Sínodo Pan-Amazônico: Integralidade e interligação. O Instrumentum Laboris tem o mesmo espírito da Laudato Si’. Entrevista especial com Dom Roque Paloschi

Celebração na Amazônia | Foto: Vatican News

Por: Entrevista: Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: Patricia Fachin | 21 Junho 2019

O Instrumentum Laboris do Sínodo Pan-Amazônico apresentado nesta segunda-feira, 17-06-2019, no Vaticano, “está mergulhado no mesmo espírito” de integralidade e de interligação presente na Carta Encíclica Laudato Si' do Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum, publicada em 2015, afirma Dom Roque Paloschi à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ele, o “Instrumentum Laboris é fruto deste vasto processo e quer dar voz a essa parcela ‘invisível’ da sociedade que há tempo não é considerada suficientemente no contexto nacional ou mundial, nem sequer na vida da Igreja, mas que agora se constitui um interlocutor privilegiado”.

Na avaliação de Dom Roque Paloschi, os temas abordados no Instrumentum Laboris estão “entrelaçados como a trama de uma rede e expressam clamores existenciais” e o documento busca responder às “verdadeiras necessidades dos povos amazônicos”. Entre os pontos do texto que merecem destaque, o arcebispo de Porto Velho menciona “a problemática atual dos processos migratórios que se acentuaram nos últimos anos afetando a vida das pessoas em todas as dimensões: social, econômica, familiar, religiosa e cultural”, “o crescimento da violência como consequência da miséria e injustiça, vitimando, principalmente, mulheres, crianças, indígenas e negros”, “a necessidade de uma pastoral sacramental inclusiva que venha ao encontro das necessidades das famílias” e a “promoção e incentivo da ação dos leigos na política, na economia, na Igreja”.

Dom Roque (Foto: CIMI)

Dom Roque Paloschi, gaúcho de Lajeado, é arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. Acompanhou de perto a demarcação da terra de Raposa Serra do Sol.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como foi feito o processo das escutas sinodais e qual a sua avaliação sobre o processo?

Dom Roque Paloschi - Pode-se dizer que a partir da convocação do Sínodo (15 de outubro de 2017), o processo de escuta teve início, mesmo que ainda não de forma oficial e organizada. Depois, esse processo foi ganhando forma e força, principalmente a partir do questionário do documento preparatório, que deu ao processo de escuta uma estrutura sinodal. E, com a visita do Papa Francisco a Puerto Maldonado (19 de janeiro de 2018), ouvindo os indígenas daquela região amazônica, esse processo de escuta ficou oficializado.

O processo de escuta teve e tem um método muito claro: começou da base, da escuta das minorias indígenas, ribeirinhas, quilombolas, seringueiros, extrativistas, mulheres, idosos, jovens, etc., do povo que vive na pele os desafios de habitar a região pan-amazônica.

Em parceria com a Rede Pan-Amazônica - Repam, foram realizadas 60 Assembleias territoriais de até 200 pessoas que se desenvolveram ao longo dessa fase preparatória do Sínodo. Ao todo, foram 260 escutas em toda a região; 25 fóruns temáticos com visão pan-amazônica, olhando o território como lugar teológico e sociológico; 180 rodas de conversas nas mais diversas comunidades; 22 mil pessoas formalmente registradas e escutadas, além de 65 mil pessoas envolvidas no processo preparatório, num total de, mais ou menos, 87 mil participantes; 174 povos originários representados, o que equivale a 44% de um total de 390 que sabemos que existe na Amazônia, juntamente com 90% de todos os Bispos da Amazônia que participaram desses espaços. Homens e mulheres de realidades diversas e adeptos da causa do cuidado da Casa Comum querendo dizer sua palavra porque sabem que o Papa quer escutá-los para tentar caminhar juntos em uma mesma direção a partir dessa escuta direta do povo de Deus.

Sabemos que a síntese dessas respostas ao questionário por parte das Conferências Episcopais e das comunidades será sempre incompleta e insuficiente porque não consegue retratar toda a riqueza das escutas. Por isso mesmo é que este processo deve continuar, durante e depois do Sínodo, como um elemento central da vida futura da Igreja.

O presente Instrumentum Laboris é fruto deste vasto processo e quer dar voz a essa parcela “invisível” da sociedade que há tempo não é considerada suficientemente no contexto nacional ou mundial, nem sequer na vida da Igreja, mas que agora se constitui um interlocutor privilegiado. A meu ver, o processo de escuta conseguiu tocar questões nevrálgicas e de extrema importância para a vida do povo e para a presença significativa da Igreja. Resta agora dar continuidade a esse processo.

IHU On-Line - Como esse processo das escutas sinodais aparece no Instrumentum Laboris?

Dom Roque Paloschi - O Papa Francisco afirmou que o Sínodo para a Amazônia tinha três tarefas para cumprir. A primeira tarefa era de escuta do grito do povo amazônico e da natureza. Essa primeira tarefa pode-se dizer que foi atingida com o processo de escuta a partir do documento preparatório e do questionário.

A segunda tarefa é fazer memória para constatar as amarras coloniais que entravam a missão e assumir um árduo processo de descolonização que abranja os campos sociais, políticos, econômicos e eclesiais. É nessa segunda tarefa que se encaixa o Instrumentum Laboris.

Na sua primeira parte, o Instrumentum Laboris busca fazer memória de todas as realidades que vieram à tona a partir do processo de escuta, com a finalidade de apresentar a realidade do território e de seus povos. Na segunda parte aborda a problemática ecológica e pastoral a partir dos clamores escutados. E na terceira parte aborda diretamente a problemática eclesiológica e pastoral que foram constatados no processo de escuta. Portanto, podemos afirmar que a escuta dos povos, da terra, da igreja local, da floresta estão bem representadas dentro do Instrumentum Laboris. Mas, isso não significa que o processo de escuta está concluído ou fechado.

O Sínodo tem a preocupação de não deixar cair nenhuma das contribuições dadas no processo de escuta, dando a mesma atenção que tem a fala dos senhores bispos para a fala do indígena da aldeia mais distante e, aqui para nós, sabemos que, para o Papa, é essa última que precisa ser ouvida. Para garantir a fidelidade ao processo de escuta, durante todo o Sínodo haverá uma comissão observando se alguma coisa importante ficou de fora. Desta maneira, a escuta dos povos e da terra por parte de uma Igreja chamada a ser cada vez mais sinodal.

O bom resultado do Instrumentum Laboris é que será possível atingir a terceira tarefa que o Papa Francisco estipulou para o Sínodo: fazer a opção primordial pela vida dos mais indefesos que são os povos indígenas. Sabendo que essa é uma árdua missão que encontra e encontrará muitas resistências, dentro e fora da Igreja, é que o documento busca trabalhar dentro da estrutura das três conversões às quais nos convida o Papa Francisco: a conversão pastoral, a conversão ecológica e a conversão à sinodalidade eclesial. Os novos caminhos para a Igreja e para a ecologia integral dependem desse caminho de conversão.

IHU On-Line - Quais pontos devem ser destacados como principais no Instrumentum Laboris?

Dom Roque Paloschi - Penso que o Instrumentum Laboris do Sínodo Pan-Amazônico está mergulhado no mesmo espírito da Laudato Si’, que é da integralidade, da interligação. Dessa forma, se torna muito difícil destacar um ponto mais importante, visto que eles estão entrelaçados como a trama de uma rede e expressam clamores existenciais. É claro que sempre podemos destacar um ou outro ponto mais urgente, mas não se pode esquecer que é exatamente isso que estamos tentando aprender dos povos amazônicos, a evitar a fragmentação.

Dessa forma, seguindo a linha do mais urgente, podemos destacar alguns pontos:

1. A problemática atual dos processos migratórios que se acentuaram nos últimos anos afetando a vida das pessoas em todas as dimensões: social, econômica, familiar, religiosa e cultural.

2. O acelerado fenômeno da urbanização causado pelo êxodo rural e o inchaço das cidades, forçando as pessoas a viverem sem o mínimo de dignidade.

3. A ação criminosa do governo na retirada de direitos adquiridos e sua ação predatória.

4. O crescimento da violência como consequência da miséria e injustiça, vitimando, principalmente, mulheres, crianças, indígenas e negros.

5. A necessidade de uma pastoral sacramental inclusiva que venha ao encontro das necessidades das famílias.

6. A atrasada necessidade de se reconhecer o protagonismo feminino e seu lugar fundamental e na Igreja.

7. A promoção e incentivo da ação dos leigos na política, na economia, na Igreja.

8. A urgente reforma das estruturas dos seminários, para favorecer a formação de uma mentalidade mais sinodal e serviçal nos candidatos ao sacerdócio.

9. A corajosa decisão de estudar a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idôneas, mesmo casadas.

10. Fortalecimento das pastorais, movimentos e organismos sociais que lutam pelos direitos dos mais fracos.

Todos os pontos destacados implicam num verdadeiro processo de conversão a fim de que se busque responder não às expectativas, mas às verdadeiras necessidades dos povos amazônicos e poder responder como Igreja profética e samaritana.

IHU On-Line - Quais as questões que faltaram ser abordadas no Instrumentum Laboris?

Dom Roque Paloschi - Se compararmos ao Documento Preparatório, vamos perceber que alguns temas que apenas foram citados lá, agora, no Instrumentum Laboris foram melhor desenvolvidos como, por exemplo, temas sobre a comunicação e sobre a mulher. Outros, como o ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a vida consagrada feminina, principalmente, continuaram sem muita expressividade mesmo sendo citados.

É normal que numa proposta sinodal, onde o processo foi construído com a escuta de uma diversidade de povos, sempre fique a sensação de que faltou algo. A meu ver, talvez não tenha faltado, mas, com certeza, algumas questões foram abrandadas e se percebe um cuidado minucioso na escolha das palavras. Por um lado, é positivo porque se quer evitar a manipulação das reflexões; por outro, é preciso cuidado para não deixar de dizer o que é preciso ser dito por medo das reações.

IHU On-Line - Dada a atual conjuntura da Igreja, quais serão os desafios de atender os clamores das comunidades amazônicas, sobretudo indígenas e ribeirinhos?

Dom Roque Paloschi - O Sínodo para a Amazônia com sua proposta de novos caminhos para a Igreja e para a ecologia integral encontra desafios que se dividem em duas categorias: ad intra e ad extra.

Ad intra, podemos dizer que, apesar de Francisco, a atual conjuntura da Igreja tende para um fechamento que se agarra com todas as forças à estrutura institucional como se ali estivesse a razão de ser da Igreja, sem a qual ela deixaria de ser o que é. Como dizia São Paulo, “os mais notáveis da Igreja” (Gl 2,6) e alguns “superapóstolos” (2Cor 11,5) não veem com bons olhos a proposta de construção dos novos caminhos a partir de “relações interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança” (DAp. 97).

Ad extra o desafio se dá no diálogo com o mundo e a sociedade atual, principalmente no embate entre os interesses econômicos que repelem todas as tentativas de mudança, fazendo uso criminoso da força, transgredindo os direitos fundamentais das populações e as normas para a sustentabilidade e a preservação da Amazônia. Em resumo, podemos dizer que o grande desafio está em conseguir dialogar e resistir.

IHU On-Line - O documento cita algumas questões polêmicas (que acabam recebendo um maior destaque na mídia e criam mais expectativa), como novos ministérios, o papel da mulher e a relação da Igreja Católica com outras Igrejas. Nessa perspectiva, quais são os caminhos e ações mais urgentes que o Sínodo precisa estabelecer para a Igreja Pan-Amazônica? E como pode apontar caminhos para a Igreja universal?

Dom Roque Paloschi - Antes de tudo, o Sínodo precisa ter claro que ele acontece não para responder a expectativas das pessoas, mas sim a necessidades concretas da Igreja Pan-Amazônica. Partindo desse princípio, é necessário orientar a atenção e ação para identificar as reais e mais urgentes necessidades e, a partir daí, encontrar novos caminhos para resolvê-las.

Sem sombra de dúvida, a estrutura ministerial e as possibilidades colocadas em pauta para selecionar e preparar os ministros autorizados (IL, n. 126c) é uma ação necessária. Outra ação mais do que necessária é o reconhecimento oficial do ministério feminino (IL, n. 129.3). Talvez o alvoroço todo se dá porque se usou a palavra pessoa e não homem na seguinte frase no Instrumentum Laboris: “... se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas” (IL, n. 129.2). Colocando de lado a polêmica midiática, não se pode negar a urgência de reflexão e ação sobre os dois temas citados.

Existem comunidades ribeirinhas que têm missa uma vez ao ano ou menos do que isso, porque faltam ministros ordenados. No entanto, lá existem casais de vida idônea, mulheres, religiosas ou não, leigos e leigas que doam suas vidas nos lugares mais longínquos aonde ninguém quer ir. Não estou dizendo o que deve ou não ser feito, mas afirmo que é preciso refletir a partir das necessidades locais e não a partir dos “achismos”, esse é talvez o grande desafio.

Por fim, outro tema que pede uma ação urgente é o cuidado da Casa Comum que exige uma Igreja profética, aliada aos movimentos sociais de base na luta pela justiça e defesa da vida biológica, espiritual e ecológica. Essas grandes urgências mostram que a “preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões” (EG, 239) sempre foi a causa do Reino de Deus. Talvez essa seja a grande lição para a Igreja universal.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Dom Roque Paloschi - Destaco que, não obstante todas as fragilidades e limitações, o Instrumentum Laboris revela uma enorme abertura da Igreja na busca do diálogo verdadeiro, respeitoso e acolhedor das mais diversas formas de expressões culturais e de espiritualidades dos povos amazônicos. Os novos caminhos para a Igreja e para a ecologia integral serão construídos no cultivo do diálogo a favor da vida e a serviço do “futuro do planeta” (LS, 14).

 

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