19 Abril 2018
"O cristianismo histórico, como costuma ser chamado, nem sempre, aliás, raramente foi o cristianismo. Quantos séculos mantiveram a instituição da escravidão, a guerra? O racismo vive ainda em terras cristãs, nas escolas católicas. Porque traímos o Evangelho dessa maneira? Agora já são vinte séculos de falsificação, porque conformamos o Evangelho com a nossa medida, em vez de transformar a nós mesmos com a medida do Evangelho. Todos os cristãos devem dar testemunho do Evangelho, assim como Cristo o pregou, em sua integridade, pureza e autenticidade. Então veremos que não há escravidão, racismo e guerra.
Devemos aprofundar o Evangelho na vida, na meditação. Não é mais possível viver como espectadores, sem trair o nosso batismo".
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 17-04-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há filmes e documentários que permitem aberturas para interpretar o presente e restituem com profundidade figuras de personagens que para nós, internautas do presente acostumados a navegar esquecidos do passado, são como um soco que nos atinge no estômago. Este é o caso de "Secondo lo Spirito” (Segundo o Espírito), o filme sobre o cardeal arcebispo de Bolonha Giacomo Lercaro, que será transmitido em horário nobre no domingo 22 de abril pela TV2000. Editado por Lorenzo K. Stanzani, autor e cineasta, o documentário - realizado pela Lab Film, uma empresa de produção cinematográfica independente - usa imagens e áudio inéditos e inicia com as fortes palavras do cardeal sobre o evangelho traído pelo cristianismo histórico. Há entrevistas com algumas das testemunhas, colaboradores de Lercaro, e há contribuições de historiadores e teólogos. Mas o suporte do filme é dado por imagens de época, que descrevem a vida desse protagonista da Igreja do século XX.
Nascido em Gênova, sacerdote zeloso de caráter forte, formador de opinião, arcebispo de Ravenna no pós-guerra, foi projetado, no início dos anos 1950, para a cátedra de São Petrônio em Bolonha pelo Papa Pio XII, e logo em seguida alçado a cardeal. Era um bispo que não gostava de viver sozinho e enchia seus palácios de rapazes pobres que ajudava a estudar, chegando até ter cerca de setenta à mesa todos os dias. Planejava novas igrejas para as periferias bolonhesas, confiando sua realização a grandes empresas de arquitetura. Expoente de ponta da Igreja do papa Pacelli de cunho radicalmente anticomunista nos primeiros anos da Guerra Fria, foi capaz de mil estratagemas para evitar publicamente apertar a mão do prefeito Giuseppe Dozza (partidário convicto do Partido Comunista Italiano), Lercaro se transformou vivendo a experiência do Concílio Ecumênico Vaticano II, onde no final da primeira sessão, em dezembro de 1962, proferiu um famoso discurso sobre a "Igreja dos pobres”. Candidato a papa no conclave de 1963, viu prevalecer Giovanni Battista Montini, considerado mais que ele candidato de mediação capaz de assegurar a continuação do Concílio, e também mais contido em ideias avançadas. O novo Papa Paulo VI nomeou-o entre os quatro "moderadores” do Concílio Vaticano II.
Desde sempre particularmente sensível à participação do povo na liturgia, o Papa Montini colocou-o à frente do Consilium ad Exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia, a comissão encarregada de implementar a reforma litúrgica. Ele disse, após a promulgação do novo missal romano: "Agora a missa não é mais como dizia o Cardeal Bevilacqua - brincando – um bando de padres que mudam de cor de domingo a domingo, paramentados agora de verde, agora de roxo, agora de branco. Pelo menos somos agora convidados a nos colocar cara a cara com o nosso povo. E falar a sua língua, não podemos mais dizer "orapronobisblablablaaa .. Amém!" Já não podemos mais fazer isso. Em uma escola primária de Bologna uma criança, disse que gostava muito da nova missa, mas o padre não sabia ler. Portanto devemos agora sentir a necessidade de nos preparar antes da missa, ou seja, ler de antemão a epístola, o Evangelho, não podemos improvisar a leitura, a celebração. As formas nos pedem uma preparação, mas ai de nós se encararmos a liturgia como um ritual ainda que composto, ainda que decoroso, seríamos como fariseus, limpos, mas nós não chegaríamos a ser cristãos".
"Se nós compartilhamos o pão celeste, como não compartilhar o pão terreno?" é a frase que Lercaro mandou gravar no altar da catedral de Bolonha. Suas corajosas aberturas sociais, suas homilias sobre os pobres, sempre foram enraizadas no Evangelho e nos Padres da Igreja, embora naquela época como hoje, sempre houve aqueles que procuram desacreditar tal magistério rotulando-o como "pauperismo". “Devemos dizer aos pobres que chegou o momento em que eles podem se sentar à mesa. Precisamos ir até Lázaro que espera do lado de fora da porta e aguarda as migalhas e dizer para sentar à mesa com a gente. Não podemos desonrar os pobres, sua eminente dignidade exige nosso respeito, e o requer como o exigia por Jesus, que se fez pobre".
"A evangelização dos pobres - dizia Lercaro - é o sinal do Messias, portanto, também da pobreza real. Que não é apenas a pobreza de dinheiro, no entanto, mas também uma pobreza de poder que a Igreja deve buscar, deve ter. A Igreja é tentada também a buscar o poder terreno, uma capacidade de influenciar; o sentido da pobreza na Igreja deve abraçar tudo isso".
E acrescentava: "Pensem um pouco, se nas últimas décadas do século XIX, quando os apóstolos do socialismo levavam sua pregação nas nossas áreas rurais ... se o clero, tivesse entendido que nessa pregação no fundo havia uma sede de justiça anunciada por Jesus, as nossas populações teriam sofrido os desvios que sofreram? E teriam se colocado contra a Igreja e os padres por serem aliados dos ricos, dos capitalistas e dos exploradores? Hoje reconhecemos que o que se pedia então era justo, pedimos mais do que o que era exigido então. Não reconhecer os sinais dos tempos é uma coisa ruim. Jesus repreendeu isso a seus contemporâneos e pedimos que ele não tenha que repreendê-lo a nós também".
O cardeal que chegou tarde à inauguração do Ano Acadêmico na universidade para evitar ser fotografado ao lado de Guiseppe Dozza sendo condecorado cidadão honorário de Bolonha pelo prefeito comunista que gostava do seu discurso sobre a Igreja dos pobres. E a cidade de Bolonha tornou-se o laboratório de degelo. Significativo é, finalmente, o magistério da paz do arcebispo de Bolonha.
A 08 de dezembro de 1967, o Papa Paulo VI instituiu 1º. de janeiro como o Dia Internacional da Paz. Era um momento de tensão entre o Leste e o Oeste, também devido à guerra no Vietnã, submetido ao bombardeio estadunidense. O Papa falava de paz, mas se mantinha longe de expor seu flanco ao pacifismo apoiado pelos soviéticos e, tentando uma mediação com o presidente norte-americano Lyndon Johnson, não condenava explicitamente os bombardeios. Nos Estados Unidos, o cardeal Francis Spellman - arcebispo de Nova York - abençoava o exército dos EUA e sua guerra. Lercaro quis celebrar de maneira não-formal o Dia da Paz: envolveu a cidade de Bolonha, as outras confissões religiosas. E pediu a Dom Giuseppe Dossetti, seu colaborador próximo, para preparar o esboço da homília que iria proferir na catedral em 1º. de janeiro de 1968.
Naquele dia, ele disse: "Eu gostaria de preencher esse momento com tudo o que tenho dito e feito pela paz em toda a minha vida. Mas principalmente agora dobro meus joelhos diante do Senhor, que há de julgar minha vida e meu episcopado, e me pergunto se o que eu disse até agora é suficiente. É claro que a Igreja não pode e não deve considerar-se árbitro das disputas políticas entre as nações. Mas a Igreja não pode ser neutra diante do mal, venha de onde vier: o seu caminho não é a neutralidade, mas a profecia; isto é, falar em nome de Deus, a palavra de Deus. Portanto, na humildade mais sincera, na consciência dos erros cometidos na sua política temporais do passado, a doutrina da paz da Igreja é obrigada a chegar ao juízo hoje de que os EUA devem desistir dos bombardeios aéreos sobre o Vietnã do Norte. A Igreja deve dizer isso, mesmo que seja do desagrado de alguém. O profeta pode encontrar desacordos e rejeições, aliás, é normal que, pelo menos em um primeiro momento, isso aconteça: mas se falou não segundo a carne, mas segundo o Espírito, encontrará mais tarde o reconhecimento de todos".
Foi a gota d’água. Lercaro completou 76 anos, Paulo VI o afastou - a seu pedido - da responsabilidade do Consilium para Exsequendam Constitutionem da Sacra Liturgia e lhe deu um coadjutor com direito de sucessão na pessoa do Bispo Antonio Poma. Em 12 de fevereiro de 1968 chegou a notícia da aposentadoria do cardeal, "por causa da idade avançada e das condições de saúde", como explicava o comunicado oficial da Secretaria de Estado. Poma se tornou arcebispo de Bolonha. Mas não foi uma renúncia espontânea: a demissão de Lercaro foi solicitada por um emissário de Paulo VI. O cardeal, com um estilo eclesial exemplar, aceitou sem nenhuma rebelião ou recriminação.
Ao cardeal não foi explicado o motivo. Nem mesmo no filme de Stanzani trata-se a respeito, limitando-se obviamente a ressaltar a coincidência com o forte discurso sobre a paz de 1º. de janeiro. Mas é possível que na origem da decisão do Papa Montini também houvesse outras razões, relacionadas com a gestão financeira da diocese (as dívidas contraídas para a construção das novas igrejas) ou a implementação da reforma litúrgica, ou ainda informações recebidas de outros ambientes da Igreja de Bolonha.
Está documentado que naquele mesmo ano de 1968, Paulo VI iria se arrepender de sua decisão. Recordando no décimo aniversário da morte a figura do Cardeal Lercaro, que havia sido seu professor no seminário e seu colega como cardeal, em 1953, o arcebispo de Gênova, Giuseppe Siri, em outubro de 1986, disse: "Chegou o dia em que deixou a Cátedra de São Petrônio. Quando Paulo VI lhe disse que estava disposto a lavá-lo de volta àquela Cátedra, ele imediatamente e decididamente recusou. O que tinha sido feito, devia ficar assim como estava".
"Então ele se retirou para a sua obra: a Villa San Giacomo. Naquela ocasião - continuou Siri - o antigo arcebispo, ficou em silêncio. Com estupenda dignidade tomou seu lugar de educador e foi o pai da obra que ele criara. A obra vive em seu nome e isso é magnífico! Naquela época nós conversamos muito e eu estava profundamente admirado com sua atitude interior, exclusivamente preocupado com o bem da Igreja, sem pesar, sem reclamações, sem sombra de amargura. Entendi que ainda não o conhecia tão bem. Era a sua oração. Ficou nele um espinho, mas que nos ajuda a compreendê-lo melhor: ele temia não estar em perfeito acordo com o Sumo Pontífice. Tal espinho o fazia sofrer em silêncio". Outros tempos, outros protagonistas da história da Igreja.
Dois anos após a renúncia forçada, quarta-feira, 24 de junho de 1970, o Papa Montini na catequese da audiência geral citou Lercaro, reconhecendo o valor de seu magistério. "Um exame crítico, histórico e moral - disse Paulo VI – impõe-se para dar à Igreja a sua face verdadeira e moderna, em que a presente geração deseja reconhecer aquela de Cristo. Quem falou a esse respeito deteve-se especificamente sobre essa função da pobreza eclesial, isto é, aquela de documentar a correta visibilidade da Igreja. Assim falou especialmente o Card. Lercaro no final da primeira sessão do Concílio (6 de dezembro de 1962), insistindo no "aspecto” que a igreja hoje precisa mostrar, aos homens do nosso tempo em especial, o aspecto com o qual se revelou o mistério de Cristo: o aspecto moral da pobreza, e o aspecto sociológico da sua opção preferencial pelos pobres".
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Lercaro e a 'Igreja dos pobres' meio século depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU