21 Setembro 2023
O cardeal Angelo de Donatis, que faz as vezes do Papa à frente da diocese de Roma, divulgou esta segunda feira, dia 18, uma nota sobre o Centro Aletti e o padre e artista (e agora também ex-jesuíta) Marko Rupnik, que pode lançar suspeitas inquietantes sobre o Dicastério para a Doutrina da Fé e sobre a Companhia de Jesus.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 18-09-2023.
A nota refere-se à ‘visita canônica’ (vulgo inspeção) realizada de janeiro a junho deste ano à associação pública de fieis designada por Centro Aletti, com a finalidade de investigar “a dinâmica associativa e a real consistência das questões levantadas por algumas instâncias”. Mais especificamente, pretendeu “conhecer os métodos de funcionamento da Associação e o funcionamento eficaz dos seus órgãos sociais; o exame da vida associativa em todas as suas vertentes, incluindo as relações dos associados com o fundador [Rupnik] e com o grupo de dirigentes, bem como a dinâmica relacional entre os próprios associados, com referência… também ao período anterior a 5 de junho de 2019″, que foi a data da constituição do Centro Aletti como associação de fieis, depois de ter sido, ao longo de um quarto de século um serviço da responsabilidade dos Jesuítas. O encarregado da investigação foi Giacomo Incitti, professor catedrático de Direito Canônico da Pontifícia Universidade Urbaniana. Desde 23 de junho que Donatis está na posse do relatório final. A nota que agora divulgou no site do Vicariato de Roma sublinha que não se apurou qualquer problema na visita canônica. No seio do Centro Aletti, refere o texto,” existe uma vida comunitária saudável, sem quaisquer problemas críticos específicos”.
Pelo contrário, os membros daquela associação, “embora penalizados pelas denúncias recebidas e pela forma como foram tratados, optaram por manter-se em silêncio – apesar da veemência dos meios de comunicação – para salvaguardar o coração e para abster-se de reivindicar uma espécie de irrepreensibilidade, pela qual eles se tornariam juízes dos outros”, tendo mesmo fortalecido “a confiança no Senhor”, no meio destas provações.
Por conseguinte, para o visitador, e agora também para o cardeal vigário da Diocese de Roma, no Centro Aletti está tudo bem e a provação até reforçou a comunidade daquele Centro. A visita canônica foi, assim, dada por encerrada.
Porém, o professor investigador também se debruçou sobre “as principais acusações” feitas a Marko Rupnik, “especialmente aquele que originou o pedido de excomunhão”, como constava – sabemo-lo agora, pela nota – do “pedido explícito formulado no decreto de nomeação”, dadas as eventuais repercussões na vida da associação Centro Aletti.
“Com base no abundante material documental estudado, vinca o comunicado do cardeal de Donatis, o visitador conseguiu encontrar e, portanto, denunciar procedimentos gravemente anómalos, cujo exame também gerou dúvidas fundadas sobre o próprio pedido de excomunhão”.
Em face disso e “tendo em conta a gravidade destas constatações, o cardeal vigário submeteu o relatório às autoridades competentes”, que a nota não especifica quais são.
De entre as dúvidas que este texto levanta, destaca-se a referência a um “pedido de excomunhão”, que só poderia ter sido solicitado pela então Congregação para a Doutrina da Fé, de uma das vezes que se pronunciou secretamente sobre os abusos sexuais e de poder contra o padre Rupnik, por parte de várias mulheres que pertenceram à Comunidade Loyola, quando o jesuíta era quem ali pontificava.
Ora, a avaliar por vários documentos públicos da Companhia de Jesus e por afirmações perentórias do geral Arturo Sosa, não houve um pedido de excomunhão, mas o reconhecimento de que o delito praticado (absolvição de uma alegada cúmplice de relações sexuais) implicava automaticamente a excomunhão. A excomunhão terá sido decretada e terá sido retirada poucas semanas depois. O que diz o cardeal vigário constitui, assim, não apenas uma inexatidão, mas um enviesamento ou, como referem os editores de Il Sismografo, uma mentira, que eles veem como forma de “exonerar” eventuais responsabilidades do Papa Francisco neste caso.
O outro aspeto que é questionável nesta nota do cardeal Donatis é a ausência total de referência às vítimas – calcula-se em cerca de duas dezenas, pelo menos – várias das quais acabaram por contar as violências de que foram objeto nas mãos de Rupnik. De resto, é de uma forma ímpia que ele se refere a esta trajetória de abusador, falando vagamente em “acusações” ou, mais ainda, em “acontecimentos relativos ao Pe. Marko Rupnik”.
Não será de estranhar que a generalidade dos media esteja a ler a posição da diocese de Roma como uma forma de abrir caminho à reabilitação de Rupnik e à limpeza de imagem do Centro Aletti, onde ele continua a ser a figura mais marcante, e que não perdeu tempo a surfar a onda: a sua diretora atual, Maria Campatelli foi recebida na última sexta-feira pelo Papa Francisco e a página do Centro no Facebook desdobrou-se a publicar traduções da nota da diocese nas principais línguas, incluindo várias dos países de leste.
Recorde-se que, quando o escândalo em torno deste padre, teólogo e artista rebentou, em inícios de dezembro de 2022, correram relatos de uma reunião do conselho episcopal do Vicariato, em que, perante perguntas sobre o que estava a vir a público quanto a Rupnik, Donatis tentou acabar a conversa, dizendo que tudo não passava de uma campanha midiática. E foi um seu auxiliar, que foi visitador canónico da Comunidade Loyola e que conhece a extensão das violências do ex-jesuíta, que avisou que havia fundamento para o que se dizia.
O novo prefeito para a Doutrina da Fé, Victor Manuel Fernandez, que iniciou funções na última semana, e cujo Dicastério fica, de algum modo, posto em causa, na nota do cardeal Donatis, tem aqui uma oportunidade para dar sinais de querer romper com o secretismo e a falta de transparência que tanto descrédito tem trazido à Igreja, criando a ideia de que há, também nela, filhos e enteados. Olhando o comportamento dos serviços centrais da Igreja neste caso, tem sido aquilo que os italianos designam por “omertà” (um silêncio conivente e reverente) que tem prevalecido.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Questionada a excomunhão do padre Rupnik e esquecidas as vítimas de abuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU