14 Mai 2025
"Embora ainda seja cedo para conclusões definitivas, uma frase pronunciada pelo próprio papa em seus primeiros discursos pode condensar uma resposta: 'Sou um filho de Santo Agostinho.' Essa autodefinição, longe de ser apenas uma referência biográfica ou espiritual, oferece uma chave hermenêutica decisiva para compreender seu pensamento — e, possivelmente, o rumo de seu pontificado", escreve Carlos Eduardo Sell, sociólogo, professor da UFSC e autor do livro Para onde vai a Igreja Católica? (Editora Vozes).
Desde sua eleição, o Papa Leão XIV tem sido alvo de intensos debates, frequentemente polarizados em torno de categorias binárias: seria ele um papa “progressista”, “conservador” ou uma síntese desigual de ambos? Representaria uma continuidade ou uma correção em relação a seus predecessores, especialmente o Papa Francisco? Embora compreensível no campo do debate público e midiático, essa dicotomia empobrece a análise e obscurece o que parece ser o traço verdadeiramente original deste novo pontificado.
A pergunta mais relevante talvez seja outra: qual é a teologia própria de Leão XIV? O que o distingue, em termos doutrinais, espirituais e eclesiológicos, dos pontífices que o antecederam?
Embora ainda seja cedo para conclusões definitivas, uma frase pronunciada pelo próprio papa em seus primeiros discursos pode condensar uma resposta: “Sou um filho de Santo Agostinho.” Essa autodefinição, longe de ser apenas uma referência biográfica ou espiritual, oferece uma chave hermenêutica decisiva para compreender seu pensamento — e, possivelmente, o rumo de seu pontificado.
É à luz dessa chave que busco delinear os sinais do fundamentais do “programa pontifical” já esboçado por Leão XIV:
(1) sua leitura do mundo contemporâneo, centrada na questão digital;
(2) sua interpretação do Concílio Vaticano II, articulada em seis pontos; e
(3) o modo como ambos os elementos se integram sob um horizonte agostiniano, marcado por intenso cristocentrismo e por uma concepção histórico-teológica inspirada na contraposição entre a Cidade de Deus (luz) e a Cidade dos Homens (sombras), segundo o bispo de Hipona.
Estaria aí o futuro núcleo teológico de seu pontificado?
A escolha do nome “Leão XIV” é reveladora da orientação do novo papa quanto à relação entre Igreja e sociedade. Em seu primeiro discurso ao Colégio dos Cardeais, ele apresentou “diversas razões [1]” para essa escolha, destacando em particular a figura de Leão XIII. Tal evocação gerou duas interpretações principais entre os analistas:
Leão XIV parece, deliberadamente, reunir essas duas perspectivas sob um mesmo horizonte: o diálogo com a modernidade é compreendido como condição para enfrentar as novas questões sociais. Essa abordagem se desdobra em dois níveis:
Internamente, Leão XIV deixa claro que compreende sua missão à luz do Concílio Vaticano II. Trata-se do caminho que a “Igreja universal percorre há décadas” [2] e ao qual ele adere plenamente. Mais do que isso, ele se posiciona como continuidade de Francisco, apresentado como aquele que “recordou e atualizou magistralmente os conteúdos” conciliares. Francisco é assim situado como momento articulador dentro de uma tradição viva.
Seu programa eclesiológico se estrutura em seis pontos:
O quinto ponto — o cuidado com os excluídos — revela a influência da Teologia da Libertação, possivelmente oriunda de sua experiência pastoral no Peru.
Destaca-se também a articulação entre colegialidade e sinodalidade. Leão XIV evita tanto a separação rígida quanto a fusão indistinta desses conceitos. Busca um equilíbrio entre o papel dos bispos e o protagonismo do Povo de Deus, evitando tanto o clericalismo quanto o populismo eclesial.
Quanto ao sensus fidei, sua valorização não remete à assimilação de demandas morais de matriz secular, mas à religiosidade popular, vista como expressão viva e encarnada da fé em sintonia com a Tradição.
Leão XIV se move claramente nos trilhos do Vaticano II. Sua eclesiologia ecoa a Lumen gentium, com ênfase na sinodalidade, no sensus fidei e na missão compartilhada; sua relação com o mundo moderno é mediada pelo espírito dialógico da Gaudium et Spes, sensível aos “sinais dos tempos”.
Mas há também um elemento distintivo: a reinterpretação dessas categorias sob uma chave agostiniana. Seu brasão papal — com um coração transpassado sob um livro — e seu antigo lema episcopal In illo uno sinalizam essa matriz.
Entre as obras de Agostinho, destaca-se aqui A Cidade de Deus, escrita no contexto do colapso romano, que propõe uma leitura teológica da história em termos de tensão entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, entre o amor de Deus até o desprezo de si e o amor de si até o desprezo de Deus. Essa matriz se manifesta em três aspectos do pontificado nascente:
3.1. “O primado de Cristo” – já em sua primeira manifestação na Basílica de São Pedro, o papa afirma: “Somos discípulos de Cristo. Cristo vai à nossa frente” [3].
Sua primeira homilia parte da confissão de Pedro — Tu és o Cristo — como chave da missão da Igreja, que deve conservar, aprofundar e transmitir esse tesouro da fé. Isso implica uma conversão pessoal e comunitária contínua, cujo fruto é a proclamação da Boa Nova.
3.2. “Nas ondas da história”: a Cidade dos Homens – ao refletir sobre a condição espiritual da humanidade atual, Leão XIV emprega a dicotomia entre luz e trevas. A incompreensão da mensagem de Cristo é, para ele, o traço central do mundo contemporâneo. Ele distingue duas atitudes: a rejeição aberta de Cristo — típico de contextos secularizados — e a aceitação superficial, que reduz Jesus a uma figura inspiradora ou a um super-homem. Ambas expressam o que chama de ateísmo funcional, inclusive entre os batizados. Diante disso, a missão da Igreja é clara: testemunhar com alegria a fé em Cristo num mundo que, mesmo distanciado, “nos está confiado”.
3.3. “O farol que ilumina”: a Cidade de Deus – na sua visão da Igreja, Leão XIV evita o termo “Povo de Deus” e recorre preferencialmente à imagem do Corpo Místico de Cristo, também presente em Agostinho. A Igreja é “cidade sobre o monte”, “arca de salvação”, “farol que ilumina” [5]. Mas esse brilho não vem de suas estruturas, e sim da santidade de seus membros. A missão da Igreja, afirma ele, é proclamar “as maravilhas daquele que nos chamou das trevas para a sua luz admirável”. Essa oposição entre luz e trevas percorre toda a hermenêutica teológica do papa, enraizada na tradição bíblica e agostiniana.
Embora se aguarde ainda a homilia de entronização (prevista para 18 de maio) e a publicação de sua primeira encíclica ou exortação apostólica, os pronunciamentos iniciais de Leão XIV — homilias, saudações e bênçãos — já permitem entrever sua concepção teológica e o esboço de seu programa eclesial. Ainda que situado na continuidade do Concílio Vaticano II e do pontificado de Francisco, Leão XIV reinterpreta ambos à luz de uma moldura claramente agostiniana. Cristo ocupa o centro dessa visão, servindo de critério para discernir tanto as sombras da história quanto a missão da Igreja como sinal de luz.
Resta acompanhar como essas intuições iniciais — ou outras que venham a emergir — se consolidarão ao longo do tempo e em que medida podem ser converter nos fundamentos teológicos e pastorais de seu magistério.
[1] Conforme audiência aos membros do colégio cardinalício em 10 de maio de 2025.
[2] Conforme audiência aos membros do colégio cardinalício em 10 de maio de 2025.
[3] Aqui.
[4] Aqui.
[5] Aqui.