Sem os cortes recentes na Saúde, enfrentamento da pandemia seria menos dramático. Entrevista especial com Fernando Pigatto

O presidente do Conselho Nacional de Saúde - CNS defende ações emergenciais, mas diz que não se pode esquecer de medidas de longo prazo para fortalecimento do sistema público de saúde

Foto: Prefeitura BH

Por: João Vitor Santos | 25 Março 2020

Há não mais do que seis meses, as discussões em torno da redução do Sistema Único de Saúde - SUS estava na pauta do governo federal. Agora, diante da pandemia de coronavírus, ocorre uma verdadeira força-tarefa para arrecadar recursos financeiros que subsidiem ações do sistema público de saúde. Para o presidente do Conselho Nacional de Saúde - CNS, organismo que fiscaliza e defende as ações do SUS, Fernando Pigatto, infelizmente o desespero diante da falta de recursos materializa o que a entidade vinha há tempos alertando. “Não à toa presenciamos recentemente nosso ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demandando ao Legislativo recursos para lidarmos com esse momento. Se a EC 95 não existisse, enfrentar esta crise certamente estaria sendo menos dramático. Até 2036, podemos perder mais de R$ 400 bilhões”, acrescenta.

Para Pigatto, a emenda que limita os gastos da saúde, a EC 95, é a principal inimiga, não é a única. “De 2018 para cá, tivemos a perda de mais de R$ 22 bilhões, de acordo com estudo apresentado na nossa Comissão de Orçamento e Financiamento - Cofin”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E dispara: “esse episódio revela que, apesar de termos um dos maiores e melhores sistemas públicos de Saúde do mundo, ainda assim temos fragilidades. Devido às forças políticas que operam a nação, muitas vezes a austeridade fiscal, disfarçada de ‘responsabilidade’ ou ‘interesse na melhora da economia’, sobrepõe os aspectos humanitários e agrava as crises”.

É por isso que o presidente do CNS defende a mobilização de toda a população para o fortalecimento do SUS, pois acredita que só assim a relação do poder público com a área da saúde pode se transformar depois da dura experiência da Covid-19. “É um momento em que precisamos ter calma e coragem para seguirmos lutando. Devemos atender às orientações das autoridades de saúde, em especial manter o isolamento social quando possível e evitar aglomerações”, diz. “Precisamos exigir das autoridades respeito aos direitos humanos, proteção social com nenhum direito a menos, cuidado especial às populações vulnerabilizadas e ainda mais responsabilidade na aplicação dos valores que estão sendo liberados emergencialmente. Ao mesmo tempo, vamos manter nossas mobilizações nas redes sociais e articulações políticas em defesa do povo e do SUS”, acrescenta.

Fernando Pigatto (Foto: Imprensa CNS)

Fernando Zasso Pigatto é o atual presidente do Conselho Nacional de Saúde – CNS e vem atuando como conselheiro nacional de saúde desde 2014, e é representante da Confederação Nacional das Associações de Moradores – Conam. Formado em Gestão Ambiental pela Universidade Norte do Paraná – Unopar, iniciou sua atuação social na década de 1980 em grupos de jovens da Pastoral da Juventude e Comunidades Eclesiais de Base - CEBs da Igreja Católica.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como o Conselho Nacional de Saúde – CNS vem participando das discussões sobre as ações para conter a pandemia de coronavírus no Brasil? Qual a importância do CNS em momento de crise como esse?

Fernando Pigatto – O CNS, desde o primeiro momento da crise do novo coronavírus, em janeiro, tem atuado em campanhas de prevenção. Reuniu sua mesa diretora com a representante da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde - Opas/OMS e presidência da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, além de colaborar com o Ministério da Saúde - MS, especialmente a Secretaria de Vigilância em Saúde, trazendo para suas reuniões ordinárias especialistas e técnicos para discutirmos os temas relacionados e os melhores encaminhamentos para a sociedade brasileira.

O CNS neste momento é fundamental, pois por lei somos o órgão que fiscaliza e delibera sobre as ações do Sistema Único de Saúde - SUS. Estamos também mobilizando e difundindo informações junto aos milhares de conselhos de Saúde espalhados pelo país.

IHU On-Line – Diversos conselhos nacionais vêm sofrendo com esvaziamentos e dificuldades de relação com o governo federal. Qual é a realidade do Conselho Nacional de Saúde nesse contexto?

Fernando Pigatto – O decreto que extinguiu centenas de conselhos da esfera federal é extremamente prejudicial para a democracia brasileira. Nós aprovamos recomendação contra este decreto e seguimos em apoio a todos os conselhos e órgãos colegiados que foram atacados. Para nós, a medida é uma afronta à democracia e à participação do povo nas decisões públicas.

O CNS permanece mantido, pois fazemos parte das leis que regem o SUS. Isso nos dá respaldo legal para mantermos nossa estrutura e nossas atividades. No início do mês de março, optamos por adiar nosso calendário previsto para o próximo período, pela compreensão do momento que vivemos, inclusive com a adequação de nossa estrutura funcional, priorizando o cuidado com a saúde da nossa equipe de assessoria e apoio. Estamos realizando muitas ações de forma virtual. O CNS pode ser contatado através do site do Conselho, onde também disponibilizamos acessos para nossas redes sociais e publicamos informações sobre o coronavírus. Ainda há o portal SusConecta, que é uma plataforma gerida pelo CNS.

IHU On-Line – O sistema público de saúde vem sofrendo com cortes e contingenciamento de recursos. Quais são os impactos desses cortes atualmente? O quanto se limitou, por exemplo, a atuação do SUS e o quanto já se perdeu de recursos?

Fernando Pigatto – O impacto das medidas de austeridade fiscal é direto na Saúde e na vida da população. A Emenda Constitucional 95/2016 é extremamente prejudicial para a Saúde pública e outras áreas. De 2018 para cá, tivemos a perda de mais de R$ 22 bilhões, de acordo com estudo apresentado na nossa Comissão de Orçamento e Financiamento - Cofin. Esse dinheiro poderia estar sendo investido inclusive neste momento de crise e combate ao novo coronavírus.

Não à toa presenciamos recentemente nosso ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demandando ao Legislativo recursos para lidarmos com esse momento. Se a EC 95 não existisse, enfrentar esta crise certamente estaria sendo menos dramático. Até 2036, podemos perder mais de R$ 400 bilhões. Quantas vidas vamos deixar de acolher, quantas pessoas vamos deixar morrer nessas duas décadas?

IHU On-Line – O Conselho Nacional de Saúde vem promovendo uma mobilização para que a Emenda Constitucional 95, de 2016, que limita o teto de gastos na saúde, seja revertida. Como essa demanda tem repercutido na sociedade e entre parlamentares e gestores públicos?

Fernando Pigatto – A nossa mobilização é bastante ampla, tanto que apoiamos uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal - STF para a revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016. Diversos parlamentares em todo o país já estão conscientes dos danos que essa medida traz para o Brasil. Neste momento, é importante que os ministros do STF e o Congresso Nacional tenham agilidade para tomarem uma atitude, anulando essa emenda.

Tanto o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde - Conasems quanto o Conselho Nacional de Secretários de Saúde - Conass também já se posicionam contra. São espaços compostos por gestores que já perceberam o quanto esta medida é grave para as unidades federativas e municípios. A ministra Rosa Weber, relatora dessa matéria no STF, solicitou no dia 20 de março que em 30 dias o governo federal e o CNS se posicionem sobre os efeitos da EC 95. Nós já temos as respostas aos seus questionamentos e consideramos o prazo muito longo, porque o coronavírus está se alastrando rapidamente e as vidas não podem esperar tanto tempo. Neste link, é possível acessar todas as respostas enviadas pelo CNS ao STF.

IHU On-Line – O Conselho também critica a aprovação do “Plano Mais Brasil”. Por quê? Quais os impactos desse Plano na saúde?

Fernando Pigatto – O Plano Mais Brasil é outra proposta do governo que pode ser considerada uma grave afronta ao povo brasileiro. Se aprovada, as três Propostas de Emendas Constitucionais - PEC, que impõem mudanças fiscais, serão mais uma reforma que prejudica os serviços públicos e nos retira direitos não só na Saúde, mas também na Educação, na Segurança Pública e outras áreas.

Essa proposta desvaloriza os servidores públicos, reduzindo salários e jornadas, além de extinguir Fundos Públicos essenciais para o desenvolvimento de políticas no país. Uma outra grave mudança proposta é a criação do Conselho Fiscal da República, que pode sobrepor a atuação do CNS, órgão que tem a atribuição legal de fiscalizar as contas do Ministério da Saúde. Não podemos permitir que nosso parlamento abra espaço para mais essa medida.

IHU On-Line – O que o episódio da Covid-19 revela ao Brasil?

Fernando Pigatto – Esse episódio revela que, apesar de termos um dos maiores e melhores sistemas públicos de Saúde do mundo, ainda assim temos fragilidades. Devido às forças políticas que operam a nação, muitas vezes a austeridade fiscal, disfarçada de "responsabilidade" ou "interesse na melhora da economia", sobrepõe os aspectos humanitários e agrava as crises. A vida das pessoas é sempre mais importante. Quem está pagando a conta? O povo brasileiro, em especial os mais pobres e populações vulnerabilizadas. Isso precisa mudar.

IHU On-Line – Acredita que, passado esse estresse da pandemia, os investimentos públicos em saúde poderão ser revistos? O SUS deve sair fortalecido desse processo todo?

Fernando Pigatto – Independentemente do coronavírus, o SUS já está em processo constante de desfinanciamento. Não é a primeira vez na história que estamos lutando por mais verbas para Saúde, nem será a última. O processo de resistência é permanente, mas acreditamos, sim, que após a crise do novo coronavírus haverá uma sensibilização coletiva da importância do SUS como um dos maiores patrimônios sociais que já construímos.

IHU On-Line – Como podemos, neste momento de crise extrema, manter a esperança e a mobilização para conter a doença e, ao mesmo tempo, lutar pelos investimentos públicos em saúde?

Fernando Pigatto – É um momento em que precisamos ter calma e coragem para seguirmos lutando. Devemos atender às orientações das autoridades de saúde, em especial manter o isolamento social quando possível e evitar aglomerações. Precisamos exigir das autoridades respeito aos direitos humanos, proteção social com nenhum direito a menos, cuidado especial às populações vulnerabilizadas e ainda mais responsabilidade na aplicação dos valores que estão sendo liberados emergencialmente – os conselhos precisam ajudar no combate à pandemia, mas continuar fiscalizando o investimento correto dos recursos. Ao mesmo tempo, vamos manter nossas mobilizações nas redes sociais e articulações políticas em defesa do povo e do SUS.

Precisamos defender e confiar na ciência, nas evidências técnicas, nas universidades públicas e nos profissionais que estão dedicando suas vidas para nos salvar. Precisamos também pregar a boa informação e combater as fake news. Neste momento, o CNS está com uma campanha #MaisSUSmenosCoronavírus, onde qualquer pessoa pode publicar vídeos em defesa do SUS, em defesa dos profissionais da Saúde, em defesa das pessoas e contra a EC 95, que deve ser revogada urgentemente diante do caos.

Todos os cidadãos e cidadãs precisam se comprometer, com solidariedade e empatia ao próximo, para que sejamos bem-sucedidos diante dessa crise. Nem o coronavírus, nem o cenário de desfinanciamento da Saúde podem ser mais fortes que a nossa inteligência coletiva e nossa solidariedade para enfrentarmos esse mar revolto.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fernando Pigatto – Que nos unamos cada vez mais, mesmo que de forma virtual, para enfrentarmos este momento difícil e ao final estarmos com mais força para construirmos um mundo melhor para todas e todos. Importante também que assinem e divulguem nosso abaixo-assinado contra a EC 95.

Leia mais