O coronavírus desperta o humano em nós

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03 Abril 2020

"Uma coisa, entretanto, é certa, atribuída a Einstein: “a visão de mundo que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise”. Temos que, forçosamente, mudar", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

Eis o artigo.

A pandemia do coronavírus nos obriga a todos a pensar: o que conta, verdadeiramente, a vida ou os bens materiais? O individualismo de cada um para si, de costas para os outros, ou a solidariedade de uns para com os outros? Podemos continuar explorando, sem qualquer consideração, os bens e serviços naturais para vivermos cada vez melhor ou cuidar da natureza, da vitalidade da Mãe Terra e do bem-viver que é a harmonia entre todos e com os seres da natureza? Adiantou alguma coisa as potências amantes da guerra, acumularem cada vez mais armas de destruição em massa que agora têm que se pôr de joelhos diante de um vírus invisível evidenciando como é ineficaz todo esse aparato de morte? Podemos continuar com nosso estilo de vida consumista, depredador da natureza, produzindo ilimitada riqueza em poucas mãos à custa de milhões de pobres e miseráveis? Faz ainda sentido afirmar cada país afirmar a sua soberania, opondo-se a dos outros, quando deveríamos ter uma governança global para resolver um problema global? Por que não descobrimos ainda a única Casa Comum, a Mãe Terra e o nosso dever de cuidar dela para que todos possam caber nela, a natureza incluída?

São perguntas que não podem ser obviadas. Ninguém tem a resposta. Uma coisa, entretanto, é certa, atribuída a Einstein: “a visão de mundo que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise”. Temos que, forçosamente, mudar. O pior seria se tudo voltasse como antes, com a mesma lógica consumista e especulativa, talvez, com mais fúria ainda. Aí sim, por não termos aprendido a lição, a Terra nos poderia enviar um outro vírus, talvez aquele que pode pôr um fim ao desastrado projeto humano.

Mas podemos olhar a guerra que o coronavírus está movendo em todo o planeta, sob um outro ângulo e este positivo. O vírus nos faz descobrir qual é a nossa mais profunda e autêntica natureza humana. Ela é ambígua, boa e má. Aqui veremos a dimensão boa.

Em primeiro lugar, somos seres de relação. Somos, como tenho repetido inúmeras vezes, um nó de relações totais voltadas em todas as direções. Portanto, ninguém é uma ilha. Lançamos pontes para todos os lados.

Em segundo lugar, como consequência, todos dependemos uns dos outros. A compreensão africana “Ubuntu” bem o expressa:”eu só sou eu através de você”. Portanto, todo individualismo, alma da cultura do capital, é falso e anti-humano. O coronavírus o comprova. A saúde de um depende da saúde do outro. Esta mútua dependência assumida conscientemente se chama solidariedade. Foi a solidariedade que outrora, nos fez deixar o mundo dos antropoides e nos permitiu sermos humanos, convivendo cooperativamente. Assistimos nestas semanas gestos comoventes de verdadeira solidariedade uns ajudando a outros, não apenas dando o que lhes sobra mas compartilhando o que têm.

Em terceiro lugar, somos seres essencialmente de cuidado. Sem o cuidado, desde de a nossa concepção e durante toda a vida, ninguém subsistiria. Precisamos cuidar de tudo: de nós mesmos, caso contrário podemos adoecer e morrer, dos outros que nos podem salvar ou eu que os podemos salvar, da natureza senão ela se volta contra nós com vírus deletérios, com estiagens desastrosas, com enchentes devastadoras, com eventos climáticos extremos, cuidado para com a Mãe Terra para que continue a nos dar tudo aquilo que precisamos para viver e que ainda nos queira sobre seu solo, já que, durante séculos, a agredimos de forma impiedosa. Especialmente agora sob o ataque do coronavírus todos devemos nos cuidar, cuidar dos outros mais vulneráveis, nos recolher em casa, manter o distanciamento social e cuidar da infra-estrutura sanitária sem a qual assistiremos a uma catástrofe humanitária de proporções bíblicas.

Em quarto lugar, descobrimos que devemos ser todos corresponsáveis, vale dizer, ser conscientes das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos. A vida e a morte estão em nossas mãos. Não basta a responsabilidade do Estado ou de alguns, mas deve ser de todos, pois todos são afetados e todos podem afetar. Todos devem aceitar o confinamento.

Por fim, descobrimos a força do mundo espiritual que constitui o nosso Profundo, lá onde se elaboram os grandes sonhos, se colocam as questões derradeiras sobre o sentido de nossa vida e onde sentimos que deve existir uma Energia amorosa e poderosa que tudo perpassa, sustenta o céu estrelado e nossa própria vida sobre qual não temos todo o controle. Podemos nos abrir a ela, acolhê-la e, como numa aposta, confiar que Ela nos segura na palma de sua mão e que, apesar de todas as contradições, garante um fim bom para todo o universo, para nossa história sapiente e demente e para cada um de nós. Se cultivarmos esse mundo espiritual nos sentiremos mais fortes, mais cuidadores, mais amorosos, em fim, mais humanos.

Estes valores nos permitem sonhar e construir outro tipo de mundo, biocentrado, no qual a economia, com outra racionalidade, sustenta uma sociedade globalmente integrada, fortalecida mais por alianças afetivas do que por pactos políticos. Será a sociedade do cuidado, da gentileza e da alegria de viver.

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