07 Abril 2020
"Para alguns, se inaugurará um mundo mais solidário. Para outros, a aposta pode ser que o novo coronavírus contribuirá para a tão sonhada higienização social: os que sobram e atrapalham o sistema serão eliminados. Ficarão apenas as pessoas “justas” e as produtivas. É a realização do Reino do Mercado", escreve Romi Bencke, secretária-geral do CONIC, teóloga e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e, em 2013, recebeu o Prêmio Direitos Humanos - a mais alta condecoração do Governo brasileiro a pessoas que se destacam na defesa, na promoção e no enfrentamento às violações dos Direitos Humanos no país, em artigo publicado por Conselho Nacional das Igrejas Cristãs – CONIC, 03-04-2020.
Eis o artigo.
Vassíli Grossman foi um jornalista soviético. Ele era correspondente durante a defesa de Stalingrado e da queda de Berlim, na II Guerra Mundial.
Entre os livros que escreveu está Vida e Destino. A obra tem uma história curiosa. Ela foi confiscada pela KGB nos anos de 1960 e só foi publicado na década de 1980.
O livro é o relato de um correspondente de guerra que acompanhou, do início ao fim, a Batalha de Stalingrado. O autor narra sobre os campos de concentração, a vida nos campos de prisioneiros militares, os interesses dos altos comandos da guerra. De um lado, Hitler. E de outro, Stalin.
Grossman capta, e talvez aí esteja a energia dramática da narrativa, a força da insensatez e da irracionalidade humanas. A cidade de Stalingrado já estava toda destruída. Não havia comida, o frio era intenso, mas, apesar disso, os soldados lutavam por casas que estavam parcialmente em pé.
Deste livro tirei uma frase que carrego comigo desde quando o li. Ela é como um Salmo ou como um daqueles mantras que a gente sussurra continuamente para guardar fundo na memória e no coração o que não desejamos esquecer. A frase diz: “Quando o fascismo triunfa, o ser humano deixa de existir, restam apenas criaturas que sofrem modificações internas”.
Sobre esta modificação interna das criaturas humanas em contextos desumanizados é que tenho pensado bastante.
O Brasil nunca teve um processo profundo de humanização.
Os crimes contra seres humanos marcam nossa história.
O genocídio indígena, a escravização das pessoas negras, os feminicídios, as contínuas e permanentes violações da Mãe Terra, as várias ditaduras que reprimem e assassinam seus opositores e opositoras, as mortes de deuses e deusas pela intolerância religiosa, as torturas e desaparecimentos políticos durante os anos da ditadura civil-militar.
Somos um país formado por criaturas modificadas que se alimentaram da dor e do sofrimento alheios. A capacidade de refletir e assumir a responsabilidade destas atitudes também é algo que nos falta. Ernst Bloch afirma que o grau de responsabilidade individual depende do poder de ação dos sujeitos. Isso significa que as classes e as elites dirigentes têm o dever de ser as primeiras a assumir suas responsabilidades.
No entanto, tais elites se negam a qualquer responsabilização dos crimes, dos genocídios, das escravizações. O sofismo cínico busca eliminar a possibilidade de algum peso de consciência. Nossa história de horror fica condenada a uma eterna repetição.
No Brasil, um caminho que tende a ser utilizado para a expiação da culpa e da responsabilidade é o cristianismo, embora, importante ressaltar, a fé cristã se oriente pela responsabilização dos erros humanos.
O pecado, que é a tentação eterna do ser humano, colocar-se no lugar de Deus e decidir sobre a vida e a morte, exige autorreflexão e transformação.
Mas parece que o cristianismo e seus valores foram manipulados para aliviar qualquer possibilidade de responsabilização pelos inúmeros crimes contra a humanidade aqui praticados. Com isso, permanecemos como um país de criaturas com modificações internas.
Esse cristianismo distorcido, manipulado e instrumentalizado para os interesses das criaturas com modificações internas, é o que está presente hoje na política brasileira. Trata-se de um cristianismo fundamentalista aonde Deus é mero instrumento do mercado como ideal de Reino. Em obediência e reverência a este reino, valem todos os sacrifícios.
Este é o triunfo dos fundamentalismos.
Quando vemos altas autoridades e “pessoas do bem” argumentando que é melhor perder algumas vidas para que a economia seja salva, podemos dizer que deixamos de existir.
Esta também é a morte de Deus. É a repetição da cruz.
Novamente, são algumas poucas as pessoas que ficarão sob os pés da cruz velando o Cristo que está se esvaindo em medo, dor e solidão. Estas pessoas são as mães que perderam seus filhos e filhas para o racismo estrutural, para as diferentes formas de violência, para as execuções extra judiciais, para a fome.
Há bastante tempo chamamos a atenção para a relação simbiótica entre o fundamentalismo de mercado e o fundamentalismo religioso. A COVID-19 expõe muito bem essa relação, quando vemos o Estado justificando o corte de gastos públicos e injetando dinheiro nas veias sedentas dos bancos, mesmo que isso vá significar a morte de muitos seres humanos. Esta relação está presente no negacionismo dos conhecimentos científicos e nas mentiras pseudo-religiosas usadas para ludibriar as pessoas e manter Deus escravizado a serviço do Mercado. Estas são as homilias de uma religião que se abastece e se alimenta do sofrimento do outro.
Outro dia, li um texto de Mike Davis com um título bem sugestivo: “A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo Capitalismo”.
No texto, Davis chama a atenção que o novo coronavírus escancara a desigualdade de classes que alimenta o sistema capitalista. Ele cita o exemplo da indústria de asilos nos EUA que têm fins lucrativos. Estas clínicas atendem em torno de 1,5 milhões de pessoas idosas. Segundo o autor, é um mercado altamente lucrativo, competitivo. O número de profissionais que trabalham nestas clínicas é sempre inferior ao que realmente seria necessário. O primeiro epicentro do coronavírus nos EUA foi, justamente, em uma dessas clínicas, localizada em um bairro periférico de Seattle. Entre os vários problemas apontados para entender a proliferação do vírus está o fato de que as pessoas que trabalham nesses locais, em função dos baixos salários, atuam em mais de uma clínica. Com isso, tornam-se, sem querer, potenciais transmissoras do COVID-19.
Um exemplo muito cotidiano do triunfo do fundamentalismo e de como nos tornamos criaturas modificadas.
Agora, o que chama a atenção nisso tudo, é a dificuldade em nomear este monstro metamorfoseado de deus. Há uma resistência grande, inclusive entre as criaturas menos modificadas, em dizer que o nome deste monstro é capitalismo. Alguns até celebram o fato aparente de o novo coronavírus ter acabado com o neoliberalismo financeirizado. Mas temem em falar o nome do onipotente capitalismo.
O que vem depois disso tudo?
Não sabemos.
Para alguns, se inaugurará um mundo mais solidário. Para outros, a aposta pode ser que o novo coronavírus contribuirá para a tão sonhada higienização social: os que sobram e atrapalham o sistema serão eliminados. Ficarão apenas as pessoas “justas” e as produtivas. É a realização do Reino do Mercado.
Uma sociedade mais totalitária, com maior controle, maior divisão de classes, mais hierarquias e novas fronteiras tende a ser um cenário possível.
Este é o triunfo dos fundamentalismos.
E Jesus, nisso tudo?
Ele é um ser, pregado na cruz, em agonia!
Leia mais
- A retórica brasileira e o teste das convicções. Entrevista especial com Nancy Cardoso Pereira e Romi Bencke
- A pandemia e o fim do neoliberalismo pós-moderno
- Epidemia de neoliberalismo. Artigo de Raúl Zibechi
- “Não sabemos como converter nossos saberes em processos de emancipação e transformação coletiva”. Entrevista com Marina Garcés
- Causalidade da pandemia, qualidade da catástrofe. Artigo de Ángel Luis Lara
- Triagem de pacientes e racionamento de respiradores: bioeticistas debatem os problemas éticos da pandemia
- Algumas lições que já devemos tentar aprender com a pandemia
- Adesão da Redbioética ao chamado dos Médicos Sem Fronteiras
- 50% dos infectados no Rio Grande do Sul tem entre 20 a 49 anos
- A mão pública na recuperação após a emergência do Covid-19. Artigo de Gaël Giraud
- A pandemia global avança no mundo, mas em ritmo mais lento
- Ameaças do capitalismo de plataforma podem ser ainda mais letais na pandemia. Entrevista especial com Juliette Robichez
- Na pandemia, fermenta o Comum
- O diagnóstico, a cura. Artigo de Raniero La Valle
- Imaginar os gestos-barreiras contra o retorno da produção anterior à crise. Artigo de Bruno Latour
- A pandemia cobra a autocrítica dos liberais
- Estamos em guerra: o inimigo é o novo coronavírus
- A pandemia de Covid-19 é um grande teste à resiliência de sistemas de saúde no mundo inteiro. Entrevista especial com Beatriz Rache
- Vírus no ar e máscara obrigatória. O quebra-cabeça do contágio divide os especialistas
- Coronavírus: alguns sentem tanto medo que precisam negar o que está acontecendo, diz psicanalista
- Coronavírus (Covid-19): Saída precoce do isolamento levaria a confinamentos mais longos, diz estudo
- Há notícias positivas sobre o Covid-19 que a mídia pouco divulga
- Humanos são resilientes, confiemos em nós mesmos e uns nos outros
- Ressuscitação Cardiopulmonar e Covid-19
- Médicos Sem Fronteiras: Exigimos que testes, medicamentos e vacinas para combater a COVID-19 não tenham patentes
- De pandemias, desenvolvimento e multilateralismo
- “Não joguem a culpa no morcego”. Entrevista com Silvia Ribeiro
- O coronavírus ataca também a luta contra a emergência climática
- Grupos antivacina mudam foco para covid-19
- Não usar máscara para se proteger do coronavírus é um “grande erro”, diz cientista chinês
- “A epidemia ensina que a chave para resolver problemas são os nossos comportamentos”. Entrevista com Leonardo Becchetti
- Os novos desafios éticos e bioéticos que surgem com a pandemia do Covid-19
- Travessia conceitual do irrepresentável. Três limiares da pandemia de 2020
- O coronavírus desperta o humano em nós
- Colaboração frente à concorrência. Quem vencerá a corrida pela vacina contra o coronavírus?
- O avanço da pandemia de Covid-19 no mundo e no Brasil no mês de março
- ‘Após o coronavírus, o mundo não voltará a ser o que era’
- “Poderíamos sair, e muito melhores. Porém temo que, uma vez mais, não aprendamos a lição”, aposta José Ignacio González Faus
- A pandemia de Covid-19 avançou rapidamente na última semana
- Os esquecidos na pandemia
- Porque a peste está dentro de nós
- A agudização das condições da existência e a busca de mundos diferentes. Entrevista especial com Andityas Soares de Moura Costa Matos
- Coronavírus: risco da disseminação é maior com a circulação de assintomáticos
- Sete lições geopolíticas em tempos de coronavírus. Artigo de Alfredo Serrano Mancilla
- Epidemia e crise social. Artigo de José de Souza Martins
- O medo do futuro incerto. Artigo de Tarso Genro
- A experiência da pandemia e a necessidade de uma cooperação global. Entrevista especial com Claudia Feitosa-Santana
- O mundo pós-pandemia. Artigo de Raúl Zibechi
- A pandemia do coronavírus e um dilema sem precedentes: escolher entre economia e saúde
- IHU para a quarentena. O Indivíduo e a Sociedade em introspecção
- “Brasil toma medidas homicidas ao mudar de rumo na hora que a curva de causos aumenta”. Entrevista com Ligia Bahia
- Francisco protagoniza uma impactante oração pelo fim da pandemia em uma vazia e chuvosa praça São Pedro
- Três obrigações bioéticas na resposta à Covid-19 e à escassez de recursos
- Subnotificação dificulta combate à covid-19 no Brasil
- Alternativas para uma economia pós-coronavírus
- Pandemia COVID-19 na Era do Capitaloceno: Racismo ambiental disfarçado de consciência ecológica
- Reclusão em tempos de coronavírus: “Isolar-se é um gesto de solidariedade”. Artigo de Michela Marzano
- A difícil escolha entre a liberdade e a morte (dos nossos avós!)
- Covid-19. Falta de EPIs colocam profissionais da saúde em risco e deve gerar uma enxurrada de processos judiciais
- Vírus, chegou o momento da audácia
- Keynes contra o coronavírus. Artigo de Daniel Castillo Hidalgo
- Tempo de vírus. Artigo de Manuel Castells
- Judith Butler sobre a Covid-19: ‘O capitalismo tem seus limites’
- A crise do coronavírus empobrecerá 35 milhões de pessoas na América Latina
- “Para passar esta crise, é preciso colocar em quarentena nossas ambições”. Entrevista com Santiago Beruete
- Como se dará a evolução de Covid-19 na população que vive em condições precárias? Entrevista especial com Guilherme Werneck
- Dez tendências da mídia que podem mudar com a pandemia
- Logística das pandemias. Artigo de Laurent de Sutter
- “A recessão em 2020 é inexorável e a palavra-chave para as pessoas é sobrevivência”
- Covid-19: “a humanidade inteira” ameaçada, ONU lança plano
- Coronavírus: a ética começa com o reconhecimento das nossas limitações
- O mundo depois do coronavírus. Artigo de Yuval Noah Harari
- Schönborn: pandemia do coronavírus mudará a face da terra
- Sem os cortes recentes na Saúde, enfrentamento da pandemia seria menos dramático. Entrevista especial com Fernando Pigatto
- O vírus da solidão
- Pandemia no Brasil sob o desgoverno Bolsonaro
- Covid-19: a pandemia ensina ao mundo a verdade sobre o gasto público
- O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-Chul Han
- Coronavírus: “Esta é uma oportunidade ímpar para fazer uma verdadeira transição ecológica”
- A pior pandemia experimentada pela humanidade
- Lições dadas pelo coronavírus da COVID-19: Um decrescimento “ordenado” é possível
- Zizek sobre o coronavírus: Um golpe letal no capitalismo para reinventar a sociedade
- As três fases ideológicas do coronavírus
- Os perigos e as possibilidades de uma pandemia. Artigo de Nuala Kenny
- Coronavírus. Artigo de Raoul Vaneigem
- Para entender em profundidade a Covid-19
- O coronavírus. “Estamos diante de uma instância biopolítica à qual é preciso dar com urgência uma resposta”. Entrevista com Giannino Piana
- Os custos sociais de uma pandemia, que atinge grupos distintos de maneiras diferentes
- O vírus põe a globalização de joelhos. Artigo de Luigi Ferrajoli
- Economistas avaliam como ‘desconectadas da realidade’ medidas de Guedes para crise do coronavírus
- “O egoísmo, o vírus social que alimenta a epidemia”
- Coronavírus: “O perigo real é a incapacidade de priorizar os desastres”
- #euficoemcasa. ‘Transformar o medo do coronavírus em um recurso é possível’: os conselhos do neurologista Sorrentino
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Novo coronavírus e o triunfo dos fundamentalismos. Artigo de Romi Bencke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU