Livro explica a ''renovação'' proposta pelo Concílio Vaticano II e como se chegou a ela

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20 Agosto 2019

Na sexta-feira, comecei minha resenha do livro crucialmente importante do padre jesuíta Jared Wicks, intitulado Investigating Vatican II: Its Theologians, Ecumenical Turn and Biblical Commitment [Investigando o Vaticano II: seus teólogos, a virada ecumênica e o compromisso bíblico, em tradução livre], e examinei a parte do livro que lida com o papel dos teólogos antes que o Concílio começasse e nos seus primeiros tempos. Aqui, concluirei a resenha.

O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 19-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Wicks escreve que, “até o fim de 1962, o Concílio havia se definido como um órgão de ampla renovação da Igreja Católica”, e o livro essencialmente explica o que era essa renovação e como ela foi alcançada.

Se você alguma vez já estudou a história do Concílio Vaticano II, sabe que, fortuitamente, o primeiro documento levado em consideração pelos Padres conciliares, o projeto de texto sobre o decreto sobre a liturgia, havia sido confiado a estudiosos e bispos que haviam sido profundamente engajados na renovação litúrgica em meados do século XX. O texto, depois de algum debate, recebeu uma esmagadora votação favorável à sua adoção nas primeiras semanas do Concílio.

E sabemos também que, ao avaliar o Concílio como um todo, a maioria dos historiadores e teólogos tem de lidar tanto com a Lumen gentium, a Constituição Dogmática sobre a Igreja, quanto com a Gaudium et spes, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno. Mas o livro de Wicks faz um argumento convincente de que é a Dei Verbum, a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, que é realmente a lente ou o filtro através do qual podemos entender melhor o significado dos outros documentos promulgados antes de o Concílio terminar seus trabalhos em 1965. Foi essa abordagem renovada das Escrituras e a necessidade percebida de fundamentar os textos conciliares na teologia bíblica que deu forma a todos os outros decretos.

O debate conciliar sobre a questão da revelação também demonstrou que a posição da Cúria era a posição minoritária. O esboço do decreto sobre a revelação, como visto em seu título – De Fontibus Revelationis – postulava a existência de duas fontes da revelação, a Escritura e a tradição. Mas os teólogos do “ressourcement” [refontalização] haviam demonstrado que havia apenas uma fonte de revelação, Jesus Cristo, que fala à Igreja tanto nas Escrituras quanto na tradição.

Essa não era uma mera mudança semântica. A diferença de perspectiva indicada pelas diferentes abordagens seria profunda, especialmente em termos de alcance ecumênico.

Quando os rascunhos ou esquemas dos textos foram enviados aos Padres conciliares seis semanas antes da abertura do Concílio, o já cego cardeal Josef Frings, de Colônia, dirigiu-se ao seu conselheiro teológico, o Pe. Joseph Ratzinger, para ajudá-lo a avaliar os esboços e responder a eles. Wicks conta a história:

Ratzinger, percebendo que o tempo era curto, compôs e datilografou uma carta em latim avaliando os sete esquemas. Quando o cardeal Frings recebeu a carta de Ratzinger, achou os conteúdos úteis e simplesmente acrescentou a data, a saudação apropriada ao cardeal secretário de Estado e a sua assinatura, e enviou a carta ao Vaticano. A carta julgava que apenas dois dos sete esquemas estavam aptos para a deliberação conciliar, a saber, o esquema sobre a liturgia e outro sobre as aberturas ecumênicas em relação às Igrejas ortodoxas.”

Uma estrela conciliar havia nascido. Curiosamente, Ratzinger culpava o esquema do De Fontibus, argumentando que ele deveria “ser revisado a fim de evitar falar com autoridade sobre questões de disputa entre teólogos católicos em boa posição”. Que pena que ele não levantou essa preocupação durante a elaboração da Veritatis splendor!

Mais em geral, Ratzinger argumentava que os documentos não deveriam falar no estilo neoescolástico da Cúria Romana, mas deveriam, “em vez disso, falar a linguagem da Sagrada Escritura e dos santos Padres da Igreja”. E os textos devem ser escritos para que “atraiam cristãos separados e deem um novo testemunho de Jesus Cristo em um mundo no qual muitas pessoas acham a fé cristã uma realidade alheia”. Logo Ratzinger e Karl Rahner estariam colaborando em um esquema alternativo sobre a revelação.

Permitam-me dar um salto à frente. No fim do livro, Wicks resume o significado do Vaticano II, e especificamente da Dei Verbum, e aponta a Igreja para uma direção que poderia superar algumas das divisões pós-conciliares que surgiram, embora não todas. Ele escreve:

“Muitos intérpretes do Vaticano II apresentam os movimentos externos instados pelo Concílio para mover os católicos rumo à rapprochement [aproximação] com outros nos esforços ecumênicos, no diálogo inter-religioso e em intercâmbios respeitosos sobre aspectos salientes da cultura, economia, política do mundo contemporâneo e da luta pela paz mundial. Mas as passagens conclusivas da Dei Verbum apontam os católicos para outro movimento, isto é, para dentro e para baixo rumo ao ressourcement [refontalização] pessoal, enquanto se cultiva o autocuidado espiritual mediante o alimento diário do coração e da alma, junto com a direção e a orientação da lectio divina da Escritura. Esse é um movimento que se aprofunda na própria vida de fé, em que Deus se dirige aos fiéis cristãos com palavras de graça e de resgate pessoal, ao mesmo tempo em que transmite os mesmos dons que empoderam os discípulos rejuvenescidos para o serviço reconciliador de Deus no mundo.”

Essa é uma visão bonita e equilibrada. Eu acho que a nota que falta aqui e que é igualmente característica da visão do Vaticano II é o elemento comunitário, o sentido, enraizado na Escritura, de que pertencemos a um povo, o povo de Deus, a Igreja. Isso se vê não apenas na eclesiologia da Lumen gentium, por exemplo, mas também no fato de que, no decreto sobre o sacerdócio, Presbyterorum ordinis, a palavra “sacerdote” no singular nunca foi conscientemente usada. O documento fala da renovação do presbiterado. Isso não é mero sofisma. Pelo menos nos EUA, havia se desenvolvido uma espiritualidade muito não católica do tipo “eu e Jesus”, que eu considero que está em desacordo com a tradição da Igreja. Mas Wicks, sem dúvida, está correto ao dizer que a Dei Verbum chama todos os cristãos à renovação espiritual através da leitura orante da Bíblia.

Isso também era novidade, ou assim parecia na época. Nos anos anteriores ao Vaticano II e, de fato, no esboço do De Fontibus, o tom era de admoestação e de perigo para os católicos leigos que liam as Escrituras. Aqui, confrontamo-nos com a questão-chave e contestada da hermenêutica.

O Papa Bento XVI, em seu discurso de 2005 à Cúria, insistiu que era errado interpretar o Vaticano II por meio de uma hermenêutica da ruptura. Em vez disso, ele elogiou a hermenêutica da reforma, que inclui elementos tanto de continuidade quanto de descontinuidade. Alguns dos nossos amigos conservadores dizem erroneamente que o papa pediu uma hermenêutica da continuidade, mas ele não fez isso. Wicks conecta essa questão mais ampla da hermenêutica com o ponto específico sobre a abordagem diferente da revelação no esboço pré-conciliar e no texto final:

“Uma primeira impressão de tais mudanças de conteúdo e de tom pode levar alguém a ver o Vaticano II como uma ruptura ou mesmo como uma rejeição da tradição e do ensino da Igreja anterior. Mas tal conclusão não leva em conta como o De Fontibus foi preparada de forma isolada e até mesmo de oposição suspeita em relação a desdobramentos importantes na teologia católica nos anos anteriores ao Vaticano II. A Dei Verbum estava claramente em descontinuidade com o De Fontibus, preparada três anos antes, mas a constituição de 1965 mostra notáveis continuidades com movimentos centrais e fortes de renovação bíblica, teológica e pastoral entre os católicos antes do Vaticano II. Houve uma ruptura, mas na pequena escala de contraste entre a preparação oficial do Concílio e as diretrizes assumidas [pelos Padres conciliares] a partir do fim de 1962.”

Notarei de passagem outro exemplo que Wicks cita em que o Concílio criou uma espécie de “ruptura” com aquilo que acontecera imediatamente antes, mas o fez remontando ainda mais na tradição para encontrar os corretivos contra a hostilidade à modernidade do século XIX que distorceu tanto a teologia católica e que encontrou a sua expressão mais plena no “Sílabo de Erros” do Papa Pio IX.

O trabalho do cardeal Agostinho Bea, liderando o recém-criado Secretariado para a Unidade dos Cristãos, moldou todos os documentos conciliares, mas especialmente três textos-chave finais: o decreto sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio; o decreto sobre as religiões não cristãs, Nostra aetate; e o decreto sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae. O Pe. Ratzinger, na época, observou a descontinuidade aqui, chamando os três documentos de “um tipo de contra-Sílabo”.

Essa virada ecumênica recebe um tratamento amplo e cuidadoso no livro, a forma como a consideração dos assuntos ecumênicos por parte do Papa João XXIII moldou o Concílio e o papel central de Bea, reitor de longa data do Instituto Bíblico. De fato, essa virada ecumênica é um dos principais filtros através dos quais o Vaticano II deve ser entendido, de acordo com Wicks.

Há muito mais nesse livro que eu nem sequer abordei e fiz pouca justiça às questões que eu levei em consideração. Mas espero ter passado uma boa impressão do livro de Wicks para encorajar os leitores a comprá-lo e a lê-lo. Há não muito tempo, as pessoas pensavam que o Vaticano II havia sido recebido e que a sua única interpretação autorizada estava completa. Esse trabalho acadêmico mostra o grau em que todos nós ainda estamos recebendo o Concílio e aponta para o fato singular de que o único remédio para as divisões dentro da Igreja hoje deve ser encontrado na atenção contínua aos documentos e à história do Concílio Vaticano II.

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