“Após o coronavírus, o mundo não voltará a ser o que era”

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

01 Abril 2020

O atual cenário de pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus restabelece a importância da ciência e da informação responsável como principais ferramentas para reduzir ao máximo os danos sociais e econômicos que ela causará. A conclusão é do biólogo com pós-doutorado em microbiologia Atila Iamarino. Ele participou na noite de ontem (30) do programa Roda Viva, da TV Cultura.

A reportagem é de Gabriel Valery, publicada por Rede Brasil Atual, 31-03-2020. 

“O mundo não vai voltar a ser o que era (…) É uma situação preocupante. Têm pessoas querendo voltar ao que tinham antes. Temos um histórico mais recente de negação da ciência, dos fatos”, disse. Para o cientista, o cenário pede atenção absoluta da sociedade. Recentemente, Atila, que já trabalhava com divulgação científica, ganhou mais popularidade ao projetar 1 milhão de mortes no Brasil, caso nada fosse feito.

Tal número não veio de estudos do próprio especialista. A projeção foi feita pelo Imperial College London, instituição britânica que faz consultoria para desde a Organização Mundial da Saúde (OMS), a governos de todo o mundo. Tal estudo foi motivo, por exemplo, para uma mudança drástica de postura do primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson. Inicialmente, ele defendia que quarentenas em massa não seriam necessárias. O estudo, que se mostrou real após poucas semanas, o fez fechar o país.

Em meio a um cenário distópico, em que maiores metrópoles do mundo estão com seus cidadãos confinados, Atila defendeu a reflexão sobre os erros do mundo antes da pandemia. E disse ser otimista sobre as mudanças que virão após tamanha crise. “Temos duas ferramentas que estavam em descrédito. É bom renovar a confiança. A imprensa, que vem sendo atacada, é de extrema importância, é confiável gente competente que apura informação. A outra é a ciência. Seja histórica, para reconstruir e construir cenários, ou para prever, como a biologia”, afirmou.

Alcance da pandemia

Atila tem experiência acadêmica em estudos de relevância internacional com epidemias como de Ebola e Zika. Ao analisar cenários para o novo coronavírus, o cientista não hesita em reafirmar a seriedade da situação. “As pessoas morrem pela doença e pelo colapso do sistema de saúde. Não têm leitos suficientes, não têm ambulâncias. É uma doença que hospitaliza muitas pessoas”, disse.

Alguns fatores amplificam a gravidade da pandemia. A dispersão do vírus é muito rápida; pessoas assintomáticas transmitem a doença antes de saberem ser portadoras. Outro fator é a novidade; diferente de vírus sazonais da gripe, as pessoas não possuem anticorpos para vírus semelhantes. “A gripe se espalha em uma população que já teve gripe. O H1N1, de 2019, não infectou muitos idosos, porque eles já tiveram gripes que os deixaram imunes”, explicou.

Atila prosseguiu com o dado de que a covid-19 mata de dez a 20 vezes mais do que a gripe comum, e também infecta em tal proporção. “Isso satura o sistema de saúde. Ela consegue fazer isso em poucos dias, é muito mais preocupante. Ela afeta idosos. Pegou de surpresa. O vírus da covid tem uma afinidade maior pelas vias respiratórias superiores, ele transmite mais pela tosse e espirro.”

Outro mundo

Por diversas vezes durante o programa, Atila afirmou que o mundo deve mudar após a pandemia. No curto, médio e longo prazo. As alterações passam desde o trato à ciência e prevenção, a até novas relações de trabalho. “De imediato, até tomarmos a vacina, teremos que tomar precauções. Nesse meio tempo, as pessoas vão mudar. Tem pais e mães convivendo mais com os filhos. Convivemos com um problema de alguém do interior da China. O mundo vai ser mais diferente mas espero que seja mais unido”, disse.

Mais adiante, após o fim do pico de contágio, a preocupação com o retorno da pandemia deve ser de grande relevância. “Todo mundo vai ter que usar máscara por uns bons meses. A indústria tem que se adequar.” Agora, na ascensão do novo coronavírus, os equipamentos deve ser direcionados, na sua totalidade, aos profissionais da saúde, defende Atila. Mas, de acordo com a possibilidade, todos deverão adotar o hábito de usar máscaras.

Já sobre o mundo do trabalho, Atila defende uma mudança de postura em relação ao tratamento dos cidadãos. “Não tem como retomar o que existia antes. Precisamos nos adequar a uma nova economia e ao trabalho remoto”, disse, em uma defesa do conhecido home office.

As relações afetivas tendem a seguir o mesmo caminho. A tecnologia de comunicação deve passar a ter, cada vez mais, o objetivo de aproximar. “Mesmo virtual, espero uma constância maior maior (dos relacionamentos). Tem muita gente descobrindo que poderia trabalhar de casa. Ensino à distância pode ser mais aplicado. Espero que renovemos a esperança na ciência e na mídia. Estamos redescobrindo a real importância disso, de saber do vizinho.”

Quarentenas

O Brasil está apenas no início da curva de crescimento de casos de covid-19. Tal fato é reconhecido pelo Ministério da Saúde e toda a comunidade científica. De acordo com dados do governo, no final de abril, o sistema de saúde pode entrar em colapso. Diante de tal cenário, Atila não hesita em defender medidas de isolamento social e de intensas quarentenas em grandes epicentros de disseminação do novo coronavírus.

Existe uma grande oportunidade para o Brasil, que vem com uma imensa contradição. Como o país foi afetado semanas após os surtos em outros países, como Itália, Espanha e Estados Unidos, existe a oportunidade para o poder público minimizar as mortes. Essa é a oportunidade. Já a contradição é o posicionamento do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro (sem partido), que insiste em desprezar as recomendações de todas as autoridades de saúde, além de ir contra todos os líderes mundiais. O extremista defende que o vírus não passa de uma “gripezinha” e que a sociedade não precisa de grandes cuidados.

A realidade aponta para o sentido oposto. As mortes virão aos montes. ” Vai ser um trauma coletivo bem grande”, defende Atila. O alento vem do posicionamento dos governos locais. À revelia do presidente, governadores estão seguindo as orientações das autoridades de Saúde e já tomaram atitudes importantes.

“Os estados que estão mantendo as pessoas circulando menos, que têm comércio parado, circulação fechada e estão construindo leito estão indo bem”, disse, ao citar os exemplos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que adotaram quarentenas em massa.

Tais ações de estímulo ao isolamento social fazem grande diferença no ciclo de contágio do novo coronavírus. A grande vantagem é dar tempo para que o sistema de saúde acomode os doentes. Atila lembra que, mesmo a letalidade do covid-19 parecendo pequena, em torno de 2% dos infectados, a taxa de hospitalização é extremamente alta, por volta de 15%. Isso, somado à velocidade em que o vírus contagia mais e mais pessoas, tem provocado colapsos e caos em diferentes países.

“Todos os países estão fazendo alguma coisa. É uma questão de tempo. O tempo é daqui para agosto. Mais do que o teto de mortes, que pode ser um desastre, o intervalo para agir é curto. É urgente e isso dá ânsia para avisar. Felizmente, a maioria dos estados aderiu à quarentena ou reduziram a circulação. Uma ou duas semanas mais pra frente poderiam representar dezenas de milhares de mortos que não precisavam morrer”, disse Atila.

Desinformação

Questionado sobre aqueles que seguem o presidente e desprezam o potencial da pandemia do novo coronavírus, Atila responde que isso é uma questão de tempo. “Tudo é uma questão de tempo. Embora a letalidade seja mais alta entre idosos, o índice de internações é alto em outras faixas etárias. É um risco para muitas pessoas. Hipertensos com 30 anos que não teriam porque morrer. Crianças que fizeram transplante, asmáticos. Eles têm mais chances de morrer do que com uma gripe normal”, disse.

“É um risco muito grande para muitas pessoas (…) Existem os dois lados: os que não aceitam que a realidade mudou (é um deles). Têm pessoas que querem voltar ao que tínhamos antes”, disse, citando grupos conservadores, que resistem à mudanças de conjuntura e exaltam o passado.

Entretanto, Atila prevê que a posição de conservadores em relação ao vírus tende a sofrer com o abalo da realidade. “Quem nega o aquecimento global vai ver os efeitos em 30 anos. Os afetados não serão eles. Quem não vacina os filhos, provoca um surto dez anos depois. Com a covid-19, a consequência virá rapidamente. Quem está negando, só tem que esperar. A situação vai mudar em duas ou três semanas”, afirmou.

Ciência do futuro

Atila fez grandes críticas aos investimentos públicos em ciência e tecnologia. Para o cientista, para além do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), verbas neste setor são essenciais para a manutenção da vida. Entretanto, são fáceis de ser ignoradas. “É fácil descartar a ciência e não ver os efeitos a longo prazo”, disse.

Cenários de grandes pandemias foram previstas por cientistas. “Não foi por falta de aviso”, provocou Atila. E, especialmente para o Brasil, o acadêmico lembra que “não falta material humano. Falta infraestrutura”. “Um amigo meu, aluno de doutorado, super qualificado para fazer pesquisa, descobriu que sua bolsa foi cortada recentemente. A pessoa mais qualificada agora para fazer testes perdeu a bolsa. Estamos reféns de agentes de fora”, completou.

China, Alemanha, Coreia do Sul produzem reagentes para fazer testes. Agora pagamos o preço”, disse, ao citar países que adotaram estratégias eficazes de combate ao vírus. Tal estratégia não é segredo: “testes, testes e mais testes”, nas palavras do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus.

Atila reforça o alerta: “Faltam ações. Quem trabalha com epidemiologia já fala que são possíveis epidemias sérias. Torço para que este seja um preparo. Não é a pior epidemia possível. Podemos ter epidemias que cheguem aos números de hoje em um mês. É uma possibilidade concreta”.

Para evitar tragédias futuras, investimento pesado em ciência e tecnologia. Mas também reconhecimento e verbas para amplos setores, defende Atila. “Vemos um desprezo pelas ciências humanas. Elas que poderiam mostrar aonde ações deveriam ser aplicadas. O melhor cenário é renovar o respeito”, completou.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“Após o coronavírus, o mundo não voltará a ser o que era” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU