Os dons espirituais e teológicos da Reforma. Artigo de Nunzio Galantino

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30 Outubro 2017

“Se, de fato, através da Reforma, recebemos dons espirituais e teológicas, eles não podem deixar de vir do Espírito que guia e protege a Igreja de Cristo no seu acidentado percurso histórico.”

A opinião é do bispo italiano Nunzio Galantino, secretário-geral da Conferência Episcopal Italiana e bispo emérito de Cassano all’Ionio. O artigo foi publicado por Il Sole 24 Ore, 28-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O esforço de extrair temas relevantes de uma simplificação deletéria nunca é demais. E, sobretudo, nem sempre alcança bons resultados. De fato, pode ocorrer que, a considerações bastante evidentes para quem está habituado a ler e a refletir, oponham-se reações descontroladas e acusações infundadas.

Há algum tempo, eu vinha meditando sobre a comprometedora afirmação de São Tomás de Aquino. “Omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sancto est” (Summa Theologiae, I-II, q.109, a.1, ad 1: “Toda verdade, seja por quem seja dita, vem do Espírito Santo”). Há aqui, por parte do grande doutor da Igreja, o convite a se colocar diante dos acontecimentos da história entrevendo neles a ação do Espírito. Não só dentro da Igreja, mas também em eventos às vezes cruéis, muitas vezes dramáticos, que estimulam a sua purificação e a sua reforma.

É nesse horizonte de fé que eu também leio a Reforma protestante, cujo amanhecer irrompeu na história europeia há 500 anos, mais ou menos, com a publicação das 95 teses de Martinho Lutero contra a compra e venda das indulgências. O monge agostiniano ermitão as havia anexado a uma carta, enviada ao arcebispo de Mainz e ao ordinário da diocese de Wittenberg, para denunciar os modos escandalosos em que era conduzida a venda das indulgências.

Além disso, ele também considerava que o próprio papa concordaria com ele ao reprovar esse mercado da graça, se é verdade que ele chegou a escrever: “Assim como o papa, com razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram defraudar o comércio de indulgências, muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade” (teses 73-74), e ainda: “O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus” (tese 62). “Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque ‘faz com que os primeiros sejam os últimos’ (Mt 20, 16)” (tese 63).

Está historicamente comprovado. Os eventos que levaram à excomunhão e ao cisma são o fruto de um emaranhado de elementos (políticos, econômicos, teológicos, eclesiásticos) muito difíceis de desfazer. Não podemos ignorar um aspecto dessa dolorosa situação: a revolução luterana, de fato, levou ao Concílio de Trento e à reforma da Igreja Católica Romana, da qual há muito tempo se sentia a necessidade, mas que os Concílios anteriores (Lateranense V e Florença) não conseguiram implementar. Nessa perspectiva, o Papa Ratzinger podia afirmar que nem mesmo a Igreja Católica seria a mesma sem Lutero.

Eu também acho que este quinto centenário do início do protestantismo não pode ser considerado um “jubileu”, já que – como defendido pelo teólogo G. Lorizio em um recente congresso internacional realizado na Pontifícia Universidade Lateranense e intitulado significativamente “Paixão por Deus” – “tratou-se de um evento que podemos representar com a metáfora de uma fissão nuclear, que liberou enormes energias em ambos os campos, que, de vez em quando, dirigiram-se à evangelização, mas também à recíproca polêmica conflitual entre as confissões cristãs e até mesmo às guerras religiosas”.

Mas, embora, naquele contexto, o pastor-teólogo valdense Paolo Ricca também tenha depreciado fortemente a violência perpetrada em nome da pertença confessional, não se ignorou o aspecto mais profundo e teologicamente significativo da ação do Espírito, que, abalando as estruturas político-eclesiásticas da época, forçou todas as Igrejas a retornarem à mesma pureza do Evangelho, que o Concílio de Trento também pretendeu assumir.

Agora, esperamos que os tempos da violência tenham passado para sempre, embora sejamos obrigados a registrar atitudes de violência verbal e de incompreensão por parte daqueles que não pretendem assumir essa conversão ao Evangelho que a autêntica espiritualidade cristã requer.

Infelizmente, chega-se a manipular expressões e posições alheias, com o simples objetivo de reacender polêmicas, que a história nos convida a arquivar definitivamente. Também não serve uma espécie de fácil bondade ecumenista exagerada, nem uma espécie de “apologética da divisão” (G. Lorizio). Restam diferenças nas linguagens, nos modos de expressar a relação com o Evangelho da graça, nas estruturas eclesiásticas, nas doutrinas e nas teologias, mas – como disse o Papa Francisco em Lund: “Não podemos nos resignar à divisão e à distância que a separação produziu entre nós. Temos a possibilidade de reparar um momento crucial da nossa história, superando controvérsias e mal-entendidos que, muitas vezes, nos impediram de nos compreender mutuamente”.

Quem alimenta a polêmica decide não aproveitar essa oportunidade e, de fato, implementa uma apologética da divisão, que não pode pertencer ao cristão e, menos ainda, ao católico. A declaração conjunta assinada há um ano, por ocasião do início da comemoração de 1517, não pode ser ignorada nem esquecida:

“Ao mesmo tempo que estamos profundamente gratos pelos dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma, também confessamos e lamentamos diante de Cristo que luteranos e católicos tenham ferido a unidade visível da Igreja. Diferenças teológicas foram acompanhadas por preconceitos e conflitos, e instrumentalizou-se a religião para fins políticos. A nossa fé comum em Jesus Cristo e o nosso Batismo exigem de nós uma conversão diária, graças à qual repelimos as divergências e conflitos históricos que dificultam o ministério da reconciliação. Enquanto o passado não pode ser modificado, aquilo que se recorda e o modo como se recorda podem ser transformados”.

Se, de fato, através da Reforma, recebemos dons espirituais e teológicas, eles não podem deixar de vir do Espírito que guia e protege a Igreja de Cristo no seu acidentado percurso histórico.

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