Guerra. Efeito borboleta em nossas mesas. Artigo de Carlo Petrini

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15 Março 2022

 

"Enquanto a Europa manifesta fraterna solidariedade pelo drama que o povo ucraniano está passando, bem como o povo russo que se opõe às ações desvairadas de seu governante, peço às instituições nacionais e internacionais que reflitam seriamente sobre o dever moral de mudar o atual sistema alimentar. Porque a comida em nenhuma circunstância deve se tornar uma arma que amplifica os danos de um conflito. O alimento pode e deve ser apenas e sempre um instrumento para a difusão da paz", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre a "ecologia integral” e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 14-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Pode o conflito que eclodiu na Ucrânia causar uma nova revolta do pão no Egito? Infelizmente, sim, existem as condições para que isso aconteça. A eclosão da guerra na Ucrânia, desconcertante, inesperada e de forma alguma justificável, faz com que nos sintamos novamente impotentes e subjugados por circunstâncias que vão muito além do nosso controle. E em um mundo profundamente interconectado, nos leva de volta a acertar as contas com as implicações negativas do chamado “efeito borboleta”. Eis então que as consequências de um evento dramático circunscrito a uma área geográfica específica, podem manifestar-se de formas por vezes até inesperadas em áreas do planeta muito distantes; lançando as bases para crises graves e duradouras.

 

Digo isto referindo-me especificamente ao setor agroalimentar; ciente de um triste dado concreto: conflitos e fome são fenômenos intimamente ligados, quando um ocorre o outro segue quase naturalmente. Isso é confirmado pelas primeiras informações do Programa Mundial de Alimentos provenientes da Ucrânia, onde mais de 3 milhões de pessoas estão recebendo ajuda alimentar. E também é demonstrado pelas declarações preocupadas de numerosos países africanos, do Oriente Médio e da própria Europa que, ainda que por motivos distintos, temem as repercussões diretas e indiretas que o conflito terá nos preços e na oferta de alimentos.

 

O Iêmen, por exemplo, importa 90% de seus alimentos, dos quais 50% dos grãos são da Rússia e da Ucrânia. Para um país onde mais da metade da população (15 milhões de indivíduos) já vive em condições de insegurança alimentar, a guerra representa o agravamento de uma situação já trágica.

 

O Egito, outrora grande produtor de trigo graças à fertilidade do Nilo, devido à urbanização e à desertificação, compra 80% desse produto da Ucrânia. E em um território onde o pão sempre foi um bem politicamente controverso (além de subsidiado), teme-se que o aumento dos preços das matérias-primas crie instabilidade econômica e insurreições da população. Devido à emergência climática, o Marrocos vive a pior seca dos últimos 30 anos. A médio prazo será, portanto, obrigado a importar muitos cereais do exterior, enfrentando custos mais elevados do que os esperados devido ao conflito.

 

O governo queniano, por outro lado, está preocupado com o preço dos fertilizantes (dos quais a Rússia é um dos principais fornecedores mundiais), que corre o risco de disparar. Para os pequenos agricultores, preços mais altos significam menos uso de fertilizantes; portanto, uma colheita menor e, assim, também uma renda menor. Esta é mais uma confirmação da necessidade de transição para sistemas alimentares sustentáveis que devolvam o poder às mãos dos agricultores e produzem utilizando insumos locais e renováveis.

 

Chegando agora à Europa, é preciso reconhecer que seus sistemas alimentares não estarão isentos das consequências negativas do conflito. A Ucrânia é, de fato, o quarto maior fornecedor de alimentos da União, enquanto a Rússia fornece 40% do gás utilizado para o aquecimento das estufas onde se cultiva mais de metade das hortaliças consumidas no continente. Um aumento nos preços do gás pode comportar não apenas um aumento no preço dos alimentos, mas também o fechamento de algumas fazendas e, portanto, uma diminuição da oferta.

 

É assim que, logo após a pandemia, esse conflito nos fará sentir novamente a vulnerabilidade e a injustiça de um sistema alimentar globalizado, que responde apenas à lei do lucro, quando ocorrem choques imprevistos. E enquanto a Europa manifesta fraterna solidariedade pelo drama que o povo ucraniano está passando, bem como o povo russo que se opõe às ações desvairadas de seu governante, peço às instituições nacionais e internacionais que reflitam seriamente sobre o dever moral de mudar o atual sistema alimentar. Porque a comida em nenhuma circunstância deve se tornar uma arma que amplifica os danos de um conflito. O alimento pode e deve ser apenas e sempre um instrumento para a difusão da paz.

 

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