Francisco protagoniza uma impactante oração pelo fim da pandemia em uma vazia e chuvosa praça São Pedro

Foto: Vatican Media

28 Março 2020

'Senhor não nos abandone à mercê da tempestade'. Francisco reza na Praça São Pedro vazia e concede a indulgência plenária.

A reportagem é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 27-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Um Cristo enorme posto à entrada da Basílica de São Pedro, o mesmo que no século XVI salvou Roma da Grande Peste. À sua esquerda, a imagem da Salus Populi Romani, que normalmente fica na Santa Maria Maior. Alguns passos a frente, seis incensários oferecem alguma luz à noite romana.

A praça São Pedro, completamente vazia, atingida pela chuva. No átrio, o altar da audiência. Iluminado, no centro, somente uma cadeira branca.

Francisco nunca esteve tão só e, paradoxalmente, tão acompanhado.

Milhões de fiéis em todo o mundo rezaram junto com Bergoglio nesta extraordinária oração para implorar pelo fim da pandemia, e transmitir a benção Urbi et Orbi, especialmente dedicada aos doentes e esses heróis que os cuidam sem pensar nas consequências.

O silêncio é estrondoso, somente quebrado pelo gotejar da chuva na calçada da praça, quando Francisco aparece caminhando até o altar improvisado. A leitura não poderia ser outra: a dos apóstolos, mortos de medo da tempestade no lago Getsemani, pensando que Deus os abandonara.

Algo acontece em nosso mundo, hoje. “Desde algumas semanas parece que tudo se escureceu. Densas nuvens cobriram nossas praças, ruas e cidades; foram se adonando de nossas vidas fazendo de tudo um silêncio que ensurdece e um vazio desolador que paralisa tudo por onde passa: se palpita no ar, se sente nos gestos, se diz nos olhares”, proclama o Papa.


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“Encontramo-nos assustados e perdidos”

“Encontramo-nos assustados e perdidos. Igual aos discípulos do Evangelho, surpreendeu-nos uma tempestade inesperada e furiosa. Demo-nos conta de que estávamos na mesma barca, todos frágeis e desorientados; porém, ao mesmo tempo, importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos necessitados de nos confortarmos mutuamente”, explicou. “Nesta barca, estamos todos”, repetiu Bergoglio, porque desta sairemos somente como um, e que “não podemos seguir cada um por nossa conta, mas somente juntos”.

E, frente à nossa fragilidade, a atitude de Jesus, que “apesar da agitação, ele dormiu em paz, confiando no Pai: é a única vez no Evangelho que Jesus aparece dormindo” e, quando acorda, reprova os discípulos, e talvez nós hoje: “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé? ”.

É porque, explica, os discípulos “pensaram que Jesus não se importava com eles, que não lhes dava atenção. Entre nós, em nossas famílias, o que mais dói é quando escutamos dizer: ‘É que não me importo contigo’. É uma frase que machuca e desata tormentas no coração”, acrescentou.

“A tempestade – hoje, o coronavírus – desmascara nossa vulnerabilidade e deixa descobertas essas falsas e supérfluas seguranças com as quais havíamos construído nossas agendas, nossos projetos, rotinas e prioridades”, explicou o Papa.

A tempestade, prosseguiu, “desvela todas as intenções de encaixotar e esquecer o que nutre a alma de nossos povos” e, com elas, “caiu a maquiagem desses estereótipos com os quais disfarçávamos nossos egos sempre pretensiosos de querer aparentar, e deixou desvelado, mais uma vez, essa bendita pertença comum da qual não podemos, nem queremos nos evadir; esse pertencimento de irmãos”.


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Não despertamos diante das guerras e injustiças

“Em nosso mundo, que Tu amas mais que nós, avançamos rapidamente, sentindo-nos fortes e capazes de tudo. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”, lamentou o Papa. “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”, acrescentou.

Frente a isso, o chamado de Jesus, “um chamado à fé”, que não é tanto crer nele, “mas sim ir rumo a ti e confiar em ti”. Porque hoje “não é o momento do teu juízo, mas sim de nosso juízo: o tempo para escolher entre o que conta verdadeiramente e o que passa, para separar o que é necessário do que não é”.


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Vidas exemplares

E, também, o tempo para contemplar as “valentes e generosas entregas” daqueles que trabalham para curar, consolar, sustentar os doentes, por encontrar a cura do vírus, “companheiros de viagem que são exemplares, pois, diante do medo, reagiram dando a própria vida”. Tempo de ver “como nossas vidas estão tecidas e sustentadas por pessoas comuns – correntemente esquecidas – que não aparecem nas capas de jornais e de revistas, nem nas grandes passarelas do último show, porém, sem dúvidas, estão escrevendo hoje os acontecimentos decisivos de nossa história:

Médicos, enfermeiros e enfermeiras, encarregados de repor os produtos nos supermercados, faxineiras, cuidadores, motoristas, forças de segurança, voluntários, padres, religiosos, e tantos outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

E frente ao sofrimento, o grande chamado de Jesus: “Que todos sejam um”. Há esperança: “Quanta gente cada dia demonstra paciência e infunde esperança, cuidando de não semear pânico, mas corresponsabilidade. Quantos padres, mães, avôs e avós, professores mostram a nossas crianças, com gestos pequenos e cotidianos, como enfrentar e transitar uma crise readaptando rotinas, levantando o olhar e impulsionando a oração. Quantas pessoas rezam, oferecem e intercedem pelo bem de todos. A oração e o serviço silencioso são nossas armas vencedoras’.


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Sozinhos nós afundamos

Agora é a hora, concluiu Francisco: “O começo da fé é saber que precisamos de salvação. Nós não somos autossuficientes; sozinhos nós afundamos. Precisamos do Senhor como os marinheiros antigos das estrelas”.

“Convidemos Jesus para o barco da nossa vida. Vamos entregar nossos medos a ele, para que ele possa vencê-los. Como os discípulos, experimentaremos que, com Ele a bordo, não se naufraga. Porque esta é a força de Deus: transformar tudo o que acontece conosco, mesmo o mal, em algo bom. Ele traz serenidade em nossas tempestades, porque com Deus a vida nunca morre”, concluiu Francisco, que lembrou:

“Temos uma âncora: na cruz dele fomos salvos. Temos um leme: na cruz dele fomos resgatados. Temos esperança: em sua cruz, fomos curados e abraçados, para que ninguém ou nada nos separe do seu amor redentor”.

“No meio do isolamento em que estamos sofrendo a falta de afetos e encontros, experimentando a falta de tantas coisas, vamos ouvir mais uma vez o anúncio que nos salva: ele ressuscitou e vive ao nosso lado”, pediu Bergoglio, sublinhando as “novas formas de hospitalidade, fraternidade e solidariedade”. E assim, “abraçar o Senhor para abraçar a esperança. Essa é a força da fé, que liberta do medo e dá esperança”.

“Desde este lugar, que narra a fé pétrea de Pedro, nesta tarde gostaria de confiar todos ao Senhor, através da intercessão da Virgem, saúde de seu povo, estrela do mar tempestuoso. Desde essa colunata que abraça Roma e o mundo, desça sobre vós, como um abraço consolador, a benção de Deus. Senhor, abençoe o mundo, dê saúde aos corpos e console os corações. Pede-nos para que não sintamos medo. Porém, nossa fé é fraca e temos medo. Mas tu, Senhor, não nos abandona à mercê da tempestade”, finalizou, antes de orar em frente a Salus Populi Romani e o Cristo da Grande Peste para, depois, já do interior da basílica, orar frente ao sacrário – justo ao lado do mosaico que recorda a data de 11 de outubro de 1962, data da abertura do Concílio Vaticano II – e transmitir a benção Urbi et Orbi.

A íntegra da homilia do Papa Francisco, em português, pode ser lida aqui.

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