Future-se valoriza o privado e não acena para o ethos acadêmico. Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior

Apresentação do programa Futuru-se | Foto: MArcelo Camargo - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 23 Julho 2019

As propostas do programa Future-se, recém lançado pelo Ministério da Educação – MEC com a justificativa de fortalecer a autonomia administrativa, financeira e de gestão das Universidades Federais de Ensino Superior por meio de parcerias com organizações sociais e captação de recursos, já são implementadas nas universidades públicas federais, diz o ex-reitor da Universidade de Brasília – UnB, José Geraldo de Sousa Junior, à IHU On-Line. Entretanto, salienta, “a diferença, no que aqui se chama novidade da proposta do MEC, é o caráter inteiramente vendido à lógica privatizante e mercadorizadora do projeto econômico-político que está por trás, delirante do ethos público universitário que marca o sentido social e político da universidade como condição estratégica para o desenvolvimento soberano do país. Daí as críticas”.

Segundo ele, o programa, que está sob consulta pública até dia 15-08-2019, “traz formulações que se baseiam em uma série de dispositivos do mercado financeiro, formando uma ‘carteira de ações’ que inclui fundos patrimoniais imobiliários, microcrédito para startups e um fundo soberano do conhecimento, tudo isso com abertura para proporcionar oportunidades de negócios com participação da iniciativa privada”. Trata-se, pontua, de “uma situação sem precedentes e sem paralelo com modelagens que valorizem o privado na estruturação de sistemas universitários e que jamais chegam ao despudor de acenar para o ethos acadêmico”.

Na avaliação dele, embora o Ministério da Educação afirme que o Future-se visa a reestruturar o financiamento do ensino superior público, a proposta “quer levar o governo a escapar da vinculação constitucional que obriga o Estado a financiar a manutenção e o funcionamento das universidades públicas, e, enquanto aparentemente amplia a participação de verbas privadas no orçamento universitário, retira a instituição de sua função estratégica pública e social e a entrega, com seu patrimônio, seu capital de conhecimento e seu acervo cultural à ganância de acumulação e de capitalização”, adverte. E acrescenta: “Por isso o jogo de palavras: Fature-se ao invés de Future-se”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o ex-reitor da UnB também critica a falta de consultas e discussões prévias com reitores das universidades federais e de estudos para embasar a proposta do MEC. “Tivesse havido um estudo prévio para construir a proposta, como foi feito com o Reuni, e um bom catálogo de parcerias, seus tipos, seu alcance na sustentabilidade das instituições e seus impactos nos programas e projetos acadêmicos teriam permitido um desenho razoável dessa experiência”, conclui.

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D'Plácido, 2016). 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - Future-se, recém lançado pelo MEC?

José Geraldo de Sousa - Enquanto nos últimos anos o Brasil, seguindo tendência mundial, conheceu uma grande expansão da educação superior com os efeitos dessa expansão afetando positivamente a qualidade do ensino e da pesquisa nas Universidades públicas e privadas, essa expansão, compreendida numa ação estratégica de um programa governamental de base democrático-popular, se inscreveu num projeto de sociedade e de Estado (do qual a Constituinte de 1987/1988 representou o seu mais avançado desenho), e que erigiu a educação e a educação superior à condição de núcleo estruturante desse projeto.

Esse programa começa como se define na Constituição que decorreu do processo constituinte, por conceber a educação e a educação superior como um bem público, voltado para fins sociais, por isso de livre acesso, universal, laico, gratuito e, quando disponível ao mercado, com seu exercício condicionado por esses valores, portanto, preservado em face das injunções do comércio. Antes de tudo, direito e não mercadoria.

Um bem, portanto, estratégico porque necessário ao desenvolvimento econômico, social e político do país, não só para permitir fortalecer a infraestrutura da sociedade, por meio da pesquisa, da ciência e da inovação tecnológica, também para orientar as direções éticas desse desenvolvimento, sobre criar as condições de distribuição justa e solidariamente compartilhada da riqueza socialmente produzida, conforme o horizonte de superação de desigualdades e de participação política definido na Constituição.

Assim é que se compreende a tremenda expansão havida no período, com a criação de universidades e de escolas federais no plano da educação superior, a implantação interiorizada de novos campi, a duplicação do número de vagas principalmente nos turnos vespertino e noturno das escolas, o apoio às políticas de cotas para ampliar os acessos nas mais diversas modalidades, sociais, econômicas, étnicas, raciais, e uma inversão orçamentária sem precedentes para financiar a expansão, a reestruturação, o acesso, a permanência e as políticas de fomento em todos os níveis, da creche à pós-graduação. Incluindo a contribuição da oferta privada, fiel a esses princípios aferidos em procedimentos de regulação, credenciamento e avaliação do sistema, por sua vez com o apoio de financiamento público para assegurar essa expansão, valendo-se de instrumentos de renúncia fiscal (Reuni, Crédito Educativo, Fies, Prouni, Ciência sem Fronteiras, todos discutidos minuciosamente pelo presidente Lula e pela presidenta Dilma, com os reitores e reitoras, em seguidos encontros com pautas consistentes e com esses conteúdos, até a sedimentação de entendimento comum convertido em políticas públicas).

Não se perca de vista que a retomada política da tensão entre o público e o privado, que agora se assiste quando se examinam os fundamentos das reformas em curso, notadamente com a PEC de Teto de Gastos voltada para assegurar financiamento de desempenho econômico-financeiro às custas de investimentos sociais – saúde, educação –, recoloca o impasse que em 1988 dividiu os engajamentos sobre serem tais bens, sociais, públicos, responsabilidade do Estado, ou privados, deixados à dinâmica apropriadora, acumuladora, movida por interesse do mercado.

Para o MEC, em linguagem de bolsa de investimentos, o Future-se, que já está sendo chamado Fature-se, traz formulações que se baseiam em uma série de dispositivos do mercado financeiro, formando uma “carteira de ações” que inclui fundos patrimoniais imobiliários, microcrédito para startups e um fundo soberano do conhecimento, tudo isso com abertura para proporcionar oportunidades de negócios com participação da iniciativa privada. Uma situação sem precedentes e sem paralelo com modelagens que valorizem o privado na estruturação de sistemas universitários e que jamais chegam ao despudor de acenar para o ethos acadêmico, como fez o secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação - MEC ao afirmar, na audiência de apresentação da proposta, que "o professor universitário poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil".

IHU On-Line - Segundo o governo, o Future-se “tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das instituições federais de ensino superior, por meio de parceria com organizações sociais e de fomento à captação de recursos próprios”. Por que e em que contexto surge essa proposta e qual seu significado?

José Geraldo de Sousa - As universidades públicas federais, sem perderem de vista seu pressuposto inafastável da autonomia, já vêm implementando todas essas sugestões, em sua plataforma de aprimoramento gestor, de busca de ampliação de investimentos e de parcerias com setores institucionais, sociais e de mercado em projetos de extensão, cooperação e parcerias. Os campi têm abrigado instalações para suporte desses projetos, com cessão onerosa e temporalidade limitada ainda que larga de uso, constituindo seus parques tecnológicos para incubação de projetos, compartilhando royalties de patentes e de comercialização de produtos, tanto no campo da inovação tecnológica aplicada para fins industriais, quanto no campo das tecnologias sociais.

A diferença, no que aqui se chama novidade da proposta do MEC, é o caráter inteiramente vendido à lógica privatizante e mercadorizadora do projeto econômico-político que está por trás, delirante do ethos público universitário que marca o sentido social e político da universidade como condição estratégica para o desenvolvimento soberano do país. Daí as críticas. Na contracorrente de opiniões competentes e experimentadas, o programa expõe suas entranhas nutridas no interesse do mercado, servindo conforme pensa o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que vê com “gravidade” a dinâmica de estender a responsabilidade da geração de receitas aos institutos e universidades: “As universidades públicas federais brasileiras precisam cumprir a missão de expansão da educação superior com qualidade. Todas as estratégias de financeirização propostas pelo programa, e que conversam com diversos modelos que ocorreram no mundo, não são capazes de gerar expansão do ensino superior. Elas até podem ser utilizadas em universidades pequenas, como a de Harvard [instituição americana privada], que não tem essa premissa colocada”.

IHU On-Line - Como o senhor avalia, particularmente, os três eixos do programa: governança, gestão e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização? Qual é a relevância de cada um desses eixos?

José Geraldo de Sousa - Iniciei a resposta a esta pergunta em questão anterior. O que eu reitero é a conformidade dessas proposições ao desenho entreguista desse patrimônio social que é a universidade pública brasileira. Desdobrando o começo da resposta, reafirmo que ela retoma, como tenho mencionado em várias circunstâncias, inclusive nesse espaço do IHU, o objetivo de realizar as teses ultraneoliberais de abocanhar a fatia substanciosa de capitalização até agora protegida contra a ganância do mercado. Em 2002, na cidade de Porto Alegre, ainda sob o impacto da resolução adotada naquele ano pela Organização Mundial do Comércio - OMC, de incluir a educação superior como um serviço comercial regulado no marco do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês), reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, autoridades governamentais e especialistas se reuniram na III Cumbre de Reitores dessas universidades para discutir os perigos postos pelo modelo neoliberal de mercado. Tratava-se de analisar as ameaças às universidades públicas e a globalização, num encontro radical que teve como eixo a educação superior frente a Davos.

A Cúpula vem a registro para, entre as muitas e agudas reflexões, chamar a atenção para o texto de Marco Antonio Rodrigues Dias, ex-professor da UnB e quadro da Unesco, e seu ensaio A OMC e a educação superior para o mercado.

Em seu estudo, para o qual carreou cifras inimagináveis levantadas entre outras agências pelo banco de negócios norte-americano Merril Lynch, o professor Marco Antonio Dias afirma que o mercado mundial de conhecimento, somente através da Internet, foi calculado, para o ano de 2000, em 9,4 bilhões de dólares, tendente a alcançar 53 bilhões no ano de 2003. E, de acordo com as mesmas fontes, o valor da comercialização de produtos vinculados ao ensino superior nos países da OCDE foi da ordem de 30 bilhões de dólares em 1999. Para o professor, com base nessas informações pode-se dizer que a importância dos serviços, o que vai muito além da educação, representa, na economia norte-americana, dois terços de seus resultados e 80% de seu mercado de emprego.

Esses dados, diz o professor, representam números inacreditáveis, e, à medida que novos dados são analisados, se constata que todos são extraordinários. E, para os que relutam em aceitar a prioridade do comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade crítica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais (DIAS, Marco Antonio Rodrigues. A OMC e a educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel; PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003).

A Constituição de 1988 tem sido a expressão de uma formidável mobilização da comunidade acadêmica e da sociedade civil, que se orientou pelo conceito do papel social que a universidade realiza e de que a educação é um bem público e mesmo quando se realiza de modo privado, por impulso de mercado, não pode delirar dos valores que o Constituinte levou para o seu texto. Esses princípios são corolários de duas institucionalidades fundamentais, que a Constituição de 1988 sufragou e que reclamam a sua defesa intransigente já por lealdade à soberania popular que se manifestou de modo constituinte, já por compromisso histórico conforme acima acentuado: a autonomia universitária e a liberdade de ensinar.

IHU On-Line - Como o Future-se será operacionalizado?

José Geraldo de Sousa - Na proposta, apenas anunciada e de modo unilateral, pois não houve, diferentemente de todos os grandes projetos anteriores — Reuni, Prouni, Enem, Fies, Ciência sem Fronteiras — nenhuma discussão prévia ou grupos de trabalho com reitores e reitoras para sua construção, nem como ocorreu nesses anos, a formulação de agendas entre a Presidência da República e o conjunto de reitores e reitoras — há a previsão de abertura para consulta pública geral, nos próximos 30 dias, pela internet, sem espaço entretanto para debate ou diálogo, limitada a consulta à sua leitura “na íntegra na página da consulta pública. Em seguida, é possível acessar, separadamente, os nove trechos do texto e, para cada um deixar, um comentário e dizer se acha que o tópico está totalmente claro, claro com ressalvas ou se não está claro. Ao final, é possível deixar ainda um comentário geral sobre a proposta”.

Pela especificidade dos itens anunciados, nota-se um conjunto complexo de medidas que guardam vinculação contraditória com a Constituição, leis orgânicas, estandares [padrões] de supervisão fiscalizadora (TCU, CGU, AGU, MPU). Cito um exemplo pontual: enquanto na proposta se abre a possibilidade de acúmulo de encargos decorrentes de obrigações contratadas para atuação de pessoal em dedicação exclusiva, professores desse regime são diuturnamente interpelados pelo TCU e pelo MPU com a tipificação de violação do regime, em situações que, a rigor, sequer deveriam ser questionadas. Há, portanto, uma agenda presumida de caráter legislativo e procedimental que antecipa muitas dificuldades para implantar a proposta.

IHU On-Line - Em que consiste a proposta de criação de Fundos de Investimento, segundo o programa?

José Geraldo de Sousa - Esse é um dos eixos destacados da proposta, o Eixo 1: Gestão, governança e empreendedorismo. Segundo matéria publicada no site do IHU, esse eixo é a principal ancoragem para o capital privado nas instituições. O programa defende que institutos e universidades se aliem a diversos modelos de fundos de investimento para ampliar suas receitas e criar ambientes favoráveis aos negócios. Isso combinado com Fundos de Investimentos Imobiliários que permitiriam às universidades celebrar contratos de gestão compartilhada acerca do seu próprio patrimônio imobiliário e da União e às reitorias estabelecer parcerias público-privadas, comodato ou cessão de prédios e lotes. Além disso, Fundos Patrimoniais (endowment) para captar doações de empresas ou de ex-alunos para financiar pesquisas ou investimentos de longo prazo.

Conforme já mencionei em outras oportunidades, dá-se agora a investida mais sutil porque disfarçada em ilusão de reforma aperfeiçoadora do sistema. O ministro da Educação com o programa ‘Future-se’ diz querer reestruturar o financiamento do ensino superior público. A proposta, todavia, quer levar o governo a escapar da vinculação constitucional que obriga o Estado a financiar a manutenção e o funcionamento das universidades públicas e, enquanto aparentemente amplia a participação de verbas privadas no orçamento universitário, retira a instituição de sua função estratégica pública e social e a entrega, com seu patrimônio, seu capital de conhecimento e seu acervo cultural à ganância de acumulação e de capitalização. Por isso o jogo de palavras: Fature-se ao invés de Future-se.

IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto do Future-se na pesquisa, no fazer científico das universidades federais?

José Geraldo de Sousa - Concordo com Boaventura de Sousa Santos, desde escritos anteriores e mais recentemente (Exposição na Conferência Regional de Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018), quando caracterizou o assédio neoliberal às universidades, para fazer uma séria advertência: “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”.

IHU On-Line - Quais são os tipos de parcerias público-privadas que já existem nas universidades federais hoje e qual tem sido o impacto dessas parcerias?

José Geraldo de Sousa - Mencionei algumas delas atrás. Tivesse havido um estudo prévio para construir a proposta, como foi feito com o Reuni, e um bom catálogo de parcerias, seus tipos, seu alcance na sustentabilidade das instituições e seus impactos nos programas e projetos acadêmicos teriam permitido um desenho razoável dessa experiência. Tudo depende de cada modelagem de cooperação, mas em geral, além dos pagamentos diretos — aluguéis, de imóveis e de equipamentos, de prestação de serviços (aqui não cabe o exemplo, por causa da natureza pública da prestação de serviços, mas tenha-se em mente as universidades que mantêm hospitais e que os integram cem por cento no sistema SUS, o quanto reverte para elas, para aplicação nos próprios hospitais, o valor dos contratos de prestação de serviços, ainda mais sabendo-se que em geral esses hospitais conservam sua dupla função de serviços e de ensino e pesquisa) —, as negociações têm permitido atividades cooperadas de ensino, extensão e pesquisa (caso da UnB e da Fiocruz instalada no campus universitário), com financiamento de bolsas, estágios, tudo sem perder a dimensão pública, social, republicana dessas parcerias. Assim, cada projeto revela o alcance de seu objetivo cooperado e o impacto que proporciona à relação acadêmica a que ele visa em última razão.

IHU On-Line - Nos governos passados foram feitas parcerias público-privadas para a gestão dos hospitais públicos universitários. Qual foi o impacto dessa parceria na gestão dos hospitais?

José Geraldo de Sousa - Eu próprio, como reitor, vivenciei todo o processo de constituição da empresa pública de gestão hospitalar. Somente no formato a criação da empresa remeteu ao formato de uma entidade modelada pelo sistema privado. Em seus estatutos, em seu funcionamento e em seus objetivos, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH manteve-se como uma iniciativa de interesse público de modo que seus impactos alcançaram mais a eficiência da gestão, aquisições em escala, planejamento global. Mas contribuiu para a regularização dos serviços; por exemplo, vincular como celetistas servidores precarizados tidos como admissão irregular pelos órgãos de controle.

IHU On-Line - É possível estabelecer algum tipo de aproximação ou semelhança entre a parceria público-privada realizada para fazer a gestão dos hospitais e a proposta do Future-se?

José Geraldo de Sousa - Somente quanto aos requisitos operacionais e de funcionamento. Diferentemente da visão de empreendedorismo e de transferência do público para o privado que o Future-se propõe, na gestão hospitalar a empresa criada EBSERH permaneceu pública no programa e na realização de seus objetivos.

IHU On-Line - Alguns críticos ao Future-se argumentam que o programa pode pôr em xeque a autonomia de pesquisa das universidades. O senhor concorda com esse tipo de crítica? Sim, não, por quê?

José Geraldo de Sousa - Concordo inteiramente e retomo aqui a crítica feita por Boaventura de Sousa Santos sintetizada acima para compartilhá-la por inteiro, a exemplo de como o fiz em exposição na Associação Nacional dos Reitores das Instituições Federais de Ensino Superior - Andifes. Ao final do ano passado (2018), a Andifes organizou um importante seminário para marcar 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 30 anos da Constituição de 1988. Um dos temas em exposição foi o que proferi, “A Universidade Pública, Autonomia e Liberdade de Ensinar: Valores que a Constituição de 1988 Consagrou”. Na conclusão de minha exposição, aludindo aos desafios e às tarefas que se colocam na conjuntura, em face dos impasses que põem a Constituição numa encruzilhada, implicam em tomar consciência e posição, ao que Boaventura de Sousa Santos, desde escritos anteriores e mais recentemente (Exposição na Conferência Regional de Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018), caracterizou como assédio neoliberal às universidades: “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”.

Para ele o presente, controlado pelo neoliberalismo, é uma época plena de perigos para a universidade pública: em face do ciclo global conservador e reacionário, isto é, “o domínio total do capital financeiro”. O projeto neoliberal, segundo ele, busca a construção de um “capitalismo universitário”: “Começou com a ideia de que a universidade deveria ser relevante para criar as competências que o mercado exige”, seguiu com as propostas de tributação e privatização. “A fase final é a ideia de que a universidade deve ser ela mesma um mercado, a universidade como empresa”. Se a universidade é uma mercadoria a mais, precisa ser medida: daí os rankings globais. Por isso, a ideologia neoliberal colide assim com a ideia de “universidade como um bem comum”, uma das conquistas obtidas a partir da Reforma de Córdoba (1918). “É um momento difícil por várias razões, e uma delas é que não há um ataque político, mas, sim, um ataque despolitizado. É um ataque que tem duas dimensões: cortes orçamentários e a luta contra a suposta ineficiência ou corrupção, uma luta muito seletiva, porque se sabe que as universidades públicas são em geral muito bem gerenciadas em comparação com outras instituições".

Conforme Boaventura, há três razões pelas quais a universidade é um alvo desejado pelo regime neoliberal:

1. Sua produção de conhecimento independente e crítico questiona “a ausência de alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos os dias. Se não há alternativas, não há política, porque a política é só alternativas. É por isso que muitas das medidas contra a universidade não parecem políticas, mas, sim, econômicas, os cortes financeiros, ou jurídicos, a luta contra a corrupção. O que está por trás é a ideia de que a universidade pode ser um fermento de alternativas e resistência”;

2. "O pensamento neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre passado, presente e futuro. E a universidade sempre foi, com todas as limitações, a possibilidade de criticar o presente em relação ao passado e com vistas a um futuro diferente”;

3. “A universidade ajudou a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes dos povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. Por sua vez, a universidade sempre foi internacionalmente solidária, com base na ideia de um bem comum. Mas o capitalismo universitário quer outro tipo de internacionalismo: a franquia, que as universidades possam comprar produtos acadêmicos em todo o mundo”.

Finaliza, repito, convocando o espírito de Córdoba e da Reforma de 1918, para pensar política e epistemologicamente modos de romper as limitações impostas pelo neoliberalismo e radicalizar a utopia democratizadora: a universidade, concluiu, deve se restituir, fazer um uso contra-hegemônico de sua autonomia e “transformar-se em uma pluriversidade”, teórica e politicamente.

IHU On-Line - Como a proposta do Future-se já vem sendo desenvolvida, em alguma medida, nas universidades privadas e quais as consequências disso?

José Geraldo de Sousa - Essa questão tem que ser aferida na avaliação de cada situação que possa ser carreada para um quadro de modelagem. Não existe esse estudo e a preparação da proposta, feita desde cima, desprezou qualquer discussão ou argumentação. É uma aposta cega. No plano opinativo, remeto à matéria do IHU acima citada e retomo o posicionamento de Daniel Cara, aliás bastante consistente. Ainda que possa haver experiências valiosas no âmbito das experiências em instituições privadas, esse eventual "sucesso" não tem correlação com o âmbito público do modelo constitucional universitário brasileiro. Por isso que ponto considerado “perverso” pelo educador (Cara) é “o de utilizar o patrimônio acumulado pelas universidades públicas como moeda de troca para estratégias de comercialização e financeirização. Isso é um crime de lesa-pátria, ataca a Ciência e precisamos ter clareza disso. As universidades hoje funcionam como um anteparo à política de Jair Bolsonaro, com a sua capacidade crítica. Justamente por isso a ideia de enfraquecê-las a partir de um modelo de gestão que incorpora elementos privatistas e provoca a demolição da autonomia universitária e da capacidade de democratizar o Ensino Superior com qualidade”, atesta.

Atacar a universidade pública brasileira é atacar a soberania do país e precisamos atuar de maneira muito inteligente e conjunta para barrar esse projeto no Congresso. Não é a educação que vai fazer com que a economia tenha dinamismo, tampouco a economia vai fazer com que a educação se realize. O que precisamos no Brasil é de um projeto de desenvolvimento que articule todas as áreas: educação, saúde, economia, assistência social, acesso à moradia. Um projeto que garanta um País com qualidade de vida, mas esse não é o objetivo do governo Bolsonaro”, finaliza.

IHU On-Line - O modelo de gestão sugerido pelo Future-se é uma tendência nas universidades públicas e privadas mundiais? Quais são as semelhanças e diferenças dessa proposta em relação ao modelo de gestão de universidades de outros países?

José Geraldo de Sousa - Não creio que seja uma tendência. Ao contrário, o que temos assistido é a uma volta estratégica ao modelo público na organização e no financiamento a partir dos países de maior PIB no Norte Global.

IHU On-Line - Como a proposta do Future-se está repercutindo entre os profissionais que atuam nas universidades federais? Que comentários e análises o senhor tem visto neste sentido?

José Geraldo de Sousa - As universidades, como as igrejas, as corporações, o país inteiro tem refletido essa polarização de visões de mundo que acontece hoje no Brasil e no mundo. Nas universidades, especificamente, grupos leais ao modelo neoliberal também se formaram e tive a notícia recente de formação de uma associação de professores de direita e que pontificam a crença neoliberal. Já há muito tempo, o capitalismo universitário de que fala Boaventura se instala no ambiente acadêmico para uma ação de erosão privatizante que mina a estrutura do interesse social que a universidade pública insiste em preservar. Esses setores estão certamente eufóricos em face da possibilidade de fortalecer seus grupos de pesquisa, sua carteira de serviços, de se tornarem, como disse o Secretário na apresentação da proposta, “o professor universitário (que) poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil”.

De um modo geral, porém, a recepção mais nítida da proposta é crítica, no sentido de que ela representa uma tragédia para a concepção constitucional de uma universidade pública, de qualidade, com compromisso social, laica. Para o princípio de que educação, incluindo a educação superior, é um bem social, não é uma mercadoria.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

José Geraldo de Sousa - Apenas o que venho sustentando, junto com meus colegas de pesquisa do Coletivo O Direito Achado na Rua, em face das exigências da conjuntura. Contra tudo isso opõe-se a história milenar da universidade ocidental que soube manter-se leal aos seus fundamentos civilizatórios e sempre soergueu-se aos assaltos da barbárie, de inquisidores, dos múltiplos fascismos, de todas as formas de autoritarismo e contra a ganância do mercado. A educação ainda é valor social, bem público, não é negócio. O que se espera é que os movimentos sociais e a institucionalidade estruturada no sistema legislativo e judicial compreendam o alcance e toda a dimensão e significado desses valores inscritos nos princípios constitucionais, para protegê-los e para defender a própria Constituição.

 

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