Os dois grupos de clérigos e a ''narrativa papal''

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17 Março 2018

“Nós nos movemos continuamente entre dois grupos de padres: os clericais-clericais e os clericais anticlericais” (Charles Péguy). O convite a caminhar na fé dos apóstolos e a redescobrir o frescor do Evangelho, com seu traço tão elementar, podia ser subversivo para muitos daqueles – jornalistas, clérigos, intelectuais, altos eclesiásticos, “leigos engajados” de profissão – que ocupam alguma posição no grande jogo dos papéis dos aparatos eclesiais. Para muitos, a maneira mais fácil de não perder golpes e não perder pontos foi a de concentrar os refletores sobre a figura do papa. Separando-o do corpo vivo da Igreja para fazer dele uma mônada, ou uma estrela, ou um líder partidário. E desencadear ao redor da sua figura uma polarização universal, para depois delinear equipes e iniciar a disputa infinita entre os detratores e os apoiadores-defensores do atual sucessor de Pedro.

A reportagem é de Gianni Valente, publicada no sítio Vatican Insider, 15-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para que o jogo funcione, é preciso manter o papa prisioneiro no seu personagem. Remeter tudo à “excepcionalidade” ou às anomalias de sua pessoa. Deturpar ou exaltar todos os seus gestos como expressão de seus gostos privados e de suas ideias pessoais, ou dos reflexos condicionados que derivam de seu trajeto existencial-cultural. E poder enquadrar também sua figura na grade dualista que lê tudo o que acontece na Igreja também de acordo com as dialéticas entre liberais e conservadores, entre direita e esquerda.

Ficar o tempo todo disputando sobre os gestos e as escolhas do papa argentino tornou-se a nova ocupação principal de uma classe de comentaristas, intelectuais e jornalistas, que levantam a bola uns para os outros, mesmo quando se agridem ou fingem se agredir. A comunicação dos “house organs” católicos às vezes se adapta e pisca o olho, dando sua contribuição para a construção do “personagem” papal e alinhando-se com os conformismos necessários para participar do jogo.

Às vezes, as duas equipes se sustentam e se credenciam mutuamente. Parecem se mover nas mesmas direções. Apontam os refletores sobre o papa, sobre sua figura, talvez sobre suas originalidades não rituais e sobre seus slogans, enquanto escondem os traços elementarmente evangélicos e apostólicos de seu magistério.

O lobby dos pequenos inquisidores

Os agressores de Bergoglio vagam todo o dia ansiosos para pegar o sucessor de Pedro em falso. Competem para denunciar sua última suposta blasfêmia, seu último suposto descarte das formas definidas da vida eclesial e da doutrina católica.

Os doutrinalistas que se lançam contra o papa dão prova de que não conhecem não amam a doutrina católica. Caso contrário, notariam que todos os pronunciamentos e sugestões do Papa Francisco se movem no grande leito da Tradição. Quem ama e segue a doutrina agradece aos Padres, aos papas e aos concílios que deram à Igreja a clareza luminosa de tantos símbolos, definições e cânones. E, ao mesmo tempo, repete com toda a Tradição da Igreja que a doutrina, por si só, não salva. E que, para experimentar a salvação prometida por Cristo, não basta ter conhecimento (gnose) das verdades da fé e da doutrina, mas é preciso ser abraçado pela Sua graça e pela Sua misericórdia que perdoa e cura. Assim como o Papa Bergoglio sempre repete também, sem mudar uma vírgula da doutrina que nos foi dada.

O aparato lobbístico que ataca o Papa Francisco, com suas centrais globais, as conexões internacionais e as subseções nacionais, na realidade, é um grande fator de devastação da Tradição e da memória cristã. Atacam o papa porque ele não fala a gíria deles. Depois disso, com um trabalho que durou décadas inteiras, transmutaram geneticamente alguns conteúdos cristãos em ideologia de tribo identitária, a ser investida nas “batalhas culturais”. Assim, atormentam o bispo de Roma em nome da “verdadeira” doutrina, visam a desorientar os simples batizados católicos, comumente inclinados a uma simpatia e a uma devoção instintiva (sensus fidei) pelo papa, mesmo quando não são tocados pelo seu “selo” pessoal.

Narcisismos “bergoglistas”

Mas também muitos fãs declarados do papa parecem se mover no horizonte mental dos seus adversários de teclado, que já haviam hegemonizado há muito tempo a praça virtual. Eles também parecem crer que a Igreja cresce, se alimenta e muda por força de batalhas culturais sobre ideias justas. E que basta “mudar a agenda”, transformando as ideias – interessantes, originais, óbvias, discutíveis – do Papa Bergoglio em novo armamentário para novas “cultural wars”.

Assim, até mesmo as expressões utilizadas de modo mais recorrente pelo Papa Bergoglio (“Igreja em saída”, “ir às periferias”, “conversão pastoral”) podem se tornar um mantra de novos narcisismos clericais, slogans à disposição daqueles que buscam visibilidade e oportunidades autocelebrativas, usando como álibi a gestão do ícone-pop papal.

Toda representação do papa como “fator fontal”, como demiurgo de uma “nova” Igreja e de um “novo” mundo acaba por se tornar, no longo prazo, um instrumento de autodesmantelamento eclesial. Porque obscurece a natureza sinodal da Igreja ou a preeminência do povo de Deus. Mas, acima de tudo, porque oculta o fato de que somente a obra da graça de Cristo sustenta e conserva o sucessor de Pedro, anima as estruturas apostólicas da Igreja a serviço dos batizados e conforta e regozija o povo de Deus que caminha na história.

Efeitos colaterais

“É inevitável que ocorram escândalos”, diz Jesus no Evangelho. E o Papa Bergoglio repete que, mesmo na Igreja, convém “acariciar o conflito”, sem ter medo dele. Mas não é interessante brigar sobre os “gostos pessoais” do papa, sobre seus supostos “desígnios”, sobre suas inclinações pessoais. E, às vezes, é a impressão dada por aqueles que participam da “guerra” em torno do Papa Francisco.

A “luta contínua” em torno do papa sinaliza ou produz uma situação patológica. Na Igreja, quando as pessoas se dividem por tomar partido e por muito tempo sobre o papa, tal fenômeno não pode ser vivido por ninguém que se preocupe com a Igreja como sintoma de vivacidade e de boa saúde. A polarização em torno do papa, no longo prazo, desgasta, exaspera, torna obtuso. Alimenta a euforia apenas das corjas e das “panelinhas”, daqueles que visam a lucrar visibilidade e escórias de poder clerical-mundano à sombra dos aparatos eclesiásticos. Em vez disso, aflige o pequeno resto do povo de Deus, que não busca “novas” Igrejas, não se inebria com os novos “desafios” que tanto excitam os auto-ocupados eclesiais. Porque ele já vive como um milagre o simples fato de ser guardado na fé, ao longo do caminho entre as fadigas de todos os dias, graças também às palavras e aos gestos do sucessor de Pedro.

A “luta contínua” em torno do papa tem um efeito inevitável e facilmente constatável: o crescimento exponencial daquela “autorreferencialidade” que o cardeal Bergoglio, que se tornou Papa Francisco, continua indicando como fator de origem de muitas patologias eclesiais.

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