"E eu não... desculpe, Erika... eu os odeio.”
A declaração de Trump à Erika Kirk, externando os sentimentos pelos envolvidos na morte de Charlie Kirk no funeral que reuniu mais de 100 mil pessoas em um estádio no Arizona em 21 de setembro, dificultará a missão americana, anunciada pelo próprio presidente: “Tornar a América religiosa de novo”.
Reivindicando indiretamente o “Prêmio Nobel da Paz”, ao comentar que “todos dizem” que ele o merece, o presidente norte-americano se distancia de outro homem que também exerce “um fascínio que o torna popular mesmo entre os não crentes”, como disse o medievalista francês André Vauchez, ao se referir a São Francisco de Assis.
Hoje, 04 de outubro, dia em que a Igreja celebra a memória litúrgica de São Francisco, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU destaca um dos diversos legados do santo franciscano: a promoção da paz. Na terceira guerra mundial em pedaços, como o Papa Francisco costumava chamar os conflitos em curso no século XXI, a paz entrou na lista das palavras empregadas para legitimar a guerra, o sofrimento e a subjugação dos povos. Contra essa lógica, o santo de Assis ensina a sermos peregrinos da paz.
Membro da classe burguesa, na juventude, Francisco cultivava o ideal de vida da época: ser cavaleiro. A carreira das armas, no entanto, foi abandonada depois de uma experiência mística, cuja consequência foi a vivência radical do Evangelho. No ano passado, em celebração aos 800 anos dos estigmas de Francisco de Assis, Luiz Carlos Susin, frei capuchinho e professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explicou a mudança de rota na vida do santo fundador da Ordem dos Frades Menores (OFM), em evento promovido pelo IHU:
“Francisco fica decepcionado tanto em querer ser cavaleiro quanto em seguir o pai, que não o convencia. Há muitos relatos de conflitos, a ponto de chegar num conflito aberto, em praça pública, em que ele diz: ‘De hoje em diante, não te chamo de pai. Pai, só Pai Nosso que estais nos Céus’. Tentem imaginar alguém que diz para seu pai: ‘Eu não te chamo mais de pai’. Isso tem um preço psíquico; furou a bolha do seu narcisismo, da sua grandeza. Francisco passa a ter, inclusive, fortes inclinações para a depressão. Com a sensibilidade à flor da pele, ficou muito exposto a influências. O maior drama dele era o da vaidade, que tinha cultivado. Mas ele começa o caminho e abraça aquilo que vê no crucifixo de são Damião, no leproso que encontra, que é marginal, nos bandidos que andam por fora da cidade. Ele começa a ler o mundo de outro jeito, a centralizar isso na figura de Cristo e encontra, no Evangelho, o seu lugar. Quando ele escuta o Evangelho, diz: ‘É isso que eu quero’. Ele abraça o Evangelho. E a grande paixão de Francisco vai ser seguir o Evangelho. Mas não é um Evangelho sem essa sombra de dores que ele vai ter que suportar.”
Neste ano, celebra-se outra data que remete à conversão de São Francisco: o Jubileu dos 800 anos do Cântico das Criaturas. Interpretado como um louvor ao Senhor Altíssimo, o texto tem sido objeto de estudos e releituras, como a do franciscano francês Eloi Leclerc, publicada pela Editora Vozes em 1977, com o título “O cântico das criaturas ou os símbolos da união”. Inclinado a examinar a “experiência profunda” que se exprime do Cântico, frei Leclerc, sobrevivente do extermínio nazista, dedicou parte da sua interpretação ao tema do perdão e da paz. Palavras que continuaram na boca dos últimos pontífices, como Francisco, que morreu neste ano convocando a humanidade “a ter esperança de que a paz é possível”. Ou do novo sucessor de Pedro, que iniciou o pontificado recorrendo às célebres palavras de Cristo: “A paz esteja com todos vocês”.
A estrofe da paz, segundo Leclerc, acrescentada ao Cântico das Criaturas em 1226, três meses antes da morte de São Francisco, “nos faz imergir num mundo cheio de tensões, de conflitos e de sofrimentos”. Seus versos, explica o franciscano, foram escritos num contexto histórico de luta entre o bispo e o chefe de Estado da época. “É essencialmente um hino ao perdão e à paz”, resume.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles
que perdoam por amor de ti,
e suportam enfermidades e tribulações;
bem-aventurados os que guardam a paz,
pois serão coroados por ti, Ó Altíssimo.
A paz que São Francisco de Assis propaga não coaduna com o espírito que subjaz o plano de paz do presidente norte-americano para Gaza. Segundo especialistas em acordos internacionais, a proposta trumpista, aceita “sob condições” pelo primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, “traz a marca do egocentrismo de Trump”, conforme informa a reportagem da rádio francesa de notícias, RFI.
A paz do santo franciscano contrasta com o desespero de quatro crianças palestinas que tiveram a vida marcada por discórdia, conflito e guerra, registrado no jornal La Stampa na semana passada e reproduzido na página eletrônica do IHU:
"Minha mãe estava arrasada. Ela não parava de chorar, dizendo que tínhamos abandonado a avó, a tia e seus três filhos. Entramos no necrotério e os encontramos lá. Estavam deitados no chão, enfileirados. Eles morreram no bombardeio. De fato, logo depois que saímos, nossa casa desabou. Seus corpos estavam despedaçados. Um tinha um ferimento no pescoço, outro na cabeça. Gostaria de não os ter deixado para trás.” Linda Omar Saad, 11 anos.
"Contornamos a mesquita, mesmo sabendo que poderia ser um dos alvos. Mas não havia alternativas. Quando finalmente chegamos e nos reencontramos, não conseguimos falar. Apenas nos abraçamos e choramos." Lin Mahmoud Hamed, 10 anos.
Crianças em Gaza (Arte: Mateus Dias | IHU)
"Eu estava sozinha no quarto com meu primo de 8 meses e, de repente, a casa tremeu. Pedaços de muro e cacos de vidro caíram sobre nós. Perdi a consciência. Quando acordei, ouvi o pequeno chorando: seu rosto estava coberto de poeira e cinzas. Deixamos tudo para trás. Não nos resta nada, exceto medo." Judy Fadi Hamed, 11 anos.
"Meu pai estava na porta, olhando para mim e pedindo aos nossos vizinhos que nos ajudassem a ir embora. Eu não sabia o que tinha acontecido, corri para o meu pai. Seu corpo estava desmembrado. Minha mãe gritou. A ambulância não chegou e algumas pessoas o levaram embora em uma carroça puxada por um burro. Eu fiquei ali, olhando, olhando. Meu pai era a pessoa mais importante da minha vida. Sem ele, não consigo fazer nada”. Hamza Hossam Al-Tawil, 8 anos.
“Uma voz de humanidade contra o vírus do cinismo”. É assim que dom Roberto Repole, arcebispo de Turim e bispo de Susa, se pronunciou no início deste ano ao destacar que São Francisco não é um personagem do passado, mas “presença vibrante que fala aos homens de nosso tempo”.
A paz, segundo explica Rinaldo Paganelli, teólogo e padre da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, “é uma opção espiritual”, “um desejo profundo” e, para vivê-la segundo são Francisco de Assis “é necessário entrar em ‘outra lógica’. Uma lógica da qual não se pode simplesmente obter um ‘livro de receitas’ de ideias”. A paz proposta e defendida por Francisco, assevera, é a “paz evangélica, uma paz desarmada e fraterna”, com implicações pessoais, comunitárias e sociais.
Nas palavras do capuchinho Ir. Pietro Manaresi, três são os níveis da paz vivenciada por São Francisco:
“É um homem em paz consigo mesmo: Do desejo de ser ‘maior’, movido pela lógica da competição e da rivalidade, dentro da amargura de uma vida conturbada, marcada pelo desejo de escalar o sistema para ser mais que os outros, ele passa à descoberta da misericórdia como dom gratuito de si mesmo. Valoriza a doçura de uma vida doada.
É um homem que pacifica os irmãos: A ‘cartula’ dirigida ao Irmão Leão é emblemática: O Senhor te abençoe e te guarde. Que ele lhe mostre seu rosto e tenha misericórdia de você. Que ele volte seu olhar para você e lhe dê paz. Que o Senhor lhe dê sua grande bênção.
É um pacificador da sociedade: Ele sente a paz como o centro da proclamação do evangelho. Em cada um dos seus sermões, antes de comunicar a palavra de Deus ao povo reunido, desejava a paz dizendo: ‘Que o Senhor vos dê a paz!’ Ele pede que a paz seja proposta através de um estilo de vida de homens pacíficos e bobos: ‘Admoesto e exorto os meus irmãos no Senhor Jesus Cristo a que, quando passarem pelo mundo, não briguem e evitem disputas de palavras, e não julguem outros; mas sejam mansos, pacíficos e modestos, mansos e humildes, falando honestamente com todos, como convém’ (Rb III 10: FF 85). E acrescenta: ‘O que são os servos de Deus senão os seus bobos que devem comover o coração dos homens e elevá-los à alegria espiritual?’”
Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco também destacou as consequências práticas da paz interior que movia São Francisco: “manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e em uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o compromisso com a sociedade e a paz interior” (n. 10).
O tema da paz e da fraternidade, centrais no Magistério do Papa Francisco, tem sido abordado amplamente no IHU. Numa perspectiva franciscana, o assunto foi tematizado quatro anos atrás, por ocasião da memória litúrgica de São Francisco de Assis, no evento “Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana”, com a participação de frei Susin e Ildo Perondi, capuchinho e professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Perondi destacou a inspiração de São Francisco nos documentos papais. “A Laudato Si’ foi muito inspirada em São Francisco de Assis, sobretudo no Cântico das Criaturas. Papa Francisco nos lembrava que, na criação, tudo está interligado; vivemos um mundo de relações. O Papa reclamava de um planeta que está, de certa forma, ferido, doente, e chamava atenção para o cuidado que todos nós temos que ter com a criação”. Na Fratelli Tutti, publicada posteriormente, continua o religioso, “o Papa também quis colocar o coração e a alma franciscana”. O próprio nome da encíclica, disse, tem origem na instrução de fraternidade de São Francisco aos irmãos.
Para Susin, a inspiração franciscana no pontificado de Francisco pode ser observada, entre outros elementos, a partir da defesa da paz, do encontro e do diálogo. A Fratelli Tutti, sublinha, “está fundamentalmente nesta direção: como sermos pessoas de paz, de encontro e de diálogo”, num contexto em que, atento aos sinais dos tempos, o Papa destaca o “crescimento da agressividade, da grosseria através das mídias e até mesmo em instâncias oficiais”.
Francisco. O Santo, edição n. 238 da Revista IHU On-Line, publicada em outubro de 2007, é uma das publicações do IHU que explora o legado do franciscano numa perspectiva interdisciplinar. O historiador italiano Giovanni Merlo destaca a influência das ideias de São Francisco na economia. Frei Aldir Crocoli tematiza a paz à luz da fraternidade e solidariedade franciscanas. A humanidade do santo de Assis é realçada pela historiadora italiana Chiara Frugoni. A relação entre ecologia exterior e ecologia interior é desenvolvida por Leonardo Boff. A autenticidade de Francisco é abordada por frei José Alamiro Andrade Silva.
Artigos, entrevistas e reportagens sobre a espiritualidade, a história e a influência de São Francisco de Assis na cultura estão publicados na página do IHU. Como leitura para inspirar nossos pensamentos e ações no caminho percorrido pelo peregrino da paz, sugerimos os listados abaixo. Boa leitura! Paz e Bem!