03 Setembro 2020
"Voltado para si mesmo, numa atitude individualista, o homem deixou de exercer seu protagonismo na Casa Comum - o de cultivar e guardar (Gn 2, 15). Passou, assim, a uma 'função' determinada pelo mercado do lucro e do consumo sem medida - a de explorar e destruir de forma ávida e avassaladora", escreve Josi Mara Nolli, mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC).
Teilhard de Chardin, ao tratar do "problema da felicidade"[1], traz importante contribuição para uma interpretação do que se pode entender como o protagonismo do homem. Escreve o autor:
Imaginemos um grupo em excursão que decide escalar uma montanha difícil. Vamos observá-los algumas horas após a partida. Nesse momento podemos imaginar que a equipe se divide em três tipos de elementos.
Alguns se arrependem de ter deixado a pousada. O cansaço, os perigos, lhe parecem desproporcionais ao interesse pelo sucesso. Decidem voltar atrás.
Outros não se sentem contrariados por ter partido. O sol brilha, a vista é bela. Mas, por que subir mais? Não seria melhor aproveitar o passeio à montanha ali onde estão, em meio aos campos ou em plena floresta? Esses se deitam sobre a relva ou exploram os arredores, esperando pela hora do piquenique.
Outros, enfim, os verdadeiros alpinistas, não tiram os olhos dos cumes que a si mesmos juraram atingir. E seguem adiante (TEILHARD DE CHARDIN, 2005, p. 14).
Em uma dinâmica que envolve escolha, o autor mostra que há três tipos de “elementos” que, em suma, são os que descendem, os que estagnam e os que avançam. E que esses “elementos”, porque capazes de escolher, são os principais responsáveis por estarem onde estão e onde poderão estar.
Se considerarmos que os “cumes” podem significar o pleno desenvolvimento do homem, o texto de Teilhard de Chardin nos ajuda a pensar, então, que o homem é o principal responsável, ou seja, é o protagonista do seu próprio desenvolvimento. Por pleno desenvolvimento, à luz da Carta do Papa Francisco, Laudato Si’ (LS)[2], tomamos o conceito de formação integral - a que envolve todos os aspectos e dimensões da vida do homem, do nascimento à morte[3].
A Laudato Si’, ao tratar das realidades sobre a degradação do meio ambiente e a falta de cuidado com a Casa Comum, chama o homem a ser protagonista das práticas que possam mudar essas realidades e que estão diretamente ligadas à sua formação integral. Práticas que vão desde o cuidado com a vida biológica até ações que resultam em amor e que, portanto, estão para além da vida material. É assim que, à luz de uma reflexão crítica sobre um atual sistema capitalista que condiciona e determina, a Laudato Si’ convoca o homem a (re)assumir o seu papel como protagonista da História - a História da humanidade. E vai além - convoca o homem a mudar os rumos dessa História a partir das escolhas que faz.
A escolha faz parte da liberdade do homem que pode colaborar de modo inteligente e prático para avanços sociais, políticos, econômicos e pessoais positivos, como pode causar novos males, sofrimentos e atrasos que, somados, resultam em verdadeira tragédia humanitária. “Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição” (LS, 79).
Voltado para si mesmo, numa atitude individualista, o homem deixou de exercer seu protagonismo na Casa Comum - o de cultivar e guardar (Gn 2, 15). Passou, assim, a uma “função” determinada pelo mercado do lucro e do consumo sem medida - a de explorar e destruir de forma ávida e avassaladora. Nesse movimento, tornaram-se protagonistas o individualismo e o egocentrismo que tiram do homem a possibilidade de um pleno desenvolvimento, tendo em vista não ser esse o interesse da sociedade capitalista.
Mas, se de um lado, o homem pode ser considerado vítima de um sistema capitalista, utilitarista, por outro, pode ser vítima de si mesmo quando nega ou negligencia sua capacidade de escolha, conformado que está com as circunstâncias que o cercam. Por mais condicionamentos ou determinações que venha a sofrer ao longo da história, nada e ninguém pode roubar do homem sua capacidade de escolher. Voltemos à Teilhard de Chardin - o homem pode escolher descender, estagnar ou avançar.
Ao tratar da “necessidade de defender o trabalho”, por exemplo, a Carta do Papa Francisco enfatiza:
O homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-social. Apesar disso, quando no ser humano se deteriora a capacidade de contemplar e respeitar, criam-se as condições para se desfigurar o sentido do trabalho. Convém recordar sempre que o ser humano é “capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual”. O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros [...] (LS, 127).
Nesse aspecto, a Laudato Si’ aclara e reforça, a partir de uma dimensão específica (o trabalho), a capacidade do homem de ser protagonista do seu próprio desenvolvimento. O identifica como “agente responsável”. O homem, então, não é um ser paciente (resignado, passivo) e passível apenas de receber a ação. É, sobretudo, o autor, o gerador e o originador da ação. Ação pela qual também tem responsabilidade.
Assim, não cabe apenas à família, ao Estado ou à sociedade de modo geral desenvolvê-lo. Essas instituições têm o dever de oferecer as condições necessárias (e de direito[4]) para o desenvolvimento do homem. Contudo, ele próprio deve ter participação ativa nesse processo. Isso significa que, conforme assume seu protagonismo, de modo consciente e responsável, o homem pode ser capaz de se desenvolver de modo pleno.
A Laudato Si’ aponta ainda que, como agente no processo de seu pleno desenvolvimento, o homem é capaz de dar sentido ao trabalho e fazer desse âmbito uma dimensão que gera, além dos recursos materiais, a criatividade, as relações de fraternidade, o reconhecimento da dignidade – iniciativas que devem partir, sobretudo, da ação protagonista do homem inserido no mundo. À luz dessa afirmação compreendemos que as ações do homem não devem ter como finalidade primeira (e/ ou única) a construção de uma obra exterior, mas o desenvolvimento pleno daquele que as executa.
E se iniciativas como a criatividade, a fraternidade e o reconhecimento da dignidade soam difíceis diante das reais circunstâncias de competitividade no “mundo do trabalho” (que faz com que o outro seja visto como uma “ameaça”) ou a falta de trabalho para milhões de pessoas, tanto mais devem soar urgentes para não cair no esquecimento o fato de que o homem é um ser criativo, fraterno e constituído de dignidade.
Dizer do protagonismo do homem não é dizer de uma autossuficiência ou de uma autonomia plena. A Laudato Si’ enfatiza que o homem não é um ser plenamente autônomo. O homem não é uma realidade fechada em si mesma e autossuficiente, é um ser inesgotável que, ao mesmo tempo que pode ser desenvolvido, também pode se desenvolver. E mesmo deve ter parte no seu próprio desenvolvimento para poder exercer a liberdade responsável e escolher os valores que vão integrar a sua vida.
A liberdade responsável é a que se contrapõe com o que a Laudato Si’ aponta ser uma liberdade adoecida – a liberdade do homem “adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Nesse sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar (LS, 105). É o homem que, conformado, cede seu protagonismo ao poder e perde a oportunidade de buscar a plenitude de seu desenvolvimento.
Protagonista de seu desenvolvimento, o homem aumenta as chances de resistir ao sistema e à lógica capitalistas que tendem a acomodá-lo à normalidade do lucro desenfreado, do consumo ilimitado, do ter sem medidas que podem levá-lo à reificação, inserindo-o cada vez mais em um movimento de passividade e automatismo.
Em nome do lucro e do poder, o homem é tratado como objeto, como peça material que se pode usar e descartar. Os exemplos dessa coisificação são os mais horrendos: a fome, as guerras que dizimam famílias inteiras, o drama dos migrantes e refugiados, o tráfico de seres humanos e as tantas formas de escravidão contemporânea etc. Essa realidade mostra a desvalorização do homem por parte de uma sociedade que valoriza o dinheiro e o poder e fere a dignidade humana.
A Laudato Si’ é um chamado urgente à valorização da dignidade. Uma sociedade que não respeita a dignidade do homem, não conseguirá respeitar e cuidar da Casa Comum, pois se ao próprio homem trata como objeto, tanto mais tratará ao planeta. E o homem que não respeita o outro, dificilmente saberá ouvir os gritos da natureza. Tudo está interligado (LS 117).
Contudo, a Laudato Si’ ressalta que o homem pode mudar essas (tristes) realidades. E isso não significa dizer que seja um processo simples e rápido. Em muitas situações o homem se encontra esmagado pelo poder, pelas desigualdades e tantos outros determinismos.
Mas há luz no fim desse túnel – o homem tem capacidade de escolher lutar por um mundo melhor, por mais vida e dignidade, pois a ele foi dado conhecer que existem “cumes” a serem alcançados – o seu pleno desenvolvimento, como ser constituído de dignidade. E esse caminho pode começar quando de sua ação protagonista no mundo e na História, quando de sua retomada como colaborador (o que trabalha junto) no processo de seu próprio desenvolvimento e no cuidado com a Casa Comum.
[1] CHARDIN, Pierre Teilhard de. Sobre a felicidade. Campinas: Verus Editora, 2005.
[2] PP, Francisco. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
[3] Tratamos desse tema ao refletir sobre "Laudato Si' e educação: por uma formação integral do homem". NOLLI, Josi Mara. 2020. Laudato Si' e educação: por uma formação integral do homem. Disponível aqui. Acesso em: 18 ago. 2020.
[4] São condições necessárias e de direito para o desenvolvimento do homem, por exemplo, os direitos sociais, dispostos no Artigo 6, da Constituição Federal de 1988: “A educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.
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Laudato Si’: o homem como protagonista do seu próprio desenvolvimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU