No discurso de crises, a busca por uma educação utilitarista e neoliberal. Entrevista especial com Roberto Dias da Silva

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Por: João Vitor Santos | 13 Julho 2017

É preciso reconhecer o estado de crises para que dele possa emergir o novo. Entretanto, é necessário estar atento. No contexto do Brasil de hoje, há um ideário coletivo de emergência de reformas de toda ordem. “A intensificação na gramática da crise política, de forma ambivalente, justifica a mobilização de reformas permanentes. Neste cenário, então, podemos encontrar os atuais movimentos de reforma engendrados pelo Estado brasileiro”, pontua o professor do PPG em Educação da Unisinos, Roberto Rafael Dias da Silva. Seu alerta se dá para que se olhe com mais atenção para proposta do governo federal de reforma do Ensino Médio. “A organização curricular proposta pela reforma do Ensino Médio brasileiro, centrada na diferenciação dos itinerários formativos, associados a uma ênfase por determinadas disciplinas, pode encaminhar a uma concepção utilitarista do conhecimento”, destaca.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele explica que “a adesão ao utilitarismo, em termos de políticas curriculares, conduz a novos imperativos pedagógicos para o Ensino Médio, ancorados nos pressupostos ‘do investir, do inovar e do empreender’”. Isso alimenta o espírito individualista, quando tudo se reduz a empreender e se preparar para o trabalho. “Através das racionalidades políticas orientadoras desta reforma, atribui-se ênfase à ampliação dos dispositivos de individualização dos percursos formativos, a uma maior aproximação entre escola e mundo produtivo, redimensionando os ‘sonhos profissionais’ em um âmbito individualizado e meritocrático”, completa. E conclui: “a reforma curricular aqui analisada, com maior ou menor intensidade, tende a intensificar a promoção de novas figuras subjetivas, marcadamente comprometidas com as práticas neoliberais”.


Roberto da Silva | Foto: Arquivo pessoal

Roberto Rafael Dias da Silva é doutor e mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - Uergs. É professor do Programa de Pós-Graduação - PPG em Educação da Unisinos. Entre suas publicações, destacamos o livro Sennett & a Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2015), e os artigos Currículo, conhecimento e transmissão cultural: contribuições para uma teorização pedagógica contemporânea (Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas. Impresso), v. 46, p. 158-182, 2016) e Políticas curriculares para o Ensino Médio no Brasil contemporâneo: o que ensina aos jovens a escola que protege? (Educação & Sociedade (Impresso), v. 37, p. 425-443, 2016).

*Entrevista publicada originalmente na Revista IHU On-Line, edição 505, de 22 de maio de 2017.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor vê a proposta de reforma do Ensino Médio que está posta em discussão pelo governo federal?

Roberto Rafael Dias da Silva – De forma a caracterizar, sucintamente, a reforma do Ensino Médio sancionada no dia 16 de fevereiro pelo presidente Michel Temer, através da Lei n. 13.415/2017, torna-se relevante produzir algumas breves retomadas. Tal reforma estabelece novos padrões organizativos para esta etapa da educação básica, tendo sido apresentada por Medida Provisória – MP no dia 22 de setembro de 2016. Por se tratar de uma MP, como é de nosso conhecimento, precisava tramitar na Câmara e no Senado Federal por um período de até 120 dias. Neste período, o documento originalmente apresentado recebeu 467 emendas.

Longe de se constituir em uma unanimidade, na medida em que sua proposição não foi dialogada com as comunidades escolares e com os setores representativos do campo educacional, a reforma propõe uma flexibilização curricular, alterando a atual organização dos currículos (no formato de treze disciplinas), criando itinerários formativos vinculados às áreas do conhecimento e incentivando a ampliação da carga horária. Na Audiência Pública realizada pela Comissão Mista que discutiu a MP 746/2016, que tratava da reformulação do Ensino Médio no Brasil – no mês de novembro do ano passado, a Secretária Executiva do Ministério da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, explicitou alguns aspectos orientadores dos modos pelos quais esta política está sendo mobilizada. De acordo com a secretária, a referida reforma flexibilizará o currículo escolar e ampliará as possibilidades de acesso e de inserção escolar dos jovens de baixa renda na escola pública de nosso país. Defendeu ainda que, em sua percepção, “a proposta dá uma chance para o jovem fazer escolha e não ser obrigado a cursar disciplinas que não representam nada para ele”.

A referida secretária executiva argumentou também que um Ensino Médio comum para todos não prepara nem para a vida, nem para o ensino superior (no máximo seria um curso preparatório para o Enem!). Remetendo o debate sobre a flexibilização curricular para a Lei de Diretrizes e Bases - LDB, criticou a atual forma curricular predominante nesta etapa da Educação Básica, caracterizando-a como “absurdamente enciclopédica”. Em sua argumentação, “o currículo não aprofunda o conhecimento em nenhuma área e, ao contrário de formar cidadãos, forma um analfabeto funcional ao final do Ensino Médio”. Afirmou ainda que, em razão disso, 80% dos jovens brasileiros apoiariam a urgência da mudança.

A definição do currículo do Ensino Médio, objetivamente, será efetivada a partir da Base Nacional Comum Curricular - BNCC, que atualmente está em fase de elaboração pelo Ministério. Todavia, a nova lei define alguns aspectos:

a) a organização dos currículos escolares em determinados “itinerários formativos”, baseados nas áreas do conhecimento, quais sejam: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional;

b) as escolas deverão ofertar pelo menos um itinerário formativo, que ocupará 40% da carga horária escolar. Os outros 60% serão ocupados com conteúdos obrigatórios a serem definidos pela BNCC (há uma sinalização para que sejam obrigatórias as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática);

c) a Língua Inglesa torna-se disciplina obrigatória do Ensino Médio.

Ampliação da carga horária e professores sem diploma

Outra questão derivada desta reforma é a ampliação progressiva da carga horária até atingir 1.400 horas. Na versão final do documento, os senadores estabeleceram uma meta parcial para, pelo menos, mil horas em um prazo de cinco anos. Para tanto, o documento criou também o “Programa de Fomento à Implementação de Escolas de Tempo Integral”, propondo a criação de 257,4 mil vagas de ensino médio integral (o que equivale a menos de 4% dos estudantes brasileiros, na medida em que temos mais de 8 milhões de estudantes frequentando esta etapa).

Por fim, outro aspecto que gera bastante controvérsia refere-se à permissão para que professores sem diplomas de licenciatura possam ofertar aulas com base em sua experiência profissional; tais habilidades profissionais são nomeadas como “notório saber”. Tais saberes serão certificados por determinadas agências reguladoras.

IHU On-Line – É preciso uma reforma no Ensino Médio? De que ordem?

Roberto Rafael Dias da Silva – Produzir reflexões acerca das políticas do Ensino Médio, nos últimos anos, tem estado na ordem do dia, seja por questões atinentes ao desempenho dos estudantes e das instituições de ensino, seja pela crise da institucionalidade da escola e de suas dificuldades em dialogar com as culturas juvenis, ou mesmo pela suas dificuldades em contribuir com o desenvolvimento econômico das regiões [1]. Todavia, importa destacar que, ao longo das últimas três décadas, a escolarização brasileira obteve significativos avanços em suas condições de acesso, permanência e sucesso escolar.

Mesmo que ainda estejamos distantes de determinados patamares de qualidade considerados como desejáveis, não podemos negar o quanto produzimos resultados relevantes na constituição da educação pública no país. No que tange ao Ensino Médio, especificamente, tais avanços ainda merecem maior destaque caso consideremos, apenas de forma ilustrativa, o crescimento no número de matrículas e dos indicadores de conclusão desta etapa da educação básica. No ano de 1970, de acordo com o Censo realizado pelo IBGE, atingíamos somente 5,28% da população juvenil brasileira que garantia seu acesso à escola. Os estudos do professor Valnir Chagas [2], neste período, assinalavam que a etapa equivalente ao Ensino Médio funcionava como a “estrada real”, capaz de preparar as classes médias para os ofícios públicos e para o comércio [3].

Faz-se importante salientar ainda que foi somente na segunda metade do século XX (ou seja, tardiamente) que a escolarização destinada a todos os jovens brasileiros ingressou na agenda de preocupações do Estado brasileiro [4]. Com a democratização do acesso em andamento, começaram a emergir, movidas por racionalidades políticas variadas, um conjunto de reformas educacionais destinadas ao Ensino Médio desde a década de 1990 [5]. Com foco na formação de capital humano, na proteção social, no combate à dívida educacional ou mesmo no atendimento das demandas da população juvenil, são variados os movimentos de reforma engendrados tanto a partir do Ministério da Educação, quanto dos variados Estados da federação.

O permanente estado de reformas no âmbito desta etapa da educação básica intensificou-se com as mudanças no papel do Estado e com a predominância dos modelos de governança neoliberal (e mais recentemente neoconservadora). De acordo com o sociólogo Christian Laval [6], nas condições referidas, o neoliberalismo transformou-se em “um projeto político e social que impõe uma lógica normativa global cujos pilares são as regras da concorrência e o modelo empresarial” [7]. Atualizando o pensamento sociológico crítico, de inspiração neomarxista, Laval expõe que, além da extensão da matriz empresarial para campos não econômicos, as políticas implementadas neste contexto tomam a própria noção de “crise” como operador estratégico para sua racionalidade. Em suas palavras, emerge “um novo modo de governabilidade que consiste em usar a crise como ponto crucial para acelerar o estabelecimento da lógica de mercado e as regras de concorrência no âmago do emprego e da sociedade”. A intensificação na gramática da crise política, de forma ambivalente, justifica a mobilização de reformas permanentes. Neste cenário, então, podemos encontrar os atuais movimentos de reforma engendrados pelo Estado brasileiro.

Constato que, no desenvolvimento das políticas curriculares para o Ensino Médio, há um deslocamento das políticas de ajustamento da população juvenil aos sistemas de ensino, passando por políticas de contenção social, para a emergência de políticas com foco na customização dos percursos formativos. Em minha percepção, será através desse deslocamento – para além das medidas autoritárias e da “democracia patológica” que perfaz a Medida Provisória - MP 746/2016, constituída (no 16 de fevereiro deste ano) na Lei n. 13.415/2017 – que podemos ler a emergência dos atuais modelos de escolarização juvenil no Brasil contemporâneo.

IHU On-Line – Em que medida podemos afirmar que as políticas de ensino de nosso tempo tendem a se converter em política de contenção social?

Roberto Rafael Dias da Silva – As questões atinentes ao Ensino Médio, com maior ou menor intensidade, constituem-se como o centro de minhas preocupações investigativas ao longo da última década [8]. Ao longo destas investigações constatei que há uma mudança de ênfase na composição das racionalidades políticas que orientam a implementação das reformas nesta etapa da escolarização. Se, inicialmente, tais políticas centravam-se no ajustamento das subjetividades juvenis às demandas provenientes do Estado, em um momento posterior, sob a bandeira da inclusão social, foram direcionadas para a contenção social. A escola pode ser lida como um espaço de proteção social, capaz de proteger os jovens dos “perigos” da vida contemporânea. A partir de novos investimentos subjetivos, de ordem biopolítica (valendo-me dos aportes foucaultianos), as atuais racionalidades políticas direcionam-se para uma variedade de finalidades; porém, sempre reforçando a lógica da individualização. Tenho nomeado, em meus estudos, estas novas estratégias de regulação da escolarização juvenil como “customização curricular”. Em tais condições, liberdade de escolha e responsabilização juvenil coadunam-se no engendramento de novas modalidades de governo da vida.

Buscando mapear algumas dessas racionalidades políticas, visibilizadas na reforma do Ensino Médio, julguei conveniente buscar alguns excertos da nota publicada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, após a votação da proposta no Senado. A leitura deste pequeno texto sinaliza alguns dos direcionamentos políticos da reforma:

a) Ampliação dos dispositivos de customização curricular

A reforma do ensino médio será instrumento fundamental para a melhoria do ensino no país. Ao propor a flexibilização da grade curricular, o novo modelo permitirá maior diálogo com os jovens, que poderão adaptar-se segundo inclinações e necessidades pessoais.

b) Articulação entre escola e mundo produtivo

Com isso, o ensino médio aproximará ainda mais a escola do setor produtivo à luz das novas demandas profissionais do mercado de trabalho. E, sobretudo, permitirá a cada aluna e aluno que siga o caminho de suas vocações e sonhos profissionais.

c) Centralidade do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – Pisa como matriz organizativa do currículo
Ao mesmo tempo, cuidou-se de que a reformulação não só tornasse obrigatório, como reforçasse o ensino nos três anos do ensino médio de disciplinas como língua portuguesa, matemática e língua inglesa, cujo domínio é imprescindível, sob qualquer critério, para a formação de nossos estudantes nos dias de hoje e de nossos cidadãos no futuro. O novo sistema deverá contribuir ainda para, em poucos anos, colocar o Brasil em melhores posições em exames internacionais de avaliação de desempenho escolar, como o PISA, em benefício, portanto, dos estudantes brasileiros e de nossa sociedade.

De forma a sistematizar esses excertos, faz-se possível apontar que, através das racionalidades políticas orientadoras desta reforma, atribui-se ênfase à ampliação dos dispositivos de individualização dos percursos formativos, a uma maior aproximação entre escola e mundo produtivo, redimensionando os “sonhos profissionais” em um âmbito individualizado e meritocrático. E, por fim, a centralidade dos pressupostos advindos do PISA enquanto matriz de inteligibilidade para pensar a escolarização juvenil, ocasionando um empobrecimento de suas possibilidades formativas e um recrudescimento das desigualdades escolares. Penso que a mobilização destas políticas curriculares poderia ser refletida a partir do advento das novas figuras subjetivas derivadas desse contexto de reforma, sob as condições do neoliberalismo. Alguns escritos políticos de Hardt [9] e Negri [10] têm me auxiliado nesta direção.

IHU On-Line – Até que ponto se pode afirmar que a lógica do empreendedorismo, a ânsia de empreender a si mesmo desde muito jovem, é um dos panos de fundo desse contexto de reforma de ensino?

Roberto Rafael Dias da Silva – A busca pela construção de currículos escolares atraentes e inovadores para o Ensino Médio, no Brasil, tem sido central nos discursos políticos e nas práticas pedagógicas engendradas no decorrer das últimas duas décadas. São variados os regimes argumentativos mobilizados nesse período, ora sintonizados com as demandas sociais e as culturas juvenis, ora articulados às necessidades do mercado e à promoção de novas oportunidades educacionais. Em comum a essas possibilidades, facilmente podemos constatar uma ênfase na organização disciplinar dos currículos escolares, em seus altos índices de evasão e repetência ou mesmo em uma suposta inoperância na formação de mão de obra qualificada.

Recentemente, esses argumentos têm adquirido novas roupagens, direcionando-se para o desenvolvimento de currículos flexíveis, ajustados aos interesses e às possibilidades de escolha dos estudantes [11]. A organização curricular proposta pela reforma do ensino médio brasileiro, centrada na diferenciação dos itinerários formativos, associados a uma ênfase por determinadas disciplinas (como Língua Portuguesa e Matemática, por exemplo), pode encaminhar a uma concepção utilitarista do conhecimento. A própria defesa realizada pela Secretária Executiva do Ministério, anteriormente referida, sugere que a escola para os jovens urbanos precisa ser pautada em sua capacidade de escolha, conferindo destaque para essa concepção de conhecimento. Uma crítica a essa questão poderia ser sistematizada na interrogação proposta por Yves Lenoir [12]: “Podemos conceber o ser humano como um mero elemento de um conjunto, um ator isolado tendo por motivos o interesse instrumental como únicas perspectivas humanas e sociais de relações utilitárias de tipo mercantil?”[13] (p. 161).

De acordo com o autor, as atuais políticas educacionais supõem novas formas de “gestão do capital humano”, regidas por princípios como “eficiência, eficácia, produtividade, competitividade, desempenho, flexibilidade e desregulamentação”. Nas condições de nosso tempo, ainda segundo Lenoir, “o princípio do humanismo foi substituído por aquele do profissionalismo, que os estadunidenses chamaram no fim do século XIX de ‘vocacionalismo’ (no sentido de vocação profissional)” (2016, p. 163). A adesão ao utilitarismo, em termos de políticas curriculares, conduz a novos imperativos pedagógicos para o Ensino Médio, ancorados nos pressupostos “do investir, do inovar e do empreender”[14] .

IHU On-Line – Que mundo do trabalho pode emergir desse contexto do jovem forjado no empreendedorismo desde o Ensino Médio?

Roberto Rafael Dias da Silva – Certamente preciso reconhecer que as demandas por flexibilizar currículos e personalizar percursos formativos não são nenhuma novidade na Contemporaneidade Pedagógica, sendo defendidas por variadas correntes educativas. Todavia, para fins dessa reflexão, gostaria de propor uma singela historicização e uma rápida problematização. No que se refere ao Ensino Médio, no decorrer da segunda metade do século XX, com a ampliação dos processos de democratização do acesso à escola e a prolongação do tempo de escolaridade, associadas às mudanças no mundo do trabalho, podemos constatar os diferentes processos de segmentação e seleção na oferta. Tal segmentação na oferta ocorreu de forma ambivalente, uma vez que emergiu ao tempo de um novo reconhecimento cultural das juventudes. As velhas regras da escolarização estavam sendo contestadas e, de acordo com o sociólogo Danilo Martucelli [15], “o collège e o ensino médio surgem como um espaço aberto à vida pessoal e à comunidade juvenil”[16] . Sem dúvida, uma das derivações desse cenário é a individualização dos percursos formativos.

Num universo escolar institucionalmente unificado, mas socialmente diversificado, onde cada indivíduo torna-se responsável por seu próprio destino escolar, a tendência à individualização dos percursos se acentua. Doravante, cada ator é submetido a um conjunto de provas que ele mesmo é obrigado a honrar, e que pode assumir diferentes contornos segundo o lugar dos alunos no sistema educativo, seus recursos culturais, suas socializações familiares, mas igualmente seu sexo, sua nacionalidade ou tipo de escola que frequenta (p. 292).

Todavia, e aqui encontra-se minha problematização, tal individualização adquire contornos específicos em contextos diferentes. No caso dos ambientes populares, por exemplo, esse processo aproxima-se da responsabilização dos indivíduos. Ainda conforme Martucelli, “o indivíduo não é mais imaginado herdeiro de uma posição social; ele é tornado responsável pelas próprias aquisições”. Nos marcos da construção de uma escola justa, a responsabilização pode converter os estudantes em estrategistas de seus percursos; porém, partindo de recursos desiguais. Este cenário pode reforçar o histórico dualismo das políticas educacionais brasileiras, intensificado com a emergência de novas precariedades [17].

IHU On-Line – Como compreender as subjetividades juvenis que são agenciadas no interior das atuais políticas curriculares para o Ensino Médio, a partir da sistematização das figuras subjetivas trabalhadas por Negri e Hardt (2014)[18] ?

Roberto Rafael Dias da Silva – Para produzir problematizações acerca desta questão, poderíamos seguir problematizando: De quais formas as subjetividades juvenis são posicionadas no interior das atuais políticas curriculares para o Ensino Médio? Quais tecnologias políticas são derivadas das políticas implementadas nas tramas do neoliberalismo? Que saberes e experiências formativas são privilegiados?

Antes de prosseguir nesta exposição, preciso esclarecer quais são as novas figuras subjetivas que decorrem da consolidação do neoliberalismo, sobretudo ao examinarmos as relações entre políticas curriculares e juventude contemporânea. Valendo-me da sistematização recentemente elaborada por Hardt e Negri, seriam quatro essas figuras subjetivas, a saber: “o endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado” (2014, p. 21). De acordo com os pensadores neomarxistas, “essas figuras subjetivas constituem o terreno sobre o qual – e contra o qual – os movimentos de resistência e rebelião devem agir” (p. 21); visto que, em sua leitura, para além de compreendê-las, precisaríamos recusar essas figuras.

IHU On-Line – De que forma a perspectiva do “endividado” age no jovem em formação? Que modelo de cidadão acaba forjando?

Roberto Rafael Dias da Silva – Com a predominância dos valores e práticas atinentes ao mundo financeiro na vida social, o endividamento tem se constituído como um modo de vida. Para além de operar apenas como uma possível coação externa, a dívida tende a controlar nossos modos de relação com o trabalho e com a vida, muitas vezes expondo-nos a contextos de autoculpa e de pressão (interna) por desempenho. Os autores argumentam que “a dívida exerce um poder moral cujas armas principais são a responsabilidade e a culpa que podem rapidamente se transformar em objeto de obsessão” (p. 22-23). A precarização do trabalho evidencia-nos outras nuances desta questão, na medida em que “a própria vida foi atrelada ao trabalho” (p. 24). Em suas palavras, “Nessas circunstâncias, ao contrário, a produtividade fica cada vez mais escondida conforme as divisões entre tempo de trabalho e tempo de vida se tornam gradativamente indistintas.

A fim de sobreviver, o endividado deve vender todo o seu tempo vida. Dessa maneira, aqueles sujeitos à dívida aparentam ser, até para si mesmos, consumidores e não produtores” (p. 25). Essa figura subjetiva consolida-se em um contexto no qual as decisões políticas são transformadas em fracassos e responsabilidades individuais.

IHU On-Line – Como, a partir da perspectiva da escola de hoje, compreender a subjetividade do jovem “mediatizado”?

Roberto Rafael Dias da Silva – A segunda figura subjetiva derivada da sistematização de Hardt e Negri é a do “mediatizado”. A preocupação dos autores, ao descrever esta figura, é que somos “sufocados pelo excesso de informação, comunicação e expressão” (p. 28). Mesmo que seja capaz de produzir novos afetos políticos, “a mediatização é o fator principal das divisões cada vez mais indistintas entre trabalho e vida” (p. 29), na medida em que “com o smartphone e as conexões wireless, você pode ir a qualquer lugar e continuar ocupado, o que significa que você continuará trabalhando aonde for” (p. 29).

Importa reiterar, porém, que não há passividade nesta relação entre as novas mídias e os indivíduos, uma vez que os sujeitos têm sua atenção absorvida nesta relação. Importante enaltecer, então, que a lógica mobilizada pelo capitalismo contemporâneo vincula-se à sedução, estimulando que os próprios indivíduos desejem melhorar suas performances.

IHU On-Line – No que a ideia do “representado”, presente em Negri e Hardt (2014), pode contribuir para compreender movimentos como os de ocupação de escolas públicas que ocorreram em todo Brasil no ano passado?

Roberto Rafael Dias da Silva – Antes de pensarmos acerca da representação, considero pertinente pensarmos acerca da terceira figura subjetiva proposta pelos autores. O “securitizado” é a terceira figura subjetiva explicitada pelos pensadores contemporâneos, levada ao limite nas condições atuais de exacerbação da segurança. As variadas tecnologias de segurança, da saúde e o bem-estar individual até as preocupações com a violência coletiva e o futuro do planeta, são exemplares nesta conformação subjetiva derivada dessa condição, fazendo com que sejamos objetos e sujeitos da vigilância permanente. O securitizado, em tempos de precariedade e flexibilidade no mundo econômico, estabelece uma aproximação amedrontada com o mundo social.

O medo é a motivação básica do securitizado para aceitar não só seu papel duplo – vigia e vigiado – no regime de vigilância, mas também o fato de que muitas outras pessoas estão ainda mais privadas de sua liberdade. O securitizado vive com medo em relação a uma combinação de punições e ameaças externas. O medo em relação aos poderes dominantes e sua polícia é um fato, mas mais importante e eficaz é o medo de outras e desconhecidas ameaças perigosas: um medo social generalizado (p. 39).

Em termos de participação política, a quarta figura subjetiva descrita por Hardt e Negri é o “representado”. Na medida em que os interesses políticos movem-se por racionalidades cada vez mais controversas, assim como pela própria incapacidade da forma política da representação (ao afastar poder e população), o representado não consegue acessar formas políticas eficazes. De acordo com os autores, “ao deixar de ser um participante ativo na vida política, o representado se descobre entre os pobres, lutando sozinho na selva dessa vida social” (p. 45). Tais figuras subjetivas, dentre outras possíveis, tendem a ser fabricadas no âmbito escolar através dos modos pelos quais organizamos o trabalho pedagógico, selecionamos os conhecimentos e dispomos as experiências formativas. Ao mesmo tempo, poderíamos pensar que os movimentos de ocupação, protagonizados pelos jovens nos últimos anos, vinculam-se a uma crise da representação. Todavia, precisamos considerar que os movimentos de ocupação são engendrados em um contexto de individualização das responsabilidades coletivas e de um declínio das finalidades públicas da escolarização.

IHU On-Line – Quem é o jovem de ensino médio no Brasil hoje e quais os desafios para a escola promover o verdadeiro diálogo com ele? E quais as particularidades desse jovem inserido no contexto de escola pública e de periferias?

Roberto Rafael Dias da Silva – Em um exercício de síntese, poderíamos considerar que as políticas de escolarização no Brasil, sobretudo aquelas destinadas aos jovens das periferias urbanas, geralmente são mobilizadas a partir de três compromissos, quais sejam: a contenção da pobreza através do acolhimento social, o atendimento às questões econômicas por meio da empregabilidade precária e a melhoria do desempenho e dos indicadores educacionais dos sistemas de ensino. Esse cenário adquire contornos perversos na medida em que tais racionalidades políticas são colocadas em ação para planejar o desenvolvimento curricular das escolas públicas de nosso país.

Outra nuance dessa questão diz respeito à própria crise da transmissão de uma cultura comum ou mesmo à impossibilidade de construção de um modelo ético comum – potencializada no interior de uma individualização dos percursos formativos. Aprendi recentemente com a filosofia política de Judith Butler [19] a importância de seguirmos pensando a universalidade (ainda que sob outros registros). De acordo com a filósofa, “o problema não é com a universalidade como tal, mas com uma operação da universalidade que deixa de responder à particularidade cultural e não reformula a si mesma em resposta às condições sociais e culturais que inclui em seu escopo de aplicação” (2015, p. 17).

Com isso, de modo geral, preciso considerar que atender as especificidades dos estudantes é uma operação curricular importante; todavia, não seria politicamente relevante esgotar as possibilidades de pensar o universal. Inspirado no pensamento político de Butler, como estratégia de reação política a um cenário em que a individualização dos percursos tornou-se um imperativo curricular, valeria a pena retomar o conceito de responsabilidade. Em sua filosofia, significa reconhecer que “nossa responsabilidade não é apenas pela pureza de nossas almas, mas pela forma do mundo habitado coletivamente” (p. 141).

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Roberto Rafael Dias da Silva – Nesta breve reflexão sobre a MP 746 procurei sistematizar algumas racionalidades políticas que parecem orientar sua implementação. Do ponto de vista curricular, mobilizei minha abordagem a partir da predominância de critérios utilitaristas que perfazem a seleção dos conhecimentos e das disciplinas escolares, do posicionamento do estudante enquanto estrategista de seu percurso formativo e, por fim, da retomada das possibilidades políticas de pensar uma pauta comum para a escolarização pública.

A reforma curricular aqui analisada, com maior ou menor intensidade, tende a intensificar a promoção de novas figuras subjetivas, marcadamente comprometidas com as práticas neoliberais. Objetivamente, entendo que três questões precisariam estar permanentemente em debate para pensarmos as políticas curriculares para o Ensino Médio: a) as finalidades e os propósitos públicos da escolarização; b) a ampliação do repertório cultural dos jovens contemporâneos; c) a retomada da escola enquanto uma possibilidade de experimento democrático. Essas questões tornam-se emblemáticas na medida em que a escola, em sua dimensão pública, continua sendo o melhor lugar para as lutas políticas em torno da igualdade e da inclusão social e que pode ser reinscrita na construção de novos comuns.

Notas

[1] KRAWCZYK, Nora. Reflexão sobre alguns desafios do ensino médio no Brasil hoje. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 144, p. 752-769, set./dez. 2011. (Nota do entrevistado)

[2] Valnir Cavalcante Chagas (1921-2006): é autor da Didática Especial de Línguas Modernas (1957), obra pioneira de fundo histórico no cenário de publicações sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas no Brasil. Nesse livro, o autor analisa e ambienta métodos de ensino ao longo da história do velho continente e do Brasil. Trata-se de obra pioneira e sem equivalente para o ensino de língua materna e para a compreensão da história do ensino de línguas no Brasil, hoje estudado pela Linguística Aplicada. Entre outras obras suas está O Ensino de 1º e 2º Graus: Antes, Agora e Depois?, livro de estrutura e funcionamento valendo como retrato de muitas épocas. Além do importante legado de suas publicações, Valnir Chagas contribuiu para a gênese e regulamentação do sistema brasileiro de educação, por meio de sua atuação no Conselho Federal de Educação de 1962 a 1976, com a idealização da Lei de Diretrizes e Bases n.º 5.692/1971 em favor da reforma do ensino de primeiro e segundo graus. Foi um dos principais autores também da reforma universitária de 1968 e um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB), tendo lecionado por várias décadas na Faculdade de Educação. (Nota da IHU On-Line)

[3] CHAGAS, Valnir. Educação brasileira: o ensino de 1o e 2o graus - antes, agora e depois?. São Paulo: Saraiva, 1978. (Nota do entrevistado)

[4] SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX. São Paulo: Cortez, 2008. (Nota do entrevistado)

[5] BALL, Stephen. Gobernanza neoliberal y democracia patológica. In: COLLET, Jordi; TORT, Antoni. (Orgs.). La gobernanza escolar democrática. Madrid: Morata, 2016, p. 23-40. TELLO, César; MAINARDES, Jefferson. A educação secundária na América Latina como um direito democrático e universal. Educação e Filosofia, v. 28, n. especial, p. 155-179, 2014. (Nota do entrevistado)

[6] Christian Laval: é pesquisador e professor de sociologia da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. É autor de L’Homme économique: Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 2007) e também de um volume de história da sociologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)

[7] LAVAL, Christian. Governar pela crise democrática. Revista Cult, n. 219, ano 19, dezembro, p. 22-28, 2016. (Nota do entrevistado)

[8] SILVA, Roberto Rafael Dias da. Políticas de constituição do conhecimento escolar para o Ensino Médio no Rio Grande do Sul: uma analítica de currículo. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30, n. 1, p. 127-158, 2014b. SILVA, Roberto Rafael Dias da. Políticas curriculares para o Ensino Médio no Rio Grande do Sul e a constituição de uma docência inovadora. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 19, n. 1, p. 68-76, 2015. (Nota do entrevistado)

[9] Michael Hardt (1960): teórico literário americano e filósofo político radicado na Universidade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros internacionalmente famosos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line)

[10] Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt – sobre esta obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O último livro da “trilogia” entre os dois autores, Commonwealth (USA: First Harvard University Press paperback, 2011), ainda não foi publicado em português. (Nota da IHU On-Line)

[11] SILVA, Roberto Rafael Dias da. Currículo e conhecimento escolar na sociedade das capacitações: o Ensino Médio em perspectiva. Revista E-curriculum, v. 14, n. 2, p. 676-697, 2016b. (Nota do entrevistado)

[12] Yves Lenoir: professor titular da chaire de recherche du Canada sur l'intervention éducative. Ex-Presidente da Associação Mundial de Ciências da Educação - ASME, Associação Mundial de Ciencias de la Educación - AMCE, Associação Mundial de Pesquisas Educacionais - Waer, organização não governamental com relações oficiais com a Unesco.(Nota da IHU On-Line)

[13] LENOIR, Yves. O utilitarismo de assalto às ciências da educação. Educar em Revista, n. 61, p. 159-167, 2016. (Nota do entrevistado)

[14] SILVA, Roberto Rafael Dias da. Investir, inovar e empreender: uma nova gramática curricular para o Ensino Médio brasileiro. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 2, p. 178-196, 2016a. (Nota do entrevistado)

[15] Danilo Martuccelli: professor de sociologia na Universidade Paris-Descartes, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Sorbonne, membro do laboratório CERLIS, é atualmente um membro sênior da UITA. Seus interesses de pesquisa incluem a teoria social, sociologia política e da sociologia do “indivíduo” e individuação. (Nota da IHU On-Line)

[16] MARTUCELLI, Danilo. Efeitos sociais e políticos da educação. In: VAN ZANTEN, Agnès (Coord). Dicionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 291-295. (Nota do entrevistado)

[17] BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. (Nota do entrevistado)

[18] HARDT; Michael; NEGRI, Antonio. Declaração: isto não é um manifesto. São Paulo: N-1 Edições, 2014. (Nota da IHU On-Line)

[19] Judith Butler (1956): filósofa pós-estruturalista estadunidense, uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo, teoria queer, filosofia política e ética. Ela é professora do departamento de retórica e literatura comparada da University of California em Berkeley. (Nota da IHU On-Line)

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No discurso de crises, a busca por uma educação utilitarista e neoliberal. Entrevista especial com Roberto Dias da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU