“Para passar esta crise, é preciso colocar em quarentena nossas ambições”. Entrevista com Santiago Beruete

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27 Março 2020

Como filósofo e especialista em jardins, o espanhol Santiago Beruete (Pamplona, 1961) soube cultivar uma forma de pensar o ser humano em harmônica relação com a natureza, na contracorrente de um mundo depredador e quase suicida. Nesse planeta enfermo, a pandemia do coronavírus parece ser um sintoma a mais. E é sobre este mal que Beruete, autor dos livros “Jardinosofía” e “Verdolatría”, nos responde por e-mail em seu isolamento obrigatório, em seu lar em Ibiza. Um confinamento que, segundo suas próprias palavras, “é às vezes uma maldita reclusão e outras um abençoado retiro”.

A entrevista é de Juan Carlos Fangacio Arakaki, publicada por El Comercio, 25-03-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Em uma parte de seu livro “Verdolatría”, menciona que já somos há tempo uma sociedade enferma, e que “permanecer até certo ponto inadaptados” é uma forma de nos manter sadios. É o que estamos vendo mais claro com o coronavírus, não é?

Se queremos ser donos de nossa mente e nos manter lúcidos em um mundo de loucos, devemos conviver com o menor número de contradições possíveis. A pandemia do coronavírus ilustra perfeitamente que é preferível buscar a verdade que se apegar a mentiras consoladoras, e que é preferível viver na incerteza que enganados.

A credulidade atua como a radioatividade. Destrói nossas defesas silenciosamente e nos deixa imunes às ameaças. Se não raciocinamos, irremediavelmente metabolizamos preconceitos, repetimos condutas nocivas e nos tornamos escravos de nossos temores.

O pensamento crítico, ao contrário, reforça nosso sistema imunológico contra os tóxicos mentais que diariamente enfrentamos e que, assim como a ansiedade crônica, as expectativas ilusórias e o narcisismo, colocam em grave risco nosso ecossistema biológico e emocional. Minha recomendação para passar esta e outras crises é colocar em quarentena nossas ambições, retirar-se da louca corrida do mundo e se abastecer das coisas que custam pouco e valem muito.

Li várias mensagens do tipo “vejo o céu mais limpo” ou “há um retorno das aves”. A natureza pode oferecer uma resposta visível e concreta diante da retirada do ser humano em quarentena? Ou são apenas percepções?

A natureza retorna com o mesmo ímpeto com o qual a despachamos. Aborrece o vazio, como afirmava Aristóteles. De modo que, se a presença humana diminui e, de passagem, sua pegada ecológica, esse nicho será ocupado por plantas e animais.

Gostamos de acreditar que o futuro do planeta está em nossas mãos, porque alimenta um de nossos preconceitos mais enraizados, compartilhado por uma boa parte dos movimentos ambientalistas: nós, seres humanos, somos os protagonistas da História Natural. Temos a tendência de esquecer que as plantas povoam a Terra muitos milhões de anos antes que nós irrompêssemos em cena. E se não somos capazes de frear a degradação da biosfera, não tardariam em colonizar as ruínas de nossa civilização, o que daria um novo e atordoante sentido a um de nossos mitos fundacionais: a expulsão do Jardim do Edén.

Mesmo que a origem do vírus ainda não seja conhecida, intui-se que viria, novamente, dos animais, e muito provavelmente por meio da alimentação. Isso pode ser entendido como uma mensagem à nossa depredação?

Ao mesmo tempo que nos conscientizamos de ser terrícolas, vai se apossando de nós o temor de que a Terra busque a revanche e se vingue de nossas continuadas espoliações e desmandos. A ficção científica explorou numerosas vezes o argumento de que a natureza se revela contra a nossa opressiva dominação ou, caso prefira, se defende contra a praga humana. São muitos os filmes e séries que especulam a possibilidade de um colapso ambiental, uma catástrofe climática ou uma pandemia letal.

Este drama parece ser, também, uma oportunidade para refletir sobre nosso antropocentrismo. De acordo com o que você já estudou, em que momento começamos a ser tão egoístas em relação a tudo o que não é humano?

A soberba é um dos traços distintivos do animal humano. Nossa espécie presumiu ser a única inteligente, com sensibilidade, capaz de se comunicar, feita à imagem e semelhança de Deus. É o momento de mudarmos essa percepção. Saber de nossa semelhança genética com o restante dos seres vivos deveria nos servir como cura de humildade e nos prevenir contra a perniciosa arrogância de nos sentir superiores. A ameaça de catástrofe humanitária, não menos que de uma hecatombe ambiental, talvez possa unir a raça humana na busca por soluções.

Se não desejamos nos converter em outra espécie a mais em extinção, não somente devemos acelerar a transição para um mundo com energia 100% renovável, como também aprender a pensar de outra maneira. Não estamos sós. Compartilhamos o planeta com muitos outros seres, mais de 90% dos quais são plantas. “O alquimista supremo”, conforme as tem chamado a bióloga Sandra Myrna Díaz. Um fato a respeito do qual nunca será demais insistir é que todas as formas de vida estão irmanadas e sustentam um incessante diálogo umas com as outras, sobre o qual nunca podemos dizer que sabemos o suficiente.

E diante das restrições para o contato entre pessoas, o quanto é recomendável estabelecer relações com as plantas?

O contato com as plantas nos humaniza. Os seres humanos sempre ajardinaram seus sonhos, adornaram com flores e árvores suas ideias de uma boa vida, como se não conseguissem vislumbrar isso sem o verde das plantas. Se decoramos os espaços habitados com árvores, arbustos e flores de todos os tipos, talvez seja porque estes despertam em nosso interior a vaga recordação do Jardim das Delícias. Em sua presença nos invade uma atávica sensação de segurança, pois obtemos do reino vegetal o que precisamos para a nossa sobrevivência. Lamentavelmente, essa é uma sensação que nem sempre experimentamos ao lado de nossos semelhantes.

Sem querer brincar de futurologia, acredita que após passar este problema, poderemos aprender a lição e melhorar nossa conduta diante do mundo?

É quase um clichê dizer que sairemos desta crise de uma maneira muito diferente de como entramos. Quero acreditar que aprenderemos a lição correta e ajustaremos o barco enquanto navegamos. Estamos descobrindo com uma mistura de estupefação e melancolia que somos mais vulneráveis e frágeis do que imaginávamos. O que todos nós deveríamos compreender é que negar as evidências e nos enganar só piorará as coisas. Assim como é muito inoperante e escapista melodramatizar, também é se resignar, fechar os olhos aos inequívocos sinais de alarma, bem como assumir que está fora de nosso alcance a solução para o problema. Devemos optar entre estar à altura das circunstâncias e mudar sem garantias ou seguir os acontecimentos e aguentar as consequências.

 

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