Rerum Novarum abriu caminho para a evolução de toda a legislação social e trabalhista. Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior

A Carta Encíclica de Leão XIII indicou os "remédios" para as "profundas transformações do mundo moderno", diz o jurista.

Foto: Reprodução | Conhecimento Científico

Por: Patricia Fachin | 17 Mai 2021

 

Hoje, 15 de maio, a Carta Encíclica Rerum Novarum (das coisas novas), que tratou sobre “o regime econômico moderno e as condições de vida e de trabalho dos operários”, completa 130 anos. As reflexões do Papa Leão XIII sobre a propriedade privada, o direito aos bens comuns, o salário justo e as relações entre trabalhadores e empregadores, foram fundamentais para “a criação da Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 1919, e, sobretudo, estabelece os enunciados do que se designou como Doutrina Social ou, como alguns preferem (Jean-Marie Faux), Ensino Social da Igreja”, lembra José Geraldo de Sousa Junior, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

À época, pontua, a Encíclica indicou “‘remédios’ alternativos para debelar as tensões e as reduções do humano alienado em sua dignidade numa sociedade convulsionada pelos conflitos decorrentes das direções ideológicas do modo de produção capitalista em antagonismo com as interpelações do modo de produção socialista”.

 

Hoje, mais de um século depois da publicação do texto papal, com o advento das novas tecnologias e das constantes transformações no mundo do trabalho, “a Rerum novarum já não pode ser analisada em si, senão à luz dos carismas que a precedem e que a sucedem, num liame de historicidade que testifica o caminho social de humanização do espírito e do povo de Deus. Trata-se do ‘realmar’ de que fala o Papa Francisco, talvez aludindo a Sublimis Deus do Papa Paulo III, ao definir que os índios ‘têm alma, são nossos irmãos, gente como nós’”, pondera.

 

A seguir, ele comenta alguns aspectos da Rerum Novarum em comparação com a Fratelli Tutti, publicada recentemente pelo Papa Francisco. “O primeiro passo que Francisco dá é o de compilar uma fenomenologia das tendências do mundo atual que são desfavoráveis ao desenvolvimento da fraternidade universal. O ponto de partida das análises de Bergoglio é frequentemente – senão sempre – aquele que ele aprendeu com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que convidava a rezar imaginando como Deus vê o mundo”, afirma.

 

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a atualidade da Carta Encíclica Rerum Novarum, 130 anos depois de sua publicação, num contexto em que a vida dos trabalhadores e o mundo do trabalho foram amplamente modificados?

José Geraldo de Sousa Junior - A Carta Encíclica do Papa Leão XIII – Rerum Novarum (das coisas novas), sobre “o regime econômico moderno” e as condições de vida e de trabalho dos operários, que neste mês de maio, dia 15, completa 130 anos de sua publicação, abriu caminho para a evolução de toda a legislação social e trabalhista nos anos que se seguiram, inclusive com a criação da Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 1919, e, sobretudo, estabelece os enunciados do que se designou como Doutrina Social ou, como alguns preferem (Jean-Marie Faux), Ensino Social da Igreja.

O Padre Fernando Bastos de Ávila na sua obra literária Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja (Edições Loyola, 1991), no aniversário de 100 anos da histórica Encíclica, em avaliação relevante e precisa daquele documento, sugere as intuições do Pontífice: “O programa de Leão XIII abrange muitas exigências. O acesso e a garantia da propriedade privada para todos; direito ao repouso dominical que era desrespeitado de maneira cruel; a limitação da jornada de trabalho, especialmente para crianças e mulheres. Todavia, a coisa mais inovadora 'das coisas novas' – Rerum Novarum – foi a definição da justiça do salário. O salário justo é aquele que garante: condições de vida digna para o trabalhador, para sua família e possibilidades de poupança para enfrentar os imprevistos e as fatalidades mortais da vida. A encíclica consagra assim o salário-família como um dever de justiça, e não como uma mera utopia complacente. A encíclica consagra também a previdência privada”.

 

 

Remédios para as reduções do humano alienado em sua dignidade

No contexto de profundas transformações do mundo moderno, a iniciativa de Leão XIII procurou entreabrir a Igreja para essa realidade, indicando “remédios” alternativos para debelar as tensões e as reduções do humano alienado em sua dignidade numa sociedade convulsionada pelos conflitos decorrentes das direções ideológicas do modo de produção capitalista em antagonismo com as interpelações do modo de produção socialista.

Em seus limites, pois afirmava a permanência de uma condição fundamental inscrita na apropriação privada dos bens da vida, a Rerum Novarum lançou as bases para que em capítulos atualizados de seus fundamentos, a Igreja desde então, não mais negligenciasse o sentido do humano inscrito em suas lutas por reconhecimento e dignidade, na continuidade das exclusões que só se aprofundam no mundo do trabalho e nas condições de vida dos trabalhadores.

 

IHU On-Line - Que contribuições a Encíclica oferece para pensar a relação trabalhador versus empregador e os direitos e deveres dos trabalhadores e empregadores?

José Geraldo de Sousa Junior - A Encíclica assumiu a convicção de que as estruturas de produção e o capital eram erigidos a sistema de poder que, investido em poucos, submetia as massas operárias a uma privação de direitos inaceitável, gerando o que dirá depois Pio XI, na Quadragesimo Anno, um verdadeiro “despotismo econômico”, sobrepondo a economia da acumulação privada à própria vida.

 

Princípios e valores da Doutrina Social da Igreja

Se, considerando todos esses documentos, podemos deduzir o que se denomina Doutrina Social da Igreja, neles podem ser indicados princípios e valores que a condensam:

1) A dignidade da pessoa humana, como criatura à imagem de Deus e a igual dignidade de todas as pessoas;

2) respeito à vida humana,

3) princípio de associação,

4) princípio da participação,

5) princípio da solidariedade,

6) princípio da subsidiariedade,

7) princípio do bem comum,

8) princípio da destinação universal dos bens.

Apresentada de modo sistematizado e orgânico em 2004 no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, fruto de trabalho do Pontifício Conselho Justiça e Paz, a Doutrina Social da Igreja, podemos encontrar nesse documento, à luz de seus fundamentos, como nele é compreendida a encíclica Rerum Novarum, "na verdade [a] carta magna da atividade cristã no campo social, em busca de uma ordem social justa. À vista dos problemas resultantes da revolução industrial que suscitaram o conflito entre capital e trabalho aquele documento enumera os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo como remédio e expõe de modo preciso e atualizado a doutrina católica sobre o trabalho, o direito de propriedade, o princípio da colaboração em contraposição à luta de classes, sobre o direito dos mais fracos, sobre a dignidade dos pobres e as obrigações dos ricos, o direito de associação e o aperfeiçoamento da justiça pela caridade".

 

 

IHU On-Line - Diferentemente de muitas teorias sociológicas que compreendem trabalhador e empregador como membros de duas classes em oposição, disputa e conflito, a Encíclica busca superar essa visão, compreendendo ambos como partes do todo. Quais são as vantagens ou desvantagens dessa compreensão?

José Geraldo de Sousa Junior - Se se pode falar em vantagem, considerando que a visão ainda se mostra de curto alcance por temer confrontar um fundamento, chamado de natural, mas que é histórico (basta ler no Gênesis 47: 20-21: “Então José comprou para o Faraó todos os terrenos do Egito, pois os egípcios, forçados pela fome, venderam seus terrenos. Desse modo, todo o país tornou-se propriedade do Faraó. Quanto aos homens, o Faraó os tornou escravos de uma extremidade à outra do território do Egito”), de sacralização da propriedade privada, a preocupação com “as coisas novas” inaugura uma atitude que depois o Papa Francisco vai professar como compromisso pastoral: “Digamos sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas”, pois, quando “o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez pelo dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco nossa Casa Comum” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares).

 

 

Trata-se de fortalecer o protagonismo dos sujeitos, sujeitos históricos – os movimentos sociais – para operar essa mudança. “Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e os excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca dos ‘3 T’ (terra, teto e trabalho), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudanças nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!... Vós sois semeadores de mudanças” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares).

 

Salário universal

Já em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4/2020), exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no ‘depois’, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

 

Expectativas civilizatórias

De todo modo, o que pretendo pôr em causa, sintonizado com os elementos trazidos com a Fratelli Tutti, é a questão que se coloca quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande Praça São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?

Daí dever-se indagar: Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade?

 

 

IHU On-Line - Apesar do avanço tecnológico, inúmeros trabalhadores são submetidos a trabalhos precários e não recebem um salário justo por meio do qual possam garantir uma vida digna e sanar as suas necessidades e as de suas famílias. Ao contrário, a precarização de algumas atividades e profissões foram acentuadas com o advento das tecnologias. Que contribuições a Rerum Novarum oferece para enfrentar essa questão na sociedade?

José Geraldo de Sousa Junior - Penso que a Rerum Novarum já não pode ser analisada em si, senão à luz dos carismas que a precedem e que a sucedem, num liame de historicidade que testifica o caminho social de humanização do espírito e do povo de Deus. Trata-se do “realmar” de que fala o Papa Francisco, talvez aludindo a Sublimis Deus do Papa Paulo III, ao definir que os índios “têm alma, são nossos irmãos, gente como nós”.

Nesse passo, recupero o tema proposto para a minha interlocução com o Grupo Juventude Franciscana Sempre, O direito achado na rua: rastros de democracia, justiça e espiritualidade, que me instigou a, de um lado, sem dissolver o meu argumento no fundamento teológico, buscar nesses rastros pontos de confluência entre o direito como emancipação e a configuração, segundo os valores franciscanos, de uma religião encarnada, pensando em Francisco e a sua concepção do “mundo como convento” e, portanto, de um “carisma missionário” que se expressa como “necessidade de agir”, vale dizer, atuar no mundo para contribuir para fazer “a humanidade mais humana” e o próprio mundo “mais habitável”, que não se mantenha ensombreado “num mundo fechado”, antes abrindo-se aos desafios que se nos apresentam, tal como indica o Papa Francisco no primeiro capítulo da Fratelli Tutti.

Retirei, então, do Curso Básico sobre o Carisma Missionário Franciscano – Cristianismo, a religião da Encarnação. Redação original em língua alemã Maria Crucis Doka OSF, Patricia Hoffmann, Margarethe Mehren OSF, Andreas Müller OFM, Othmar Noggler OFMCap e Anton Rotzetter OFMCap. Centro Missionário dos Franciscanos (MZF) Tradução para o português Malina Hoepfner RSCJ. Revisão literária Renato Kirchner. Petrópolis: FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL. Caixa Postal 90.174 CEP 25621-970, 1994 – a indicação de que segundo esse carisma, a motivação missionária que procede de São Francisco (e também de Clara), conduz à exigência de testemunho de um Deus que se intrometa na vida do mundo, na vida da gente. “Um Deus que deseja libertar-nos de todas as formas de servidão e de falta de liberdade”.

Ou seja, impregnando-se de uma espiritualidade profundamente secular, mais ação de leigo que clerical, trata-se de converter-se a um modo de vida que acolha tal como os capuchinhos de Gex acolheram o agnóstico François de Voltaire, menos por sua nenhuma fé mas pela intensa proximidade. Pois, “mesmo sendo verdade que Deus habita a alma humana individual”, é igualmente verdade que Ele “age através da história dos povos”, ao limite do sacrifício, “perante os processos de libertação dos povos e no engajamento em prol de mais justiça e paz”.

Estudando a Fratelli Tutti, mas também em toda linha pastoral de suas manifestações precedentes, não é difícil divisar no Papa Francisco, ainda que se constate que ele é o único Papa depois de São João XXIII que não participou de nenhum modo, presencialmente, do Concílio Vaticano II, nele revela-se que Francisco de Assis é o tema clandestino das discussões do Concílio, impulsionando a Igreja a evoluir sob seu impulso “evangelizador” (a partir das chaves da opção radical pelos pobres): opção pelos pobres (e sua libertação integral, que só é possível no tempo presente, através de uma Igreja em saída, que “primereia”, isto é, que toma a iniciativa, conforme o Papa Francisco) , teologia da libertação ou do povo, e uma Igreja em saída.

 

 

IHU On-Line - Ao tratar da origem da prosperidade nacional, a Rerum Novarum destaca que "em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum". Como essa Encíclica pode ser uma inspiração, ainda nos dias de hoje, para superar os nacionalismos e populismos, e avançar na direção da governança dos bens comuns, independentemente da instituição dos Estados nacionais?

José Geraldo de Sousa Junior - As sociedades existem, os estados são feitos. São sim, realidades, mas realidades artificiais, constituídas pelo engenho humano em sua experiência histórica. Datadas, portanto. O próprio estado nacional é moderno. Não existia como articulação de poder antes da modernidade. A política se realizava por outras mediações, a família, a sociedade civil e suas instituições. Nem a palavra estava em vernáculos. Quem pela primeira vez a emprega nesse sentido de articulação de poder é Maquiavel. Antes disso designava condição, estado de natureza, estado de sociedade. No contexto da Rerum Novarum o estado tem a força do impulso hegeliano do movimento do Espírito na história. Assim o vê Leão XIII. Já na Fratelli Tutti, o que está em causa é a direção de sociabilidades instauradas por “fraternidade sem fronteiras”.

 

Fratelli Tutti

Sigo aqui um bom resumo da Encíclica, valendo-me do excelente artigo publicado no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, pelo diretor da revista La Civiltà Cattolica, Pe. Antonio Spadaro. A Fratelli Tutti se abre com a evocação de uma fraternidade aberta, que permite que cada pessoa seja reconhecida, valorizada e amada para além da proximidade física, para além do lugar do universo onde nasceu ou onde vive. A fidelidade ao Senhor é sempre proporcional ao amor pelos irmãos. E essa proporção é um critério fundamental dessa Encíclica: não se pode dizer que se ama a Deus se não se ama o irmão. “De fato, quem não ama o próprio irmão a quem vê, não pode amar a Deus que não vê” (1Jo 4,20).

 

 

Desde as primeiras frases, destaca-se como Francisco de Assis estendeu a fraternidade não apenas aos seres humanos – e em particular aos abandonados, aos doentes, aos descartados, aos últimos, indo além das distâncias de origem, nacionalidade, cor ou religião – mas também ao sol, ao mar e ao vento (cf. nn. 1-3). O olhar, portanto, é global, universal. Essa Encíclica não podia permanecer alheia à pandemia da Covid-19, que eclodiu inesperadamente. Para além das várias respostas dadas pelos diversos países – escreve o Papa –, veio à tona a incapacidade de agir em conjunto, embora possamos nos orgulhar de estar hiperconectados. Escreve Francisco: “Oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’” (n. 35).

 

Indivíduo e comunidade

O cisma entre indivíduo e comunidade. O primeiro passo que Francisco dá é o de compilar uma fenomenologia das tendências do mundo atual que são desfavoráveis ao desenvolvimento da fraternidade universal. O ponto de partida das análises de Bergoglio é frequentemente – senão sempre – aquele que ele aprendeu com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que convidava a rezar imaginando como Deus vê o mundo.

O pontífice observa o mundo e tem a impressão geral de que está se desenvolvendo um verdadeiro cisma entre o indivíduo e a comunidade humana (cf. n. 30). Um mundo que não aprendeu nada com as tragédias do século XX, sem senso da história (cf. n. 13). Parece haver um retrocesso: os conflitos, os nacionalismos, o senso social perdido (cfr. n. 11), e o bem comum parece ser o menos comum dos bens.

 

Logo do Ano Inaciano.

 

Nesse mundo globalizado, estamos sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre a dimensão comunitária da existência (cf. n. 12). As pessoas desempenham o papel de consumidores ou de espectadores, e os mais fortes são favorecidos.

 

 

IHU On-Line - Quais são os limites da Rerum Novarum para os desafios de hoje?

José Geraldo de Sousa Junior - Na filosofia do agir humano, inscrita na ética do cristianismo, é a condição do trabalho que vai ganhar centralidade não somente para orientar a conduta de dignidade do membro da comunidade, tal como orienta Paulo (2 Tessalonicenses 2-10: “De fato, quando estávamos entre vocês, demos esta norma: quem não quer trabalhar, também não coma”). Mesmo o liberalismo, na principiologia de seu fundamento ideológico originário, cuidou também de inserir o trabalho na categoria dos direitos humanos, movendo-o no percurso de sua ressignificação histórica para fazê-lo abrigar-se como direito fundamental inscrito na atual Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Cuido de considerar a perspectiva preconizada em obra célebre de Roberto Lyra Filho (Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982), na qual o autor, entre outros achados preciosos para fixar a sua concepção de direitos verdadeiramente humanos, senão sob o pressuposto de extinção da exploração econômica e também do fim de todo tipo de opressão, sem o que a dignidade humana é impossível, alude à necessidade de “uma práxis voltada, segundo as aptidões de cada um, para a sociedade em que todo Direito seja Direito do Trabalho”.

Trata-se, aí radicava o seu programa de orientação dirigida aos juristas, de dar-se conta, tal como fizemos muitos de nós, de enfibrar nossas atitudes sociais e teóricas, especialmente, assim o formulamos em programa próprio (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; AGUIAR, Roberto A. R. de (orgs), Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua, v. 2, Curso de Extensão Universitária a Distância, Brasília: Universidade de Brasília, Editora UnB/CEAD, 1993), “nesse terreno em que o processo de conquistas graduais, pelo exercício de pressões emancipatórias mais problematiza a questão do direito, tornando necessário avaliar os aportes teóricos e as mediações políticas em condições de esclarecer as interconexões entre práxis social e prática intelectual dos vários operadores jurídicos”.

 

 

IHU On-Line - Que outras encíclicas papais publicadas após a Rerum Novarum oferecem contribuições significativas sobre os desafios a serem enfrentados no mundo do trabalho, especificamente no que diz respeito a garantir uma vida digna aos trabalhadores?

José Geraldo de Sousa Junior - Em seguida a 1891, quando o Papa Leão XIII sentindo a urgência dos novos tempos e das "coisas novas" promulgou a Encíclica Rerum Novarum, a ela seguiu-se a Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI em 1931. O beato Papa João XXIII publicou, em 1961, a Mater et Magistra e Paulo VI a Encíclica Populorum Progressio, em 1967, e a Carta Apostólica Octogesima Adveniens, em 1971. De sua parte, João Paulo II não foi menos preocupado com o tema da "questão social", publicou três encíclicas: Laborens Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e, finalmente Centesimus Annus em 1991, publicada após a queda do Muro de Berlim simbolizando uma espiral globalizada mas ainda profundamente colonial do “despotismo do econômico”.

É sob o impacto dessa nova onda de subjugação do humano e da dignidade do trabalho que devem ser consideradas as declarações, as exortações, as encíclicas do Papa Francisco, atualmente sintetizadas na Carta Encíclica Fratelli Tutti. Um pouco desse itinerário está oferecido na conversa que a Comissão de Justiça e Paz de Brasília organizou sobre os 130 anos da Rerum Novarum e seus impactos no mundo do trabalho e nos direitos sociais.

 

 

IHU On-Line - Quais são os principais ensinamentos da doutrina social da Igreja para as feridas sociais do mundo de hoje?

José Geraldo de Sousa Junior - O jesuíta Jean-Marie Faux, no seu livro Ensino Social da Igreja, avalia que determinar a influência da Doutrina Social da Igreja sobre a vida do mundo é uma tarefa delicada e só se pode chegar a uma cautelosa aproximação. Para ele, as “Encíclicas se dirigem, antes de tudo, aos fiéis da Igreja e ao pensamento e à vida dos católicos, podendo gerar um impacto”, que não é fácil avaliar. Aliás, a minha impressão, considerando as exortações do Papa Francisco, especialmente na Evangelii Gaudium, mesmo entre os católicos, sobretudo os demasiado acomodados às sacristias, é que as encíclicas circulam muito pouco, sendo a atenção mais voltada para as homilias paroquiais e aos catecismos que aos estudos difíceis. Por isso não surpreende posturas muito contraditórias com aspectos fundamentais de doutrina, contidos nesses documentos, que não alcançam a prática nem dos indivíduos, nem das comunidades. É muito pouco fraterna a sociabilidade corrente, por isso o chamado do Papa Francisco a uma Igreja em Saída e um apelo para que sejamos fratelli tutti.

Todavia, é exatamente o Papa Francisco e suas exortações, a direção mais evocativa para solidarizar-se com as feridas sociais de nosso tempo. Conforme lembram Frei Betto e Leonardo Boff, o Papa Francisco oferece, sobretudo na Encíclica Fratelli Tutti “uma aula de espírito crítico, humanismo e esperança” (). Mas quero registrar uma das leituras mais instigantes da obra, a de Leonardo Boff, na qual estabelece a sua avançada hermenêutica, para concluir que, diz ele: “Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar. De todos os modos, estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal”.

 

 

IHU On-Line - Como o senhor lê a Fratelli Tutti enquanto continuidade desse percurso de preocupação da Igreja com as questões sociais da humanidade?

José Geraldo de Sousa Junior - Recupero, nesse sentido, texto que escrevi sobre essa Encíclica, em minha Coluna Lido para Você publicada regularmente no Jornal Estado de Direito, de Porto Alegre.

Digo ali que trago a Carta Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, não porque seja membro da Comissão Justiça e Paz (da Arquidiocese de Brasília) e, como tal, em nossos programas e projetos o magistério de Francisco seja uma diretriz pressuposta. É que esse magistério invariavelmente, em suas exortações, declarações, cartas encíclicas, tem feito mais impacto entre homens e mulheres de boa vontade os quais pode dizer-se têm sido o interlocutor de um auditório ampliado, que entre os cristãos ecumenicamente falando e aos católicos em particular que não deveriam se esquivar desses ensinamentos. Entre estes últimos, em tempos controversos, há muito mais objetores a Francisco, que no público ampliado, entre os quais a sua mensagem repercute entre admiração, respeito e acolhimento. Seus críticos, entre os católicos, até mesmo próximos na Cúria Romana, não escondem o mal-estar diante desse Papa que querem ver logo substituído, porque “muito encarnado e da rua”.

Remeto, para uma articulação entre esses documentos, à Conversa de Justiça e Paz, promovida pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (vídeo abaixo), com o tema “8 anos com Francisco: um homem de palavra e de diálogo”, em boa articulação teológica, histórica e filosófica a cargo do historiador e teólogo Sérgio Coutinho.

 

 

Como disse, me vejo tocado pelas exortações do Papa Francisco não apenas pela incidência pastoral, mas porque em seus discursos e publicações tenho encontrado fonte consistente para estabelecer fundamentos para as minhas preocupações mais insistentes com os temas da Democracia, da Cidadania, da Justiça e dos Direitos. Aqui, no espaço da Coluna Lido para Você, têm sido frequentes as citações.

Neste texto, de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juristas: “Em mais uma de suas proverbiais intervenções, agora aos juízes, em encontro remoto com juristas das Américas e da África – Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – o Papa Francisco afirmou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” . “Nenhuma sentença pode ser justa – ele ainda afirmou –, se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”. 

 

 

Dimensão poética

O que considero instigante nessa exortação, é o Papa investir na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam cientes de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.

Para o Papa, eu disse na Coluna, poesia não é apenas declamar, incluir nas sentenças versos que adornem o discurso, se resumindo a “um punhado de palavras mortas”. Francisco quer encorajar, pois, a atitude sensível na prática e na atitude dos juízes e dos operadores do Direito: “façam de sua poesia uma prática e assim vocês serão melhores poetas e melhores juízes. E jamais esqueçam que uma poesia que não transforma é apenas um punhado de palavras mortas”.

E neste outro texto: “É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em 1º de janeiro de 2021. O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que 'o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer'”. 

 

 

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José Geraldo de Sousa Junior - A celebração de 130 anos da Rerum Novarum, nos meios mais iluminados por uma convencionalidade e uma constitucionalidade fraternas, resgata os fundamentos ético-teológicos que a animaram e o pensamento social que fecundou. É sabida a sua influência para a criação em 1919, no âmbito das Nações Unidas, da OIT – Organização Internacional do Trabalho.

Em si, em seu modo de elaboração, nos desdobramentos que ganhou no que se denomina Doutrina Social da Igreja e das encíclicas que a ela se seguiram, há impactos e desafios aos operadores do Direito e aos agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação dos Direitos Sociais em sentido amplo, e do Direito do Trabalho, em sentido estrito, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso, um pouco por toda parte, mas no Brasil de modo dramático.

As reformas que o projeto neoliberal instalou no país depois do questionável afastamento de uma presidência da República legitimamente instalada dão conta que esse movimento, junto com a desordem sanitária em plena pandemia da Covid-19, é um processo de destituição de direitos e de coisificação do humano, a serviço de um sistema “que cheira a esterco do diabo: reino da ambição desenfreada pelo dinheiro” (Discurso do Papa Francisco no II Encontro dos Movimentos Populares).

Neste exato momento em que ofereço respostas às questões postas pelo IHU, tramita projeto de decreto legislativo visando a denunciar a adesão do Brasil aos termos da Convenção 169 da OIT, um instrumento de salvaguarda de direitos sociais com afetação aos bens públicos e ao reconhecimento dos usos e modo de vida e existência dos povos indígenas, tribais, tradicionais.

Se se pudesse acrescentar questões aqui discutidas, eu diria, aliás, como questões que também me proponho, eu repito: Estaremos os operadores de direito e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frustrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo Tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor Nunes Leal a necessidade que tem a jurisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato” e, em última análise, a concretizar os fundamentos de uma sociedade solidária, conforme a máxima da justiça inscrita nos Atos dos Apóstolos 4: 34-35, de cada um conforme o seu trabalho, a cada um conforme a sua necessidade.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

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