência externa. Como avalia esse tipo de discussão?

 

Sílvio Porto – Eu tenho dificuldade de fazer esse diálogo porque, na minha avaliação, essa é uma inversão da pauta. Discutir a questão tecnológica da produção agrícola desassociada do aspecto social, do interesse público, é um grande equívoco. Existem soluções técnicas, sim, e são várias as referências técnicas em grandes, pequenas e médias empresas, em médias propriedades e entre pequenos produtores. Isso não resolve o problema da questão fundiária porque há uma dependência da produção de commodities no país.

 

A (re)volta da fome no Brasil. Desigualdades alimentares e lutas por justiça alimentar

 

 

Dependência de commodities e soberania alimentar



A dependência da produção de commodities está comprometendo a nossa soberania alimentar e a nossa capacidade de abastecimento de alimentos no mercado interno, reduzindo a área de feijão, arroz e mandioca. Essa, para mim, é a questão central, a premissa de qualquer discussão.

O campo da agroecologia tem amplo domínio sobre o uso de microrganismos, sobre enriquecimento a partir de biomassa, manejo agroecológico do solo. Há uma consciência de que é fundamental trabalhar o solo como algo central do sistema, que precisa ter uma boa estrutura, fertilizantes disponíveis, capacidade de retenção de água, condições de ofertar uma estrutura que permita o bom desenvolvimento das plantas. No campo agroecológico há muita coisa não sistematizada, é verdade, mas, de outro lado, há muito domínio de conhecimento, inclusive desenvolvido por agricultores e agricultoras a partir da prática do trabalho, diferenciando as ações de bioma para bioma. Mas, para que as coisas recebam uma nova roupagem, elas vão sendo rebatizadas e aí surgem os bioinsumos, a bioeconomia, ou seja, são criados conceitos e definições que tendem a criar um processo de hegemonização do debate, sem distinguir as diferenças e o que é, de fato, central nesse debate político.

 

 

Não se trata de discutir bioinsumos ou fertilizantes de uma forma genérica. O manejo dos agroecossistemas feito a partir dos modos de vida das populações tradicionais e indígenas é a essência do que estamos falando: uma forma de produção agrícola sustentável, que garante a reprodução e a conservação da biodiversidade para as populações futuras. É uma cilada entrarmos no debate do bioinsumo ou dos fertilizantes, reduzindo a discussão, como se faz também no debate sobre as mudanças climáticas, em que se reduz a questão ao carbono, como se o problema fosse apenas uma questão de descarbonizar – esses debates são muito pobres. A questão é que se o Código Florestal autoriza a supressão de 80% do Cerrado, o que sobrará do Cerrado? Ele ficará restrito a que área?

 

Feiras Agroecológicas. Para quê? (Laura Neis e Marcelo Fernandes Ritter)

 

 

IHU - Outras análises têm refletido sobre o papel que o Brasil poderia ocupar no mercado internacional de soja e grãos em decorrência dos efeitos da guerra. O seu ponto argumentativo é que se o Brasil ocupar um espaço mais significativo na exportação de grãos, isso implicará em maior pressão sobre os bens naturais no país. Um papel mais proeminente do Brasil no mercado internacional não é desejável? Pode explicar seu ponto?

 

Sílvio Porto – Tem uma questão muito interessante: o debate brasileiro é hegemonizado pela discussão do mercado internacional. Se formos analisar o quanto da produção mundial de grãos circula no mercado internacional, veremos que o percentual é muito pequeno, com exceção da soja. No caso do milho, a produção mundial é de 1,2 bilhões de toneladas, mas somente 204 milhões de toneladas, ou seja, 17% da produção mundial, circula no mercado internacional. No caso do trigo, a produção mundial é de 781 milhões de toneladas, mas o que circula no mercado internacional é ¼, ou seja, 26% da produção. A produção de arroz é de 745 milhões de toneladas, e o que circula no mercado internacional é 10%. A soja é que é o ponto fora da curva: a produção é de 355 milhões de toneladas e 47% disso vai para o mercado internacional.

A soja tem uma relevância muito grande no mercado internacional porque é a proteína mais barata, e por isso ela é muito demandada e utilizada não somente para a produção de ração, mas para outros usos na alimentação humana, sobretudo na indústria de alimentos. Mas no caso do milho, menos de 20% do que é produzido circula no mercado internacional.

 

 

Um trabalho de 2019 foi atualizado recentemente pela ETC Group, mostrando que 70% dos alimentos produzidos no mundo são produzidos pela agricultura camponesa. Na China e na Índia, que correspondem a 40% da população mundial, a base de produção tem uma participação camponesa muito grande. Na América Latina não é diferente. Estou desenvolvendo um trabalho com a Articulação Nacional de Agroecologia a partir de 12 experiências no Semiárido brasileiro, e é impressionante observar que com todas as restrições e dificuldades de plantio na região, em cada experiência, identificamos 40, 50 ou até mais de 70 produtos sendo comercializados. A diversidade existente mesmo em uma condição de restrição hídrica como a que é imposta pelo semiárido. Isso mostra que precisamos deixar de ser reféns da monocultura, de aves, suínos e bovinos. A nossa produção gira em cima de oito ou nove produtos.

Voltando à sua questão, o Brasil tem, sim, condições de avançar, e as projeções oficiais do Ministério da Agricultura desde o debate da crise de 2008 vão nessa direção. O governo, junto com os ruralistas, tem surfado nessa onda de “vamos alimentar o mundo”, conforme também é assumido pelo Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO. Mas alimentar o mundo com o quê? Com soja?

O Brasil produz cerca de 73 milhões de hectares, juntando todos os principais produtos, e mais da metade disso, 40 milhões de hectares, são destinados à soja. Cerca de 20 milhões de hectares são destinados à produção de milho, mais 9 milhões de hectares à cana-de-açúcar. Não é possível convivermos com essa situação porque temos efetivamente grandes desertos verdes, grandes produções de commodities ou eucaliptos, como se vê no Espírito Santo, Minas Gerais e no sul da Bahia, além da pastagem. E onde estão a agricultora camponesa, os indígenas, a agricultura familiar? Estão sendo ameaçados pelo PL da Mineração.

 

 

IHU – A partir desses dados, diria que o risco de uma crise alimentar global, como tem sido anunciado, é real?

 

Sílvio Porto – É real porque 80% da importação de trigo do Egito vem da Ucrânia e da Rússia e porque o Norte da África e o Chifre da África, onde estão os países super pobres, como Burundi, Uganda, Etiópia, que já são historicamente afetados, e o Oriente Médio, como Afeganistão e Síria, têm uma dependência muito grande do trigo que sai da Ucrânia e da Rússia. Na África também há uma dependência do milho. Essa região, sem dúvida, já está sofrendo e sofrerá muito mais de desabastecimento. Se as sanções em relação à Rússia afetarem a exportação de grãos, sobretudo no caso do trigo, isso será seríssimo porque será inevitável não haver uma elevação ainda maior dos preços, como já está ocorrendo.

 

 

Elevação dos preços

 

Agora, é importante dizer o seguinte: a elevação dos preços dos fertilizantes e das commodities agrícolas não aconteceu agora; ela já vinha em um processo de ascensão desde o ano passado. A partir de setembro do ano passado houve uma mudança no perfil de investimento dos contratos das bolsas de Chicago e Nova Iorque, com um deslocamento muito forte para as commodities agrícolas. Isso aconteceu no pós-crise de 2008 e volta a acontecer agora.

 

Financeirização e efeitos sobre a estrutura agrária brasileira

 

 

Qual é o grande problema disso? Desde os anos 1990 houve uma mudança na legislação dos processos de aplicação na bolsa de valores que desvinculou o mercado financeiro do mercado físico. Isso gera o seguinte efeito: se a produção de soja foi de 350 milhões, o contrato comercializado em bolsa pode ser de dois bilhões de toneladas, ou seja, não há nenhuma correspondência com o fato físico e o que é comercializado na bolsa. Mas o problema é que o valor da bolsa interfere diretamente no mercado físico e eleva ficticiamente os preços do mercado físico. Foi isso que aconteceu de setembro para cá com as commodities agrícolas.

Por consequência, sempre que há deslocamento de preço para cima, o custo dos fertilizantes e agrotóxicos também aumenta. Só que no caso dos fertilizantes e agrotóxicos, eles estão afetados pelo problema da logística mundial, que tem atrasado a movimentação de cargas em função de todo o problema da pandemia. No caso específico dos nitrogenados, houve uma elevação muito expressiva dos preços em função de que a China está em um movimento de redução do consumo de carvão, passando a consumir mais gás natural. O gás natural é a principal base para a produção de adubos nitrogenados. A Rússia é uma grande produtora de nitrogenados porque ela tem essa base e é uma grande exportadora de gás para a Europa, sobretudo para a Alemanha. O fato é que a elevação do gás natural no mercado internacional consequentemente elevou o preço dos adubos nitrogenados e, na esteira disso, foram elevados os preços do fósforo, do potássio, do glifosato e de outros produtos.

Pelas análises da Companhia Nacional de Abastecimento - CONAB, observamos que de 2020 para 2021 houve um forte crescimento no custo de produção independentemente do conflito entre Rússia e Ucrânia. É importante ter isso claro para ver que a crise acirra o problema, mas não é a origem dele.

 

IHU - Nas guerras, nem todos os países saem perdendo com as restrições ou sanções econômicas e políticas. Quais setores se beneficiam e quais são prejudicados por causa da guerra?

 

Sílvio Porto – A elevação do preço das commodities acaba sendo um estímulo à produção, ao aumento da área plantada e das exportações para os países exportadores, sobretudo aqueles que exportam trigo, porque a Rússia é o terceiro maior produtor e um dos maiores exportadores. Os EUA talvez sejam o primeiro grande interessado nisso tudo e um dos maiores exportadores no mercado internacional, assim como o Canadá e os países da União Europeia e a Austrália. Todos esses países tendem a ocupar o espaço da Rússia.

 

 

Produção de trigo

 

Mas qual é o problema disso? No ano passado já existia uma variação no preço do trigo em função do aumento significativo do custo de produção. A produção de trigo sempre enfrentou o problema da baixa rentabilidade e, no ano passado, a margem da produção que estava sendo plantada no hemisfério norte estava basicamente zero. Então, independentemente da guerra, a elevação do custo de produção já poderia ser um desestimulo à produção no curto prazo, porque ela não está gerando renda líquida. Se é assim, por que produzir?

A tendência seria reduzir o uso de insumos, sobretudo de fertilizantes, para ter menor custo, o que consequentemente, no modelo atual, representa menor produtividade. E menor produtividade aumenta ainda mais os custos. Então, diria que no balanço geral ninguém ganha com essa guerra. A tendência é que todo mundo vai perder nessa história.

 

 

Desabastecimento e inflação

 

O problema do desabastecimento ou o impacto sobre os preços pode gerar um problema sério em todos os países: a inflação. Os EUA acabaram de aumentar os juros exatamente no sentido de tentar frear o aumento de inflação. O Brasil está aumentando os juros de forma equivocada porque a inflação aqui não é por uma questão de demanda. A lógica macroeconômica dessa visão torpe feita a partir dos neoliberais é aumentar o juro para reduzir a demanda. Mas que demanda, se estamos em uma situação de alta crise econômica, miséria e fome? O que o aumento dos juros significa no Brasil? É um aceno para o mercado financeiro que, diga-se de passagem, estava desembarcando ou dando sinais de talvez não apoiar a reeleição do presidente. Isso significou um aumento brutal do custo público no pagamento da dívida. A tendência é que o Brasil, em função dos patamares dos juros, vai desembolsar algo perto de um trilhão de reais para o pagamento dos juros da dívida pública.

 

 

IHU - Outro ponto que vem sendo discutido é a hiperinflação. Quais são os reais riscos de chegarmos a essa situação e como esse fenômeno pode aumentar ainda mais a desigualdade social no globo?

 

Sílvio Porto – O Brasil passou por hiperinflação nos anos 1980 e três componentes estavam associados na ocasião: aumento da inflação, o aumento dos preços das commodities e o aumento do gasto público. Não quero dizer com isso que sou defensor do teto de gastos, mas claramente o que vemos mais uma vez, por várias medidas equivocadas por parte do governo, é a tentativa de resolver o problema a partir de renúncias fiscais. É isso que está sendo feito com a tentativa de resolver a questão do aumento do preço dos combustíveis. Isso vai aumentar o gasto público sem resolver o problema. O pacote de benesses que o governo está lançando visa as eleições. Tudo isso tem um brutal impacto sobre os gastos públicos.

Se o governo adotasse essas medidas para efetivamente fazer com que a economia reagisse, aplicando medidas em setores estratégicos da economia, isso seria uma coisa. Mas fazer isso para enxugar gelo é um problema. Essas ações colocam as contas públicas em um contexto bastante complexo. Não sei se vai haver uma hiperinflação porque, tecnicamente, hiperinflação é a explosão da inflação no curto prazo. Isso arrebentaria com o Brasil, mas acho que não chegaremos a tanto. Mas que a inflação geral e a de alimentos continuará crescendo, não tenho dúvidas.

 

 

IHU - Além dos efeitos relativos à inflação, à crise alimentar e ao aumento da dívida pública, que outros efeitos a guerra pode gerar para o Brasil e a América Latina?

 

Sílvio Porto – Como o Brasil tem um padrão de produção de alta dependência tecnológica, a não importação de fertilizantes significa um impacto direto sobre a produtividade. Certamente não haverá, no curto espaço de tempo, uma resposta para enfrentar essa questão. A tendência é que tenhamos uma queda de produtividade e de produção. Esse é um fator.

O Brasil pode perder espaço em relação à exportação, ou, se seguir exportando o que exporta, vai prejudicar ainda mais o mercado interno. Há uma reclamação por parte de alguns setores sobre a dificuldade e a lentidão na importação de milho da Argentina e do Paraguai. Olha que absurdo. O Brasil está para colher 112 milhões de toneladas de milho – tenho dúvidas se esse número vai se confirmar, mas essa é a projeção que o país está fazendo. Se o Brasil colher 100 milhões, que já são 15 milhões a mais do que o valor do ano passado, em função do problema da estiagem, o país vai ter um superávit de 40 milhões de toneladas. Em que pese o Brasil ter uma produção muito expressiva e acima do consumo interno, o fato de não ter armazenagem suficiente, de não ter estoques públicos e uma política de regulação desse mercado fez com que o país entrasse em um processo de descompasso de abastecimento. Os setores de aves e suínos estão totalmente vendidos e esses setores estão ferrados. As grandes empresas, que têm boa capacidade de armazenagem, conseguem comprar na safra e estocar para o período da entressafra, mas os demais, as pequenas empresas, vão quebrar e desaparecer. A consequência disso é uma concentração ainda maior da produção em poucas empresas.

 

 

IHU – Como a guerra pode alterar as perspectivas da transição energética, já que alguns países europeus cogitam o reinvestimento em fontes fósseis?

 

Sílvio Porto – Não sou especialista nessa questão, mas pelo que tenho acompanhado, a avaliação é que há uma possibilidade de a Europa retroceder na transição energética ou, o que é pior, voltar a investir em termelétricas, que seguem o pior caminho, com o uso de carvão e diesel, que são péssimos. Agora, o Irã e a Venezuela passam a ser países estratégicos para os EUA, a ponto de estarem sinalizando a retirada das sanções, as quais nunca deveriam ter sido aplicadas.

A Europa, e sobretudo a Alemanha, diz que quer superar a dependência de gás da Rússia, mas o problema é como fará isso. A tendência é que façam, mas deem um passo atrás no sentido de consumir mais combustível fóssil e, com isso, aumentem o próprio custo energético do país. Ou o Estado vai subsidiar o custo ou a população vai pagá-lo. Esse é o grande problema. Tudo leva a crer que o segundo gasoduto que havia sido construído para ampliar o fornecimento na Alemanha nem será inaugurado.

 

 

IHU - Que renegociações internacionais ou saídas poderiam ser buscadas a fim de evitar uma crise alimentar global ou amenizar seus efeitos?

 

Sílvio Porto – Os países e regiões mais vulneráveis tendem a ser as mais afetadas, a exemplo da África, da América Latina, parte do Oriente Médio; mas sobretudo a África e o Oriente Médio serão os mais afetados em um primeiro momento. Provavelmente a América Latina também não escape do aumento dos preços do milho e do trigo e isso será um enorme problema. De alguma forma, a Europa também será afetada porque a Ucrânia, além do milho e do trigo, é considerada o celeiro da Europa e 65% do solo do país é formado por planícies, com solos de alta fertilidade. A Ucrânia tem uma produção altamente diversificada e é um dos maiores produtores de batata, cevada, semente de girassol e óleo de girassol junto com a Rússia.


Diminuíram a previsão das exportações de grãos da Ucrânia em 15 milhões de toneladas. A previsão era de 62 milhões e agora está em torno de 47%. Acho que a previsão está sendo muito conservadora, porque não estão saindo cargas dos portos da Ucrânia neste momento. No máximo, podem estar saindo alguns carregamentos em direção à Europa via trens. Só que a capacidade de escoamento via trem é muito pequena e eles estão sendo mais utilizados para o transporte dos refugiados. Isso já afeta de imediato aqueles países que se abasteciam da Ucrânia. A estratégia europeia era reduzir a exportação de soja brasileira tendo na Ucrânia o principal foco de compra.

Além disso, os grãos que foram colhidos têm dificuldade de escoamento em função da guerra e a questão é como será daqui para a frente: não consigo imaginar que haverá plantio em meio à guerra. O problema será grave dentro da Ucrânia, com aumento da fome e da pobreza, e também entre aqueles países que se abasteciam dela.

 

 

IHU – Considerando a diversidade de alimentos produzidos nas regiões, é possível apostar em saídas mais otimista, como a exportação de novos produtos locais ou a substituição de determinados alimentos por outros?

 

Sílvio Porto – Em primeiro lugar, deveria haver um processo de ajuda humanitária com aporte de recursos que, ao invés de serem usados para as guerras, fossem utilizados para o desenvolvimento e o apoio às regiões no sentido de dar autonomia e valorizar os processos endógenos dos países. As soluções precisam ser construídas pelos povos de forma soberana e não do modo como historicamente vêm sendo feitas.

A financeirização das terras por parte das grandes empresas tem que ser refutada e combatida. Trabalhei no sul da Angola e fiquei impressionado com a riqueza e a possiblidade de desenvolvimento da agricultura angolana, que tem todo o potencial para ter autonomia alimentar. O grande problema é que os organismos internacionais que lá atuam operam na lógica da Revolução Verde e preconizam justamente aquilo que é feito desde os anos 1960 e 1970. Eles dizem que é preciso modernizar a agricultura, importar sementes, usar agrotóxicos e desconhecem ou desvalorizam e não incorporam estratégias das populações locais, do seu modo de vida e de produção. Este é o caminho a ser perseguido: recuperar variedades e valorizar a biodiversidade local para dar condições para que esses países e regiões possam buscar a sua soberania alimentar. A grande questão é que quem hegemoniza o debate internacional são os mesmos Estados que têm interesses econômicos, imperialistas, que querem e olham para essas regiões como consumidoras. Eles querem vender seus excedentes e não o desenvolvimento efetivo que garanta a autonomia das populações ou a redução de um processo de dependência tecnológica, produtiva e alimentar em nível internacional. Essa é a chave. Consequentemente, essa poderia ser uma forma de responder às mudanças climáticas.

 

 

Criatividade brasileira



Gostaria de fazer uma última observação em relação ao trigo. Em outros momentos de crise no Brasil, como logo depois da primeira guerra, quando enfrentou vários problemas de abastecimento, e durante a segunda guerra o país usou de um expediente inteligente e criativo à época, que foi misturar ao trigo, amido de mandioca ou amido de milho. A Embrapa tem pesquisas e estudos sobre isso e mostra que até 30% de adição ao trigo, seja de amido de milho ou de mandioca, não interfere na panificação. Ao contrário, até melhora o aspecto do pão e a própria aparência. Ou seja, a mistura é benéfica. Esse exemplo nos mostra que se o Brasil consome 12 milhões de toneladas de trigo, quatro milhões de toneladas poderiam deixar de ser importadas. O país poderia buscar a autossuficiência e lançar um plano de apoio à produção da agricultura familiar, retomando a mandiocultura no país, que está em crise e perdendo área. Poderia também deixar de usar o milho para produzir etanol e usar o amido de milho como alternativa para substituir as importações de trigo. Essa seria uma forma inteligente e interna de resolver parte do problema que o país está enfrentando e enfrentará nesse próximo período.

 

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