Evo Morales deve ser reeleito apesar de romper Pacto de Unidade com as cinco organizações dos povos indígenas camponeses. Entrevista especial com Xavier Albó

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17 Setembro 2014

“Na vida cotidiana há muita mistura entre o viver ‘bem’ (entre todos), o viver ‘melhor’ (uns às custas dos outros, o contrário do anterior) e até francamente o viver ‘mal’ (com práticas abertamente criminosas). A metáfora e conselho bíblico de deixar crescer juntos o trigo e o joio parece inevitável, embora não saiba como se poderia fazer depois a seleção após a colheita”, reflete o antropólogo.

 Foto: www.elmundo.es

“A menos de um mês das próximas eleições presidenciais e parlamentares, o ambiente geral segue sendo bastante anódino, salvo escândalos e travessuras menores. Ninguém duvida de que Evo Morales e Álvaro García Linera serão reeleitos”, diz Xavier Albó à IHU On-Line, ao comentar a disputa eleitoral na Bolívia, no próximo dia 12 de outubro. De acordo com Albó, com a existência de quatro grupos na oposição ao governo Morales, “é muito duvidoso” que haja segundo turno nas eleições deste ano. “No melhor dos casos a oposição sonha apenas em ter maior presença no Legislativo, para que não seja tão fácil para o Movimento ao Socialismo - MAS impor qualquer coisa sem debate”, ressalta.

Na entrevista a seguir, Xavier Albó comenta os dez anos do governo Morales à frente da presidência da Bolívia, os conflitos em torno da criação da Constituição Política do Estado – CPE, que “pretendia refundar o país”, e o “declínio” das ações do governo após as eleições de 2009. “O primeiro revés ocorreu nas eleições subnacionais em nível departamental e nacional, já em abril de 2010, em que o MAS teve um milhão de votos a menos”, explica.

Mas, além disso, pontua, “em várias das novas leis que foram aprovadas, já se notava que ‘na prática é outra coisa’, isto é, uma vez no poder, as coisas eram vistas com outros óculos, fundamentalmente por duas razões. A primeira, porque uma vez no poder, já não se pode prescindir de nenhuma variável relevante, quer se goste ou não, e deve-se fazer concessões a uns e outros, em função da correlação de forças. A segunda, mais ambígua, porque, uma vez no poder, muitos são seduzidos por ‘esse maravilhoso instrumento’ e já não querem largá-lo, seja para executar melhor os projetos planejados desde a planície ou, simplesmente, para eternizar-se nele. O poder corrompe, e, dizem, o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Albó também comenta os conflitos entre o governo e os indígenas por conta da construção da estrada na área central do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure – TIPNIS. “Evo e Álvaro disseram com prepotência: ‘a estrada será feita sim ou sim’, e de fato, já haviam feito um contrato com a construtora brasileira OAS prescindindo da devida consulta prévia. O caso já teve vários rounds e agora se encontra numa trégua pré-eleitoral”, menciona. E acrescenta: “Diante dessa situação, o governo, vendo-se já perto das eleições 2014, decidiu adiar a questão da estrada para depois das eleições, para desativar uma nova frente desnecessária. Continuou a realização de ações de desenvolvimento no TIPNIS, mas a estrada continua parada, com apenas algumas referências esporádicas de Evo insistindo em sua necessidade”.

Diante das divergências entre as propostas iniciais e o que de fato foi realizado no governo, Albó salienta que “em todo esse processo, uma das maiores perdas foi o rompimento do antigo Pacto de Unidade entre as cinco organizações IOC (nações e povos indígena originário camponeses, abreviado como NyP IOC), que foi tão fundamental para chegar à atual Constituição Política do Estado - CPE. O governo reconstituiu-o apenas pela metade, dividindo as ‘gêmeas’, ao menos em seus níveis mais de cúpula. Agora há uma direção mais oficialista e outra mais crítica”. E conclui: “Generalizando, nesses últimos anos, parece que o governo, estando já bem afincado no poder, dá menos prioridade à agenda IOC. Até agora ainda não há nenhuma autonomia AIOC consolidada, das mais de 200 que podiam se qualificar para isso, embora duas delas (Charagua, guarani, e San Pedro de Totora, aimara) já passaram pelo teste de constitucionalidade de seu estatuto e outras três estão fazendo as revisões à luz das observações recebidas do Tribunal Constitucional”.

O espanhol Xavier Albó vive na Bolívia desde 1952 e se nacionalizou cidadão boliviano. É doutor em Linguística e Antropologia pela Universidade de Cornell, de Nova Iorque, e licenciado em Teologia pela Facultad Borja, de Barcelona, e pela Loyola University, de Chicago. É também doutor em Filosofia pela Universidad Católica del Ecuador, de Quito. Entre outras atividades, é membro do conselho acadêmico do mestrado em Antropologia da Universidad La Cordillera e do doutorado em Desarrollo del CIDES (Universidad Mayor de San Andrés). É coordenador latino-americano de jesuítas em áreas indígenas e membro da Academia Boliviana de História Eclesiástica. Desde 1994, é membro do Comitê Diretivo do Programa de Investigação Estratégica na Bolívia - PIEB e atualmente faz parte do corpo docente da Universidad-PIEB.

Confira a entrevista.

 Foto: pachakamani.blogspot.com.br

IHU On-Line - Como estão as discussões políticas na Bolívia sobre as eleições deste ano? Aqui no Brasil fala-se da expectativa da reeleição de Evo Morales. Como estão sendo discutidas as eleições entre os bolivianos? Quem são os candidatos à presidência além de Evo Morales e que semelhanças e diferenças percebe nas candidaturas?

Xabier Albó - A menos de um mês das próximas eleições presidenciais e parlamentares, o ambiente geral segue sendo bastante anódino, salvo escândalos e travessuras menores. Ninguém duvida de que Evo Morales e Álvaro García Linera serão reeleitos. E, com a existência de quatro grupos na oposição, é também muito duvidoso que se faça necessário um segundo turno. No melhor dos casos a oposição sonha apenas em ter maior presença no Legislativo, para que não seja tão fácil para o Movimento ao Socialismo - MAS impor qualquer coisa sem debate. Depois, nas eleições departamentais e municipais de abril de 2015, que sempre têm sua lógica própria, a oposição apostará e seguramente conseguirá ganhar alguns governos locais.

Esse convencimento, apreciado ou ao menos desejado, provém em parte dos méritos e/ou favores acumulados por Evo e pelo MAS. E, em parte, também do controle crescente da máquina do poder acumulado por esse partido em seus 10 anos no poder. A luta pré-eleitoral é, portanto, muito desigual.

A última pesquisa do jornal não oficial Página 7 (realizada nos dias 23 e 24 de agosto, a 42 dias das eleições, e publicada no dia 31 de agosto de 2014) dá a Evo (MAS) 50% das intenções de votos, em ascensão; segundo colocado, Samuel Doria Medina (UD, Unidade Democrática), estancado em 19%; e, em terceiro lugar, em ascensão, Tuto Quiroga (ex-presidente e agora candidato pelo PDC, Partido Democrata Cristão), com 9%. Os outros dois, ex-aliados de Evo, quase não contam: Juan del Granado (MSM, Movimento Sem Medo), com 3%, em queda, e Fernando Vargas (Verde Ecológico), com 0,2%, que não conseguiu deslanchar por falta de recursos, mais um saldo de 11% que ainda não se manifestou. É preciso estar atento a uma terceira pesquisa, que, suponho, será publicada no final deste mês.

“Ser e ter rosto indígena já não era, como sempre acontecia antes, motivo quase automático de discriminação”

O número final de eleitores com 18 anos completos para essas eleições de 12 de outubro de 2014 é de 5.973.901 pessoas em todo o território nacional e — uma novidade — 272.750 em 33 países. No controvertido censo nacional de 2012 o país registrou uma população de 10,4 milhões de habitantes, a metade da população da Grande São Paulo.

Esta pesquisa, como a maioria, fixa-se quase exclusivamente nos candidatos presidenciais e não nos da Assembleia Legislativa, e cobre relativamente bem as nove capitais de Departamento, mais El Alto de Paz, que é, atualmente, a segunda maior cidade do país, depois de Santa Cruz, mas que faz parte da área metropolitana de La Paz, mais, neste caso, as principais cidades intermediárias. Porém, não as áreas de população rural dispersa (até um terço da população total) que, na região andina, têm um voto duro no MAS. Portanto, esta proporção favorável a Evo provavelmente aumentará e é pouco provável que seja necessário um segundo turno. Na Bolívia, se o primeiro colocado tiver 40% ou mais e estiver 10% à frente do segundo colocado, já não é necessário um segundo turno.

Candidatos

O candidato que melhor reflete a situação anterior às eleições presidenciais de Evo é Tuto Quiroga, que no passado foi vice-presidente de Banzer e, após a morte deste, terminou seu mandato presidencial.

Doria Medina, um empresário do cimento, fracassou na sua tentativa de formar uma Frente Ampla de oposição, salvo com o agora chamado Movimento Democrata Social - MDS do atual governador de Santa Cruz, Rubén Costas, que lhe dá seu candidato a vice-presidente, o ex-governador de Beni, Ernesto Suárez. É o que restou da antiga “Meia Lua” das terras baixas, que tanta guerra declarou à nova Constituição Política do Estado - CPE de 2009, mas que nos anos seguintes ficou praticamente acéfala, entre outros motivos, pelo bullado e ainda pouco esclarecido caso da conspiração do boliviano-croata Rózsa e outros, vários dos quais foram mortos em uma operação policial possivelmente sem fogo cruzado em Santa Cruz, em abril de 2009.

A pequena projeção dos dois ex-aliados do MAS, Juan del Granado e Fernando Vargas, deve-se, talvez, ao fato de que seus programas não são tão diferentes do MAS e, portanto, as pessoas apostam diretamente no MAS ou, pelo menos, em Evo Morales como presidente. Um dado inesperado da mencionada pesquisa é que, diante da hipotética situação de que Evo tivesse como opositor apenas um dos agora quatro candidatos, os que conseguiriam maior porcentagem de votos seriam Samuel Doria Medina (25,6%) e Fernando Vargas, que subiria até 21,4%.

IHU On-Line - Como Evo Morales está sendo visto pela população depois de quase 10 anos de mandato presidencial? Quais são os avanços e retrocessos de seu governo? A Constituição boliviana contribuiu para retirar os povos indígenas de uma condição de marginalidade absoluta?

Xabier Albó - Evo foi crescendo vertiginosamente desde as eleições de 2002 até chegar a 54% no dia 18 de dezembro de 2005, que o consagrou como o primeiro presidente indígena do país e que assumiu no começo de 2006. O caso do Movimento ao Socialismo-Instrumento Político para a Soberania dos Povos - MAS-IPSP é único, porquanto não nasce tanto como um partido de cima para baixo, mas a partir dos próprios movimentos indígenas-camponeses que anos antes buscavam criar “seu instrumento político” para não serem os camponeses “llunk’us” (servis) de partidos alheios, como tanto havia acontecido no passado, desde os anos 1950, quando o MNR os introduziu na política partidária.

Constituição Política do Estado

Uma tarefa central em todo esse primeiro período de governo foi conseguir aprovar, em meio a mil percalços que aqui não posso detalhar, a nova Constituição Política do Estado, que pretendia “refundar” o país. Na metade de 2006, foram eleitos os 255 constituintes, que refletiam, como nunca antes, todos os setores populares e étnicos do país. Mas, como contrapartida, entre os eleitos havia também uma minoria muito militante e disciplinada formada pelos autonomistas, quando não separatistas, da então “Meia Lua”, com sua nova proposta de “Nação Camba”, que ia do extremo norte de Pando, passando pelo Beni e Santa Cruz pelo Leste, até Tarija, no extremo sul, abarcando como um arco geográfico todas as terras baixas do país. Em termos geográficos constituía a maior parte do país, mas em termos demográficos representava uma clara minoria. É a parte mais branca e castelhana falante do país, cujos líderes da época buscavam sua máxima autonomia do resto para gozarem apenas eles da bonança das suas generosas rendas petroleiras e, em menor grau, da sua produção de soja e da pecuária para o mercado. A riqueza da Meia Lua era, na época, de longe a maior do país, pois a mineração tradicional continuava em crise.

Essa minoria autonomista quase conseguiu abortar aquele processo constituinte, mas finalmente conseguiu-se aprovar em um referendo (61%) e promulgar a nova CPE no começo de 2009, com um atraso de dois anos em relação ao plano inicial. Trata-se de texto em parte retrabalhado (por exemplo, no tema das autonomias, inclusive a indígena) e em parte “rebaixado” para níveis mais “light” pelas diversas forças políticas (não mais os constituintes), sob o olhar protetor das Nações Unidas e da nova Unasul, com uma rápida ação da sua primeira presidenta Bachelet e de Lula.

Conseguiu-se assim evitar que a Bolívia fosse a primeira vítima de golpes restauradores como os que pouco depois sofreram primeiro Honduras e depois o Paraguai. Parte dessas tentativas incluía uma até agora ainda mal esclarecida tentativa de organizar, a partir de Santa Cruz, um grupo armado sob a direção do boliviano-húngaro-croata Eduardo Rózsa Flores, que, junto com outros dois companheiros, foi eliminado em uma operação policial em um hotel de Santa Cruz. Com isso, a parte mais radical da Meia Lua foi perdendo protagonismo e deixou de representar um perigo para a hegemonia do MAS.

“Minha síntese é a seguinte: acabaram-se os ‘mono-’. Todos somos ‘pluri-’. E é bom se somos ‘inter-’, para o que devemos ser iguais em poder”

Conquistas para povos indígenas

Tudo isso foi uma grande conquista para os povos indígenas e para todo o país. Detalhar os conteúdos da nova Constituição nos levaria muito longe. Podemos sintetizá-los na permanente reiteração da frase “nações e povos indígena originário camponeses” (sem vírgulas e com apenas um “s” final; abreviado como NyP IOC), que deve ser tomado como um único conceito expresso com esses vários termos para deixar satisfeitos aqueles que, por diversos processos históricos e sociais, preferem mais um ou outro termo. O artigo 2 da CPE é, dentro disso, aquele que dá a chave interpretativa dos alcances que dessa nova CPE com relação a essas NyP IOC: “dada a existência pré-colonial das NyP IOC e seu domínio ancestral sobre seus territórios, garante-se sua livre determinação no marco da unidade do Estado”, etc. A elas refere-se a CPE cada vez que acrescenta “Plurinacional” ao Estado ou a alguns de seus órgãos centrais: Assembleia Legislativa, Tribunais, etc. E, quando fala de “autonomias IOC” associando-o a antigos municípios, territórios etc., prepara apenas as peças mínimas que, juntas, deveriam nos aproximar desse ideal das NyP IOC.

Nas origens do MAS-IPSP, os “pais” desse “instrumento” foram a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia - CSUTCB, que em La Paz manteve seu nome inicial “Tupaj Katari” (o herói Aimara colonial de 1781), e que incluía seu ramo feminino “Bartolina Sisa” (nome da esposa de Tupaj Katari) no seu “instrumento político”. “Soberania dos Povos” reflete o nome inicial que esse “instrumento” recebeu entre os colonizadores cocaleiros do Chapare, de onde provém o próprio Evo. Dessa maneira, essas três instituições, agora chamadas de “trigêmeos”, continuam sendo consideradas as donas desse “instrumento político” e, portanto, nem passa pela cabeça afastar-se de seu “filho”, já tão crescido. Embora devamos evitar a qualquer custo que, com o passar dos anos, esse filho acabe engolindo as três mães, como um novo Édipo.

Fundamental para tornar possível a CPE foi o “Pacto de Unidade” obtido para a CPE entre as organizações IOC mais representativas, em particular entre (a) as chamadas “trigêmeas”, acima mencionadas e (b) outras duas, conhecidas também como as “gêmeas”, que nasceram mais tarde e simplesmente se aliaram e subiram ao carro sem comprometer tão a fundo uma relação orgânica com o MAS. São a CIDOB, criada em 1982 com e para os numerosos grupos indígenas minoritários de terras baixas com suas respectivas organizações, e o CONAMAQ, nascido somente em 1997, sobretudo, em diversas áreas andinas de ayllus sem ex-fazenda, onde já havia também a CSUTCB katarista, mas que explicava mais suas raízes organizativas pré-coloniais.

A nova CPE já aprovada manteve-se ainda meio em quarentena, em um segundo plano, até que finalmente as novas eleições gerais no final do mesmo ano de 2009 mostraram como ficava a correlação de forças. Entretanto, a imagem e os rostos dos membros dos novos órgãos estatais iam mudando radicalmente com a presença de muito mais indígenas, alguns poucos até o nível de ministros/as, e muito mais em níveis intermediários. Ser e ter rosto indígena já não era, como sempre acontecia antes, motivo quase automático de discriminação. É evidente que no conjunto agora essa gente se sente muito mais orgulhosa de si mesma.

Finalmente, chegadas as eleições gerais de dezembro de 2009, Evo e o MAS (com o então aliado Juan del Granado, do MSM) conseguiram 62% dos votos que, pela aritmética eleitoral, traduziu-se numa cômoda maioria de dois terços. Parecia que, finalmente, estavam dadas as condições ótimas para implementar todos os sonhos, em boa parte já formulados no texto constitucional. Estabeleceu-se então um cronograma para cerca de 100 leis consideradas fundamentais para viabilizar os princípios centrais da CPE já promulgada.

Declínio

Ao invés disso, começou antes o declínio. O primeiro revés ocorreu nas eleições subnacionais em nível departamental e nacional, já em abril de 2010, em que o MAS teve um milhão de votos a menos. Em boa parte se deveu a que, nesses níveis mais locais, funciona sempre outra lógica e outros mecanismos de liderança, como já se viu nas eleições de dezembro de 2005, em que, no mesmo ato eleitoral, enquanto Evo e o MAS davam seu grande salto rumo ao poder nacional, em níveis departamentais perderam inclusive em algumas das suas arenas fortes, como as então prefeituras de La Paz e Cochabamba. A isso se acrescenta a ruptura entre o MAS e o MSM, especialmente forte em La Paz e no seu entorno e que foi motivada de alguma maneira pelos dois lados: pelo MAS, por suas tentativas de “engolir” este último; e pelo MSM, pelo desejo de mostrar seu próprio potencial.

Mas, além disso, em várias das novas leis que foram aprovadas, já se notava que “na prática é outra coisa”, isto é, uma vez no poder, as coisas eram vistas com outros óculos, fundamentalmente por duas razões. A primeira, porque uma vez no poder, já não se pode prescindir de nenhuma variável relevante, quer se goste ou não, e deve-se fazer concessões a uns e outros, em função da correlação de forças. A segunda, mais ambígua, porque, uma vez no poder, muitos são seduzidos por “esse maravilhoso instrumento” e já não querem largá-lo, seja para executar melhor os projetos planejados desde a planície ou, simplesmente, para eternizar-se nele. O poder corrompe, e, dizem, o poder absoluto corrompe absolutamente. A complexa realidade cotidiana levou muitos a mover seu jogo de cintura entre essas duas perspectivas.

O primeiro exemplo de deterioração, para mim muito significativo, foi a Lei de Deslinde Jurisdicional entre a justiça comum (a de sempre, com sua lentidão, propinas, etc.) e as diversas formas de justiça comunitária das NyP IOC, à qual a nova CPE reconheceu a mesma categoria constitucional (art. 179-II). A primeira fatia a este princípio já se cortou na versão “light” finalmente concertada entre os partidos, ao introduzir o conceito de “deslinde” entre ambas as justiças, que antes não existia; antes dessa concertação só se falava em “mecanismos de coordenação e cooperação” entre elas, em um âmbito de interlegalidade.

Depois, com o apoio do COSUDE e do Alto Comissionado para os Direitos Humanos, das Nações Unidas, o vice-ministério da Justiça IOC, dirigido por uma ex-dirigente aimara de longa trajetória, realizou um processo exemplar de Consulta Prévia, Livre e Informada com um guia de perguntas sobre os temas que pareciam mais fundamentais — guia que foi debatido durante quatro meses com 19 grupos focais em todo o país. Daí surgiu um anteprojeto formal que a vice-ministra apresentou à Assembleia Legislativa Plurinacional. Mas ali esse anteprojeto foi praticamente descartado em seus pontos mais centrais, e com pouquíssimo debate interno foi aprovada e promulgada, no final de dezembro de 2010, uma Lei de Deslinde que dificilmente poderia passar pela prova de constitucionalidade no tema do art. 179-II acima mencionado. Um proeminente dirigente indígena chegou a me dizer que se havia reduzido a justiça IOC para resolver roubo de galinha, e a especialista internacional peruana Raquel Yrigoyen escreveu que esse texto “é um dos piores e mais colonialistas que já vi na minha vida”, como cito em um longo artigo sobre este caso, publicado em 2012 em um livro coordenado pelo Boaventura de Sousa Santos e José Luis Exeni. Para mim, este lamentável desenlace foi o primeiro sinal claro de que estávamos regredindo.

“A metáfora e conselho bíblico de deixar crescer juntos o trigo e o joio parece inevitável, embora não saiba como se poderia fazer depois a seleção após a colheita”

Embate do Tipnis

O outro grande tema, mais relacionado com o meio ambiente e que ocupou milhares de páginas desde a metade de 2011 até 2013 adentro, foram as marchas VIII e IV dos povos indígenas de terras baixas em 2011 e 2012, em relação a uma estrada que cortava a área central do TIPNIS (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure). Evo e Álvaro disseram com prepotência: “a estrada será feita sim ou sim”, e de fato, já haviam feito um contrato com a construtora brasileira OAS prescindindo da devida consulta prévia. O caso já teve vários rounds e agora se encontra numa trégua pré-eleitoral:

Primeiro round, a VIII marcha. Foi desqualificada desde o começo pelo governo. Incluiu uma brutal repressão dos marchantes em Chaparina com a ideia de dispersá-la; felizmente, sem mortos indígenas devidos diretamente a essa repressão. Mas este incidente não alcançou o seu objetivo, e a marcha continuou com maior apoio popular e, finalmente, conseguiu criar a Lei 180 (24 de outubro de 2011), assinada a contragosto pelo Evo. Nela, declarava-se “intangível” o TIPNIS e suspendia-se a construção da estrada.

Segundo round. Imediatamente, o governo incentivou uma antimarcha daqueles que eram favoráveis a essa estrada, marcha que facilitou a rápida aprovação da Lei 222 (10 de fevereiro de 2012) sobre uma Consulta no TIPNIS, que, de fato, centrou-se, sobretudo, na “intangibilidade” ou não do TIPNIS (sem maiores matizes por áreas) para projetos de desenvolvimento, incluindo a estrada.

Terceiro round, a IX marcha das organizações indígenas que realizaram a VIII marcha questionando a legalidade da nova lei; chegou até La Paz sem maiores contratempos, mas o Governo não os recebeu, e se foram de mãos vazias. O MSM (ex-aliado do MAS) propôs ao Tribunal Constitucional uma ação de inconstitucionalidade da Lei 222, que foi respondida por este condicionalmente: “não, sempre que antes se acorde o assunto com os povos envolvidos”. Esta concertação não foi feita, mas a “consulta” foi realizada com um grande esbanjamento de recursos a partir de agosto de 2012: todas as comunidades consultadas menos uma rechaçaram a “intangibilidade”, tendo sido induzidas a crer que, do contrário, não poderia haver nenhum tipo de desenvolvimento nelas. Onze comunidades negaram-se até o final a serem consultadas.

Quarto round, os dirigentes da VIII e IX marcha solicitaram à Igreja e aos Direitos Humanos (locais e interamericanos) uma “verificação” (não réplica) daquela consulta. Ela foi feita e a sentença da Federação Interamericana de Direitos Humanos, entregue em 2013, foi contundente: “O processo de consulta não foi livre nem informado e não respeitou o princípio da boa fé... Portanto, o Estado boliviano tem a obrigação de suspender... [essa medida] enquanto não houver novas consultas às comunidades... de maneira adequada”. ...E uma sinucada. Diante dessa situação, o governo, vendo-se já perto das eleições 2014, decidiu adiar a questão da estrada para depois das eleições, para desativar uma nova frente desnecessária. Continuou a realização de ações de desenvolvimento no TIPNIS, mas a estrada continua parada, com apenas algumas referências esporádicas de Evo insistindo em sua necessidade.

Consequências

Em todo esse processo, uma das maiores perdas foi o rompimento do antigo Pacto de Unidade entre as cinco organizações IOC, que foi tão fundamental para chegar à atual CPE. O governo reconstituiu-o apenas pela metade, dividindo as “gêmeas”, ao menos em seus níveis mais de cúpula. Agora há uma direção mais oficialista e outra mais crítica.

Generalizando, nesses últimos anos, parece que o governo, estando já bem afincado no poder, dá menos prioridade à agenda IOC. Até agora ainda não há nenhuma autonomia AIOC consolidada, das mais de 200 que podiam se qualificar para isso, embora duas delas (Charagua, guarani, e San Pedro de Totora, aimara) já passaram pelo teste de constitucionalidade de seu estatuto e outras três estão fazendo as revisões à luz das observações recebidas do Tribunal Constitucional. Se não houver atrasos e ganharem seu referendo final interno, estas cinco poderiam ser as AIOC pioneiras em 2015. A Lei Marco de Autonomias facilita muito mais as autonomias municipais, que já estão ativadas automaticamente sem mover um dedo, ao passo que para as AIOC têm que haver muitos passos prévios.

Alguns avanços

Onde, sim, houve notáveis avanços para todo o setor popular tanto urbano como rural é numa série de bônus (para mães, idosos, estudantes...), nos aumentos do salário mínimo e na infraestrutura rural. Em parte pela bonança nos preços dos minerais e hidrocarbonetos e alguns produtos agrícolas (como a quinoa), mas também pela gestão de seu ministro de Economia, a Bolívia já subiu para uma categoria de país menos pobre, e na macroeconomia já não tem déficits, mas superávits, pelo que recebe as congratulações em níveis internacionais, embora não parece que tenha avançado suficientemente em sua diversificação econômica para quando desaparecer a bonança.

Foram realizados também vários megaprojetos e eventos caros, como o lançamento do satélite Tupac Katari, para comunicações (cujos efeitos até agora ainda não se deixam sentir muito); os teleféricos entre La Paz e El Alto, dos quais já está em funcionamento a linha vermelha, com grande aceitação, e hoje [dia 15 de setembro] será inaugurada a rede amarela. E o evento mais caro foi a Cúpula dos 77 mais a China.

IHU On-Line - Pode nos dar um panorama geral das etnias que vivem na Bolívia e em que condições?

Xavier Albó - O tema daria outra entrevista. A principal novidade estatística foi que, no último censo de 2012, a porcentagem global de membros dos diversos povos IOC caiu de 62%, em 2001, para apenas 41% nesse novo censo, apesar de toda a retórica indigenista do governo desde 2006. Eu mesmo continuo esperando poder ter acesso a mais informações micro para interpretá-lo. Mas o que cheguei a compreender, de uma maneira para mim já bastante convincente, é que um fator muito importante da queda foi a nova formulação da pergunta.

No censo boliviano de 2001 essa pergunta foi muito precisa: “Você se considera pertencente a algum dos seguintes povos originários ou indígenas?”. O questionário explicitava apenas cinco povos, mas um sexto campo permitia marcar “outro nativo”, deixando espaço para especificar qual era este “outro”. No total, 62% disseram pertencer a algum povo indígena originário: os quéchuas eram 31 do total, outros 25% eram aimaras e outros 6% pertenciam a todos os outros, minoritários, todos menos um (os urus) em terras baixas; deles, apenas dois — guarani e chiquitano — passavam dos 100 mil e outros três dos 10 mil. Os outros não chegavam a tanto, incluindo seis que não chegavam nem a cem pessoas. Um sétimo campo era para os que afirmaram não pertencer a “nenhum” povo indígena (38% do total); este número foi criticado (sobretudo depois da eleição de Evo em 2006) dizendo que os “brancos” e “mestiços” tinham “minguado”.

Ao contrário, no censo de 2012 a pergunta foi reformulada de uma maneira muito mais complicada a partir das discussões não das bases, mas daqueles que participaram ativamente da CPE. Dizia: “Como boliviana ou boliviano, pertence a alguma nação ou povo indígena originário camponês ou afroboliviano?” Com estas três respostas preestabelecidas: Sim / Não pertence / Não sou boliviana ou boliviano. Só depois e para quem respondeu nesse primeiro momento “Sim”, acrescentou-se a pergunta aberta, “A qual?”, com a ajuda de uma longa lista (que não devia ser lida a cada pessoa entrevistada) na qual estavam relacionados todos os povos que foram classificados após o censo 2001, mais “afroboliviano” e vários outros que tiveram suficiente pulso para serem explicitados nessa lista. A novidade, e — para mim — determinante, foi que apenas alguns meses antes do censo, nesse mesmo ano de 2012, foi feita uma nova pesquisa do grupo LAPOP, que as faz periodicamente em muitos países da América Latina, com uma sofisticada amostra, na qual se usou a formulação muito mais simples do censo de 2001; e com esta, o número de originários ou indígenas não baixou, mas subiu para 71%. A maneira de perguntar, portanto, sem dúvida influiu muito. Portanto, não podem ser comparados sem mais os dados dos censos de 2001 e 2012 para tirar conclusões precipitadas sobre mudanças temporais na composição étnica do país: “Dize-me como perguntas e eu te direi quantos são”.

IHU On-Line - De que maneira o Projeto de Interculturalidade é capaz de fortalecer a identidade das nações e dos povos indígenas, permitindo uma aproximação das diferenças? Como esta ideia foi aplicada na Bolívia?

Xavier Albó - Minha síntese é a seguinte: acabaram-se os “mono-”. Todos somos “pluri-”. E é bom se somos “inter-”, para o que devemos ser iguais em poder. Explico-me: o “mono-” que devemos superar pode ser cultural, em gênero (machismo), geração, política partidária, religião, trabalhos, disciplinas, etc. Em tudo isso devemos fomentar antes o reconhecimento da nossa pluralidade nesses diversos âmbitos; haver um elogio à diversidade, como algo potencialmente bom. Mas, para que seja realmente bom não devemos ser compartimentos estanques, com grandes barreiras entre um grupo e outro (seria apartheid), mas capazes de nos compreender, intercambiar e enriquecer-nos mutuamente em nossa diversidade. Todos devemos ser “inter-” (culturais, gênero, partidos políticos, religiosos, disciplinas acadêmicas... o que quer que seja), desenvolvendo para isso uma atitude inicial de abertura ao diferente e aos que são diferentes. Mas, para que isso seja realmente assim, essas relações “inter-” devem ser de igual para igual em termos de poder, informações, oportunidades, reconhecimento, etc.

“Onde, sim, houve notáveis avanços para todo o setor popular tanto urbano como rural é numa série de bônus (para mães, idosos, estudantes...), nos aumentos do salário mínimo e na infraestrutura rural”

Nos inícios do MAS e do Evo prevaleceu a euforia dos antes marginalizados para se autoafirmarem e isso provocou também resistências e polarizações por parte dos que até então eram os donos do circo. E também agressividades desnecessárias por parte dos emergentes. Mas a essa altura, creio que essas polarizações já diminuíram bastante, felizmente.

IHU On-Line - Como e em que contexto surgiu a concepção do bem-viver (Suma Qamaña) na Bolívia? Quais são os principais componentes dessa utopia e como repercutiu entre os demais povos indígenas da América Latina? Quais foram as principais dificuldades na construção do Sumak Kawsay?

Xavier Albó - Eu comecei a ouvir falar do Suma Qamaña poucos anos antes do processo atual, não no campo, mas como resposta do sociólogo aimara Simón Yampara a uma consulta teórica promovida por um professor alemão de Postdam em diversos povos do Terceiro Mundo sobre seu sentido de “desenvolvimento” e de “progresso”. Simón respondeu-lhe que estes conceitos não existiam na língua aimara. O que existia era o Suma Qamaña. No começo do atual processo, David Choquehuanca, desde o começo e até agora chanceler do novo Estado Plurinacional, recolheu este mesmo conceito que chegou inclusive à nova CPE e foi clonado na nova CPE equatoriana em quéchua como Sumak Kawsay. Anos antes, em 1990, a rádio quéchua e Ong ACLO, do sul da Bolívia, completava seus 25 anos de vida e organizou um concurso em busca de um lema, e aquele que ganhou após ampla participação foi allin kawsayta mask’aspa‘buscando uma vida boa’. Em quéchua, allin e sumak são quase sinônimos.

Há, portanto, uma base tanto em quéchua como em aimara para estas expressões. Mas, como uma nova utopia, segue sendo algo em permanente construção que, na sequência, encontrou eco em muitos outros povos indígenas, que têm frases comparáveis, cada uma com seus matizes. Por exemplo, o yvy maraei ‘a terra sem males’ dos Guarani.

No caso da Mãe Terra, apesar dos belos discursos para fora, nos últimos anos houve antes retrocessos. Um dos mais notórios foi a ampliação das possibilidades de desmatamento com outros 13 milhões de hectares, para satisfazer setores pecuaristas e plantadores de soja de Santa Cruz, agora que já não representam mais uma ameaça para a hegemonia do MAS...

Aprovou-se uma longa Lei Marco da Mãe Terra e Desenvolvimento, com interessantes propostas teóricas na primeira parte, mas pouco aplicáveis. Antes, ao tentar aterrissar, fica no desenvolvimento econômico de sempre. No escritório nacional de parques nacionais gostam do lema “Mãe Terra + Desenvolvimento = Viver-bem”. Mas não esclarecem que modelo de desenvolvimento fomentam para isso.

A Bolívia encaixa-se em tudo isso no esquema que o uruguaio Eduardo Gudynas encontra em toda a esquerda latino-americana, uma vez que chega ao poder: passa dos programas mais ideológicos com que buscava aproximar-se das suas propostas utópicas, para outros mais programáticos e em que se dá muita importância ao “progresso”, o que pode trazer bons benefícios eleitorais.

Eu me animaria a acrescentar, inspirado em parte em Silvia Rivera, que na vida cotidiana há muita mistura entre o viver “bem” (entre todos), o viver “melhor” (uns às custas dos outros, o contrário do anterior) e até francamente o viver “mal” (com práticas abertamente criminosas). A metáfora e conselho bíblico de deixar crescer juntos o trigo e o joio parece inevitável, embora não saiba como se poderia fazer depois a seleção após a colheita.

A rigor, essas oscilações e contraposições conjunturais e/ou teóricas ocorrem em todas as partes. Tornou-se célebre a frase de um presidente mexicano: “Nem sim nem não, muito pelo contrário”. Até mesmo o presidente uruguaio Pepe Mujica, muito mais coerente que o nosso entre o seu estilo de vida e suas propostas, e preferido, inclusive, segundo Evo, de sua própria irmã Ester Morales, costuma dizer para matizar: “como te digo uma coisa, te digo outra”, sem priorizar muito o controle dos riscos ambientais (Gudynas em Página 7, Ideias, 24-07-2014).

(Por Patricia Fachin e Ricardo Machado – Tradução de André Langer)

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Evo Morales deve ser reeleito apesar de romper Pacto de Unidade com as cinco organizações dos povos indígenas camponeses. Entrevista especial com Xavier Albó - Instituto Humanitas Unisinos - IHU