Irmão Charles: ícone do diálogo. Entrevista com Brunetto Salvarani

Foto: Arquivo | Vatican Media

17 Mai 2022

 

Em 15 de maio, o irmão Charles de Foucauld foi declarado santo. O teólogo Brunetto Salvarani, em seu último livro – Fino a farsi fratello di tutti. Charles de Foucauld e papa Francesco” [Até se fazer irmão de todos. Charles de Foucauld e Papa Francisco] –, além do perfil biográfico, evidencia sobretudo a modernidade do seu desejo de se tornar “irmão de todos”, tanto que Francisco, na sua encíclica Fratelli tutti, o indica como ícone do diálogo.

 

A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News 15-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Brunetto, por que um novo livro sobre Foucauld?

 

A figura de Charles de Foucauld escapa a qualquer definição absoluta: mas é certo que a sua vocação profunda foi a de traçar novos caminhos no seguimento de Jesus, sem medo de tomar itinerários tão radicais quanto inéditos.

 

Não me propus a escrever uma nova biografia dele, mas sim uma reflexão sobre como o modelo de “santidade hospitaleira” vivido pelo “irmão universal” ainda é eloquente hoje e pode representar um paradigma credível na atual mudança de época, sobretudo na perspectiva de um encontro dialógico cada vez mais premente entre cristãos e muçulmanos.

 

Daí a abrangência do livro, subdividido em três capítulos nos quais emergem – pelo menos eu espero – uma multidão de fios que poderiam se conectar uns aos outros em mais de uma direção.

 

Capa do livro Fino a farsi fratello di tutti. Charles de Foucauld e papa Francesco, de Brunetto Salvarani. (Foto: Divulgação)

 

No primeiro capítulo, eu repasso – sem pretensão de completude, obviamente – algumas das experiências mais significativas de diálogo com o mundo muçulmano, experimentadas ou teorizadas no lado católico do cristianismo, de Francisco de Assis aos monges mártires de Tibhirine, passando pela declaração conciliar Nostra aetate e pelo cardeal Martini: dentro de uma história cheia de conflitos, mal-entendidos, incompreensões. Joias preciosas a serem conservadas na nossa memória eclesial, hoje tão desfocada e cansada ao sedimentar a tradição autêntica.

 

O segundo capítulo, valendo-se muitas vezes dos seus escritos, se detém sobre os ousados e surpreendentes acontecimentos de Foucauld, com o objetivo de mostrar como a sua vida é exemplar, mas também, paradoxalmente, totalmente imitável, na sua inspiração profunda, para quem quer captar o seu sentido genuíno.

 

O terceiro capítulo, por fim, delineia – a partir dos seus textos e do seu magistério dialógico – a estreita relação que o Papa Francisco escolheu estabelecer com o eremita francês, quase o elegendo como ponto de referência ideal e estrela guia do seu projeto de relações fraternas com o mundo muçulmano. Um projeto, obviamente, totalmente antitético ao ventilado “choque de civilizações” que assolou a cultura ocidental após os trágicos atentados de 11 de setembro de 2001.

 

Nessa perspectiva, Bergoglio está tecendo uma sistemática contra-narrativa em relação à recorrente “narrativa do medo”. É nesse nível que se compreende o significado histórico do seu empenho contra os muros e todas as formas de guerra religiosa, na intenção de esvaziar a partir de dentro a máquina narrativa dos milenarismos sectários que caminha de mãos dadas com um suposto apocalipse iminente e o confronto final. Fazendo compreender que, como Foucauld bem entendera, em última análise e apesar das sereias contrárias, hóspedes da terra, nossa casa comum, somos “todos irmãos”.

 

Em síntese, quais são as características marcantes da história humana de Foucauld?

 

Charles-Eugène de Foucauld nasceu em Estrasburgo, na Alsácia, em 15 de setembro de 1858, de uma antiga família nobre, cujo lema histórico é “Nunca se retirar!”. Ele morreria em circunstâncias dramáticas, no deserto argelino ao qual havia sido impulsionado (e não “retirado”) para seguir aquela que ele finalmente intuíra como a sua vocação definitiva, em 1º de dezembro de 1916.

 

Ele teve uma vida bastante curta, portanto, apenas 58 anos; no entanto, as definições que lhe podem ser atribuídas são muitas e variadas. Oficial de cavalaria bem disposto à ação, brilhante explorador em terras africanas, estimado geógrafo e etnólogo, linguista meticuloso e, naturalmente, homem do Espírito, presbítero, monge e depois eremita em Dar al-Islam.

 

Apesar disso e de uma existência muito poliédrica, na realidade, de todos os objetivos a que se propusera, ele não alcançou sequer um só: gostaria de ter fundado uma ordem religiosa ou, pelo menos, um instituto de irmãos, mas, apesar de repetidas tentativas e experimentações, não teve sucesso.

 

Por outro lado, recusou-se a se tornar aquilo que lhe era exigido de vez em quando pela família e pelas oportunidades que se lhe apresentavam, primeiro estudante modelo e depois soldado de carreira, optando por permanecer constantemente à margem, para se entregar, no fim, ao silêncio, à escuta e à oração.

 

Embora habitando no deserto profundo lado a lado com os tuaregues, tradicionalmente muçulmanos sunitas, não determinou neles nenhuma conversão ao Evangelho, até encontrar a morte, assassinado por razões fúteis, quando ainda estava no auge da sua maturidade intelectual e espiritual.

 

Além disso, finalmente, ele não pode ser chamado de teólogo em sentido estrito, nem de pensador original: quando morreu, não havia publicado nenhum dos seus escritos espirituais nem os seus trabalhos de linguística. Além disso, foi ele mesmo quem escolheu isso, defendendo que as obras de misericórdia a serem realizadas pelos futuros Irmãozinhos de Jesus deveriam se limitar àquelas que Jesus realizava em Nazaré: acolher os hóspedes e dar-lhes esmolas.

 

A sua biografia certamente é inquieta, a de um homem ansioso que nunca deixou de buscar: o sal da vida, a si mesmo, Deus e, no fundo, acima de tudo, Jesus.

 

Um homem que não suportava as meias medidas, as mediações, os equilibrismos, muito menos os compromissos, passando muitas vezes de um extremo ao outro, dos abismos da dissipação à glória mundana, até a perfeição evangélica.

 

É por isso que, diante dele e da sua história de moderno “Padre do deserto”, é impossível ficar indiferente: ou nos apaixonamos por ele, tentando conhecer tudo sobre ele, ou nos recusamos a nos deixar envolver diante de alguém que poderia até nos parecer um idealista um pouco louco, incapaz de lidar com a dura realidade. Tudo e imediatamente, como quando Charles redescobre o cristianismo (redescobre literalmente, no sentido de que consegue tirar o véu que o tornava a depositária religião da família, à qual havia sido obrigado a se adequar). Tanto que ele admitiu, em 1886, já com 28 anos de idade: “Assim que acreditei que Deus existe, entendi que não poderia fazer outra coisa senão viver somente para ele”.

 

Porém, o nome de Foucauld se tornou, ao longo das décadas, um ponto de referência seguro e imprescindível para se orientar em múltiplos âmbitos: por exemplo, para quem quer se aproximar de uma radicalidade evangélica à imitação de Jesus pobre, para o sempre difícil (mas também inadiável) diálogo entre cristãos e muçulmanos, para quem aceita se deixar fascinar por uma espiritualidade do deserto acessível tanto a crentes quanto aos (chamados) não crentes.

 

“À sua imagem – escreve Franca Giansoldati – talvez todos os fracassados da história possam se reconhecer.” Mas o seu primeiro biógrafo, René Bazin, já tinha captado esse aspecto, apresentando-o assim: “Foi o monge sem mosteiro, o mestre sem discípulos, o penitente que sustentava, na solidão, a esperança de uma era que não deveria ver...”.

 

Qual é o papel de Foucauld na encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco?

 

A presença do Ir. Charles na Fratelli tutti me parece mais estratégica do que as citações que lhe foram reservadas na ocasião. A encíclica inteira, de fato, está encerrada entre dois ícones do diálogo: os parágrafos iniciais estão centrados em Francisco de Assis e os conclusivos, em Foucauld.

 

Não é exagero entrever nessa arquitetura uma indicação precisa do papa: o monge francês assumiu o bastão do primeiro, atualizou a sua herança no coração da modernidade, soube igualmente se equipar com uma visão de longo prazo, encarnando o espírito originário do Evangelho, aquele – para usar uma expressão cara ao Santo de Assis – lido “sine glossa”.

 

Um e outro passaram a primeira parte da sua existência entre experiências militares, sonhadas ou vividas, e no silêncio de Deus, antes de mudarem de caminho e de mentalidade, literalmente convertendo-se, embora tenham crescido com uma iniciação cristã.

 

Ambos, por fim, souberam concretizar os seus respectivos sonhos não com palavras, mas com gestos de uma radicalidade que trazia em si gérmens de expansão universal. A ponto de chegarmos a defender que a espiritualidade do eremita alsaciano não emerge somente nos parágrafos finais do documento papal, mas permeia a encíclica inteira.

 

No número 286 da encíclica, o Papa Francisco o cita – separadamente – em uma lista de homens e mulheres que o inspiraram na reflexão sobre a fraternidade universal. Recorda a sua “profunda fé” e a sua “intensa experiência de Deus”, que o levou a “um caminho de transformação até se sentir irmão de todos”.

 

Esse é o cenário em que Foucauld resolveu viver em terra estrangeira, enfrentando a solidão, com a única certeza de querer se transformar no próximo de qualquer pessoa, testemunha da possibilidade real de uma fraternidade sem fronteiras.

 

E é nessa chave que não é difícil compreender o motivo pelo qual o segundo capítulo da Fratelli tutti, intitulado “Um estranho no caminho”, deve ser lido como o coração pulsante de todo o texto. Nele, comenta-se a história do chamado Bom Samaritano (Lc 10,25-37), na qual Jesus responde à pergunta “Quem é o meu próximo?” (10,29), à maneira rabínica, por meio de mais uma pergunta: “Quem foi o próximo daquele pobre coitado que caiu nas mãos dos bandidos?”. Pode-se dizer que é a partir do ícone do Bom Samaritano, com os seus gestos todos humanos e não motivados religiosamente, que a ¬encíclica tem início.

 

E, simetricamente¬, ela se encerra com a espiritualidade nazarena de Foucauld, que ¬contrai com a humanidade com a qual se cruza uma relação de amor não exibido, mas vivido como diálogo e doação que precedem o próprio anúncio querigmático. De modo que, na vida oculta de Jesus nos 30 anos de Nazaré, ele não pregou nem ofereceu generalidades religiosas ou identitárias, mas viveu como irmão e concidadão entre homens e mulheres.

 

Eis, depois, o número 287 da encíclica, na qual aparece uma síntese rápida e muito feliz da experiência espiritual do Ir. Charles, com um último desejo: “O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos’. Enfim queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amém”.

 

Nessa chave, Foucauld passa a se tornar, de fato, com a sua canonização, o santo do diálogo inter-religioso. Que foi levado de volta à fé cristã da infância pelo encontro, durante uma viagem ao Marrocos, com muçulmanos e judeus que marcavam seus próprios dias com a oração e o abandono a Deus. Porque os encontros com a alteridade, a um ouvido capaz de escuta, nunca nos deixam indiferentes.

 

O que de Foucauld tem a dizer hoje sobre o delicado tema da missão cristã?

 

Sabe-se que, nas últimas décadas, o conceito de missão foi submetido a uma amplíssima revisão no que diz respeito aos modelos até agora adotados, revisão realizada não só pelos teóricos do assunto, os missiólogos, mas também pelos próprios agentes in loco, missionárias e missionários, clérigos e leigos.

 

As respostas à crise dessa noção são bastante diversificadas, assim como as vivências concretas dos atores diretos: desde a recuperação dos modelos mais tradicionais que visam a repropor antigos esquemas considerados sólidos e intocáveis até tentar caminhos inéditos, que, durante a sua execução trabalham, experimentam – certamente a um alto preço – o árduo caminho de inculturação do anúncio evangélico, na consciência de que sempre é preciso partir da escuta da realidade, antes mesmo de ostentar doutrinas e ideias a serem levadas ao lugar sic et simpliciter.

 

São muitas as causas da transformação em curso: desde os efeitos da descolonização nos países que chamávamos até alguns anos atrás de Terceiro Mundo até os desenvolvimentos nas ciências sociais, especialmente na Sociologia e na Antropologia, finalmente acolhidos como necessários para entender as mudanças em curso; das drásticas mudanças de mentalidade ligadas ao decreto conciliar Ad gentes, que optou por fundamentar bíblica e teologicamente a missão e, ao mesmo tempo, por estender a toda a Igreja a tarefa de fazer missão, até o surgimento de uma chamada cultura pós-moderna.

 

Esta última é caracterizada por um sistema de valores e crenças bem mais profundos do que uma primeira observação superficial pode levar a pensar: entre outros, um forte senso do desenvolvimento histórico das ideias e dos pontos de vista; uma aceitação indiscutível da construção social do conhecimento e da influência das culturas na compreensão; uma clara consciência da imensidão, diversidade e mistério do mundo físico e social; o esgotamento das metanarrativas, as ideologias que até agora descreveram a realidade de modo abrangente.

 

Nesse panorama, os institutos missionários e, de modo mais geral, a missão da Igreja estão fazendo as contas com a sua debilidade, com a sua crescente fragilidade; e, ao mesmo tempo, com a necessidade de anunciar e testemunhar o Evangelho não com a potência dos meios ou dos suportes de vários tipos, mas com a extrema precariedade de uma situação de crise sistêmica constantemente in progress.

 

Nesse sentido, é insuperável a consideração de duas décadas atrás do bispo de Poitiers, o francês Albert Rouet, autor do best-seller “A chance de um cristianismo frágil”, referida a um jornalista que o instava a se expressar sobre o que a Igreja deveria ter feito para poder ser mais bem acolhida na atual conjuntura cultural, com a qual ele indicava com parrésia o seu sonho: “Respondo à pergunta com uma utopia. Gostaria de uma Igreja que ouse mostrar a sua fragilidade. Às vezes, a Igreja dá a impressão de não precisar de nada e que os homens não têm nada a lhe dar. Eu gostaria de uma Igreja que se coloque no nível do ser humano sem esconder que é frágil, que não sabe tudo e que ela também se questiona”.

 

Reler hoje a história de Charles de Foucauld pode nos ajudar a entrar em sintonia com esse clima e a voltar a nos pôr a caminho, apesar de todas as dificuldades objetivas. Sim, a fé cristã, no rastro do carisma do irmão universal, deveria nos impelir hoje a “avançar para águas mais profundas”, a apreciar o dom da incerteza e do mistério da criação, na consciência de que a missão é de Deus, embora limitada pelas nossas humildes tentativas de compreendê-la e de vivê-la.

 

Porque, se existe um ponto firme nesta época líquida, é que nada na missão e no anúncio evangélico será como antes, razão pela qual os fiéis são chamados desde já a se dispor à ruptura e à reinvenção da mensagem cristã, até abandonar definitivamente a ideia de um Deus onipotente, para abraçar a de um Deus que está no limiar da existência.

 

Em outras palavras, é preciso dialogar para crer: ressignificar o pluralismo, aceitar o caos também na busca de um sentido, na convicção de que a verdade não é uma posse; e que Deus – em um tempo marcado pela incerteza, justamente – se diz no movimento de se impregnar, misturar, doar, para encontrar no outro as razões perdidas de ser comunidade e de tecer laços. Irmãos (e irmãs) todos.

 

É por isso que, no fim das contas, e apesar dos ainda muitos profetas da desventura (companheiros ideais daqueles desprezados por João XXIII quando introduzia, há 60 anos, o Concílio Vaticano II com a Gaudet Mater Ecclesia), esta mudança de época não só não deveria assustar, mas também poderá fazer bem ao Evangelho e à sua credibilidade. Porque “se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; se, por outro lado, morre, produz muito fruto” (Jo 12,24).

 

Referência:

SALVARANI, Brunetto. Fino a farsi fratello di tutti, Charles de Foucauld e papa Francesco. Assis: Cittadella, 2022, 184 páginas.

 

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