Neoliberalismo: A “grande ideia” que engoliu o mundo

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24 Agosto 2017

A palavra se tornou uma arma retórica, mas ela nomeia adequadamente a ideologia de nossa era – uma ideologia que venera o mercado e afasta as coisas que nos torna humanos, escreve Stephen Metcalf, jornalista, em artigo publicado originalmente no The Guardian e traduzido e reproduzido pelo sítio Voyager, 23-08-2017.

 

Friedrich Hayek dando aula na London School of Economics em 1948. Foto: Paul Popper. Fonte: Voyager.

Eis o artigo.

No verão passado, pesquisadores do FMI chegaram ao consenso de uma longa e amarga contenda e debate sobre o “neoliberalismo”: eles admitiram que ele existe. Três economistas sênior do FMI, uma organização não conhecida por seus descuidos, publicou um artigo questionando os benefícios do neoliberalismo. Ao fazê-lo, eles colocaram por terra que a palavra não era nada mais que uma gíria política ou um termo sem nenhum peso analítico. O estudo, gentilmente, acusou uma “agenda neoliberal” de estar desregulando economias ao redor do mundo, por forçar a abertura de mercados nacionais para negócios e capital e por obrigar que governos se encolham através de pacotes de austeridade ou privatizações. Os autores citaram evidências estatísticas da disseminação das políticas neoliberais desde os anos 1980 e sua correlação com o crescimento anêmico, ciclos de boom-and-bust [crescimento rápido, seguido de graves crises ou crash] e desigualdade.

Neoliberalismo é um termo antigo, aparecendo desde 1930, mas foi ressuscitado como forma de descrever nossa política atual – ou mais precisamente, a linha de pensamento permitida por nossa política. Em seguida à crise financeira de 2008, foi a forma de demonstrar responsabilidade pelo desastre, não a atribuindo a um partido político sozinho, mas a uma instituição que havia cedido sua autoridade ao Mercado. Para os Democratas nos EUA e os Trabalhistas no Reino Unido, esta concessão foi descrita como uma grotesca traição de princípios. Tony Blair e Bill Clinton, como disseram, haviam abandonado os compromissos tradicionais da esquerda, principalmente as causas trabalhistas, para favorecer uma elite financeira global e as políticas de interesse próprio que os enriquecia; e por fazê-lo, permitiram uma escalada nauseante da desigualdade.

Ao longo dos últimos anos, conforme o debate vem se tornado cada vez mais acirrado, o termo se tornou uma arma retórica, uma forma de qualquer um a esquerda do centro, incriminar aquele que esteja apenas um pouco a sua direita. (Não surpreendentemente, os centristas o consideram um insulto insignificante: sendo eles mesmos os mais insignificantemente insultados pelo termo.) Porem, “neoliberalismo” é mais do que uma gratificante alfinetada. Em alguns casos, é também, de certa forma, um par de óculos.

Olhe pelas lentes do neoliberalismo e você verá mais claramente como os pensadores políticos mais admirados por Thatcher e Reagan ajudaram a moldar o ideal de sociedade como um tipo de mercado universal (em detrimento, por exemplo, dos ideais de pólis, como uma esfera civil ou um tipo de organização familiar) e de seres humanos como calculadoras de lucros e prejuízos (e não seres de dignidade ou de direitos e deveres inalienáveis). Claro que o objetivo era enfraquecer o Estado de bem-estar social e qualquer compromisso com pleno emprego, e, como sempre, para cortar impostos e desregular. Todavia, o “neoliberalismo” representa mais que uma lista de desejos da direita. É uma forma de reorganizar a realidade social e de repensar nosso status como indivíduos.

Ainda olhando por estas lentes, você vê como, assim como o Estado de bem-estar social, o livre mercado também é uma invenção humana. Vemos, de forma aguda, como agora somos impelidos a nos pensarmos como detentores de nossos próprios talentos e iniciativas, como sem embaraço somos induzidos a competir e nos adaptar. Você vê o alcance de uma palavra, antes confinada apenas a quadros negros que descreviam de forma esquematizada mercados de commodities (“competição”, “informação”, “comportamento racional”), agora sendo aplicada a toda a sociedade, até invadir cada pedacinho de nossas vidas pessoais, e como os trejeitos e ações de um vendedor se tornaram parte intrínseca no modo que nos expressamos.

Em resumo, “neoliberalismo” não apenas um nome para ações pró-mercado, ou para compromissos com o capitalismo financeiro feitos por partidos Social Democratas decadentes. É o nome de uma premissa que, sorrateiramente, veio a regular todas nossas práticas e crenças: que a competição é a única forma legítima de organização das atividades humanas.

Tão pronto quanto o neoliberalismo foi declarado real, e tão logo transpareceu a hipocrisia universal do mercado, logo também os populistas e os autoritários chegaram ao poder. Nos EUA, Hillary Clinton, a vilã neoliberal, perdeu – e para um homem que sabia apenas o suficiente para fingir que odiava o livre mercado. Então os óculos são inúteis agora? Eles podem nos ajudar a entender o que está errado com as políticas dos EUA e Reino Unido? Caminhando contra as forças da integração global, as identidades nacionais estão sendo reafirmadas, e da maneira mais rude o possível. O que teria a militância paroquial do Brexit britânico e o “trumpismo” nos EUA a ver com o neoliberalismo? Qual a conexão possível entre o presidente - um palerma inconsequente - e o modelo frio e controlado de eficiência conhecido como livre mercado?

Não é apenas que o livre mercado produz um exclusivo e pequeno séquito de vencedores e um enorme exército de perdedores – e os perdedores, buscando por vingança, recorreram ao Brexit e Trump. Mas que houve, desde o início, uma inevitável relação entre a utopia do ideal de livre mercado e a distopia do presente em que nos encontramos hoje; entre o mercado como ilibado detentor dos valores e guardião da liberdade e nosso atual declínio na pós-verdade e intolerância.

Mover o debate já amanhecido sobre o neoliberalismo começa por, creio eu, ao levar a sério o tamanho da sua influência cumulativa em todos nós, independente de filiação política. E isso requer voltar as suas origens, que nada tem a ver com Bill ou Hillary Clinton. Já existiu um grupo de pessoas que se denominavam neoliberais, e o faziam com orgulho, e sua ambição era uma total revolução teórica. O mais proeminente entre eles, Friedrich Hayek, não acreditava que estava criando uma nova posição no espectro político, nem criando desculpas para os podres de rico, ou raspando pelas bordas da microeconomia.

Ele pensava que estava resolvendo o problema da modernidade: o problema do conhecimento objetivo. Para Hayek, o mercado não apenas facilitava a troca em produtos e serviços; ele revelava a verdade. Como sua ambição inicial colapsou justamente em seu oposto - a distorcida possibilidade de que, graças a nossa cega veneração ao livre mercado, a verdade foi afastada da esfera da vida pública como um todo?

Quando a ideia ocorreu a Hayek, em 1936, ele soube, com a convicção de uma “iluminação repentina”, que havia se deparado com algo novo. “Como poderia, a combinação de fragmentos de conhecimento existente em mentes diferentes”, escreveu, “ trazer à tona resultados que, se fossem colocados juntos deliberadamente, requereriam um conhecimento por parte da mente direcionadora, a qual pessoa alguma poderia possuir”?

Este não era um ponto técnico sobre taxas de juros ou quedas deflacionarias. Esta não era uma polêmica reacionária contra o coletivismo e o Estado de bem-estar social. Esta era uma forma de criar um novo mundo. Em sua crescente empolgação, Hayek entendeu que o mercado poderia ser considerado como um tipo de “mente”.

A “mão invisível” de Adam Smith, já havia nos dado um conceito moderno de mercado: como uma esfera autônoma de atividades humanas e, portanto, um objeto valido de conhecimento científico. Mas Smith foi, até o fim de seus dias, um moralista do século XVIII. Ele pensava que o mercado poderia ser apenas justificado sob uma ótica de virtude individual, e se mostrava ansioso ao pensamento de que uma sociedade governada por nada além do auto interesse não fosse, de fato, uma sociedade. O neoliberalismo é Adam Smith sem essa ansiedade.

Que Hayek é considerado o avô do neoliberalismo – uma linha de pensamento que reduz tudo ao âmbito econômico – é um tanto irônico, visto que Hayek foi um economista medíocre. Ele era apenas um esquecido jovem tecnocrata vienense quando foi recrutado pela Escola de Economia de Londres para competir, ou talvez até mesmo obscurecer, o crescente sucesso da estrela de John Maynard Keynes em Cambridge.

O plano falhou, e Hayek foi duramente derrotado por Keynes. A Teoria Geral de Emprego, Juros e Capital de Keynes, publicada em 1936, foi avaliada como obra prima. O artigo dominou as discussões públicas, especialmente entre jovens economistas em treinamento, para os quais o brilhante, elegante e socialmente conectado Keynes era o modelo ideal. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, muitos proeminentes defensores do livre mercado estavam familiarizados com os pensamentos de Keynes, assumindo que governos poderiam ter um papel administrativo numa economia moderna. O entusiasmo inicial por Hayek se dissipou. Sua noção peculiar de que não fazer nada poderia resolver uma depressão econômica, se mostrou falha na teoria e na prática. Anos depois, admitiu que gostaria que seu trabalho crítico a Keynes fosse simplesmente esquecido.

Hayek posava como uma figura curiosa; um professor alto, rígido, com um sotaque carregado num longo terno de tweed, insistia pelo tratamento formal de seu nome “Von Hayek”, mas foi cruelmente apelidado pelas costas de “Mr. Fluctooations” [algo como Sr. Fluctuação, dado forte sotaque alemão quando pronunciava esta palavra]. Em 1936, era um acadêmico sem portfolio e sem um destino claro de futuro. Mesmo assim, hoje nós vivemos no mundo de Hayek, bem como um dia vivemos no mundo de Keynes.

Lawrence Summers, o conselheiro de Clinton e antigo reitor da Universidade de Harvard, disse que o conceito do “sistema de preços como uma mente viva” de Hayek era “tão penetrante e original quanto os conceitos de microeconomia produzidos no século XX” e “a coisa mais importante a se aprender num curso de economia nos dias de hoje”. Isto subestima o conceito. Keynes não criou nem previu a Guerra Fria, mas seu pensamento seguiu coerente em todos os aspectos da Guerra Fria; assim como o pensamento de Hayek se teceu as poucos em cada aspecto do mundo pós 1989.

A visão de Hayek era global: uma forma de estruturar toda a realidade em um modelo de competição econômica. Ele começa presumindo que praticamente toda (senão toda) atividade humana é uma forma de cálculo econômico, e assim pode ser aplicada para dominar os conceitos de riqueza, valor, câmbio, custo – e especialmente – preço. Preços são formas de distribuir recursos escassos de forma eficiente, de acordo com sua necessidade e utilidade, governados pela oferta e demanda. Para o sistema de preços funcionar corretamente, os mercados precisam ser livres e competitivos. Desde quando Adam Smith imaginou a economia como uma esfera autônoma, existe a possibilidade de que o mercado possa ser não apenas uma parte da sociedade, mas a sociedade como um todo. Dentro de uma sociedade assim, homens e mulheres precisam apenas seguir seus interesses individuais e competir por esparsas remunerações. Através da competição, “se torna possível”, como o sociólogo Will Daves escreveu, “distinguir quem e o que tem valor”.

O que qualquer pessoa com algum conhecimento da História vê como necessárias trincheiras contra a tirania e a opressão – uma classe média próspera e uma esfera civil; instituições independentes; sufrágio universal; liberdade de pensamento, associação, religião e imprensa; um reconhecimento básico de que o indivíduo merece dignidade – não tem lugar no pensamento de Hayek. Ele embutiu no neoliberalismo a premissa de que o mercado provém toda a proteção necessária contra o verdadeiro perigo político: totalitarismo. Para prevenir isso, o Estado apenas precisa manter o mercado livre.

Esta última característica é o que faz do neoliberalismo “neo”. É uma mudança crítica da antiga crença de liberdade de mercado e Estado mínimo, conhecido como “liberalismo clássico”. No liberalismo clássico, quem participava do mercado pedia apenas ao Estado que “nos deixe sozinhos” – to laissez-nous faire. Neoliberalismo reconhece que o Estado precisa ser ativo na organização de uma economia de mercado. As condições para permitir um livre mercado precisam ser conquistadas politicamente, e o Estado precisa passar por uma nova engenharia que dê bases para um livre mercado em crescimento contínuo.

Isso não é tudo: todos os aspectos da democracia política, da escolha dos eleitores às decisões dos políticos, devem ser submetidos à pura análise econômica. Os legisladores são obrigados a deixar tudo caminhar bem sozinho – para não distorcer as ações naturais do mercado – e então, idealmente, o Estado proveria um conjunto de leis fixo, neutro e universal para as forças do mercado operarem espontaneamente. Uma direção política de um governo nunca pode ter preferência sobre o “mecanismo automático de ajustes” – isto é, o sistema de preços, que não é apenas eficiente como maximiza a liberdade, ou as oportunidades para homens e mulheres fazerem suas livres escolhas sobre suas vidas.

Enquanto Keynes viajava entre Washington e Londres, criando a ordem do pós-guerra, Hayek ficou fazendo birra em Cambrige. Ele foi enviado para lá durante as realocações ocasionadas pela II Guerra Mundial; e reclamava que estava rodeado por “estrangeiros” e que “não faltavam orientais de todos os tipos” e “europeus de praticamente todas as nacionalidades, mas com pouca inteligência de verdade”.

Preso na Inglaterra, sem influência ou respeito, Hayek tinha apenas sua ideia como consolo; uma ideia tão nobre que um dia iria deixar sem chão Keynes e todos os outros intelectuais. Deixado só com seus próprios recursos, o sistema de preços funciona como uma espécie de mente. E não apenas uma mente comum, mas uma mente onisciente: o mercado calcula o que os indivíduos sozinhos não podem alcançar. Tratando-o como intelectual companheiro de batalhas, o jornalista americano Walter Lippmann escreveu para Hayek dizendo: “Nenhuma mente humana nunca compreendeu o esquema completo de sociedade... na melhor hipótese, compreendeu sua versão do esquema, algo muito frágil, que apenas lembra à realidade em uma relação como a silhueta e um homem”.

É uma pretensão epistemológica muito grande: que o mercado é uma forma de conhecimento, uma que ultrapassa radicalmente a capacidade de qualquer mente humana. Este mercado é menos um produto humano, algo para ser manipulado como qualquer outro, e mais uma força para ser estudada e amansada. A Economia deixa de ser uma técnica – como Keynes acreditava ser – para alcançar resultados sociais desejados, tais como desenvolvimento e estabilidade monetária. O único propósito da sociedade é a manutenção do próprio mercado. Em sua onisciência, o mercado constitui a única forma legítima de conhecimento; perto de todas as outras formas de reflexão que são parciais, em ambos os sentidos da palavra: eles dão conta de apenas um fragmento do todo e defenderiam apenas um interesse específico. Individualmente, nossos valores são pessoais, ou meras opiniões; coletivamente, o mercado os converte em preços, ou seja, em fatos objetivos.

Depois de ser varrido da London School of Economics, Hayek nunca teve uma atividade permanente que não fosse paga por um patrocinador empresarial. Mesmo seus colegas conservadores na Universidade de Chicago – epicentro do liberalismo nos anos 50 – viam Hayek como um porta-voz reacionário, um “velho direitista” com “um velho patrocínio direitista”, como um deles se expressou. Por volta de 1972, um amigo poderia visitar Hayek, agora em Salzburg, apenas para descobrir um homem envelhecido repleto de auto-piedade, acreditando que o trabalho de sua vida tinha sido em vão. Ninguém ligava para o que ele havia escrito!

Existiam, entretanto, sinais de esperança: Hayek era o filósofo político favorito de Barry Goldwater [senador republicano entre 1953 e 1987, importante líder conservador dos EUA], e diziam ser o de Ronald Reagan também. Depois foi de Margaret Thatcher. Para quem quisesse ouvir, Thatcher elogiava Hayek, prometendo colocar juntos sua filosofia de livre mercado e um renascimento de valores vitorianos: família, comunidade e trabalho duro.

Hayek se encontrou com Thatcher em 1975, no exato momento que ela, sendo nomeada líder da oposição no Reino Unido, estava se preparando para sua grande ideia de sair da estante para ir para a História. Eles se reuniram por meia hora em Londres. Depois, a equipe de Thatcher ansiosamente perguntou para Hayek o que ele pensava. O que ele poderia dizer? Pela primeira vez, em 40 anos, o poder estava refletindo a própria imagem de Friedrich von Hayek, o homem que poderia exterminar Keynes e refazer o mundo.

Ele respondeu: “Ela é tão bonita”!

A ideia de Hayek não é bem uma ideia – até você superdimensioná-la. Orgânico, espontâneo, um processo elegante, como um milhão de dedos fazendo um jogo do copo, coordenado para criar resultados que de outra forma seriam considerados não-planejados. Aplicados em um mercado real – em que há venda de tripas de porco ou espigas de milho – essa descrição não é mais que banalidade. Ela pode ser expandida para descrever como vários mercados, bens de consumo, trabalho ou mesmo o próprio dinheiro, forma aquela parte da sociedade conhecida como “a economia”. Isso é menos banal, mas ainda inconsequente; um Keynesiano aceita essa descrição alegremente. Mas e se nós esticarmos isso um pouco mais adiante? E se concebermos toda a sociedade como um tipo de mercado?

O quanto mais a ideia de Hayek cresce, mais reacionária ela se transforma, e mais ela esconde, sob sua pretensão de ser cientificamente neutra – e mais ela permite economistas a se filiarem a uma tendência intelectual importante no ocidente desde o século XVII. A ascensão da ciência moderna gerou um problema: se o mundo obedece universalmente a leis naturais, o que significa ser um humano? O ser humano é apenas um objeto no mundo, como qualquer outro? Parece não ter como assimilar o subjetivo, a experiência interna do homem, na natureza, como a ciência concebe a própria natureza – como algo objetivo, cujas regras nós descobrimos por meio da observação.

Tudo sobre a cultura política do pós-guerra depõe a favor de John Maynard Keynes e o papel maior do Estado na administração da economia. Mas tudo sobre a cultura acadêmica do pós-guerra depõe a favor da Grande Ideia de Hayek. Antes da II Guerra, mesmo o mais direitista economista acreditava no mercado como um meio para um fim. Dos tempos de Adam Smith em meados do século XVIII e até os membros fundadores da Escola de Chicago nos anos imediatamente ao pós-guerra, era o comum acreditar que o grande objetivo da sociedade e da vida era buscado na esfera não-econômica.

Nesse ponto de vista; questões de importância são discutidas política e democraticamente, não economicamente – por meio de reflexão moral e deliberação pública. A expressão clássica desse pensamento é encontrada num ensaio de 1922 chamado “Ética e Interpretação Econômica” de Frank Knight, que chegou em Chicago duas décadas antes de Hayek. “A crítica racional e econômica de valores gera resultados repugnantes ao senso comum”, Knight escreveu. “O homem econômico é egoísta, é objeto cruel de condenação moral”.

Os economistas debateram durante duzentos anos sobre a questão de como colocar os valores numa sociedade que não fosse organizada para além do interesse próprio e cálculos. Knight, junto com seus colegas Henry Simons e Jacob Viner, eram totalmente contra Franklin Roosevelt e as intervenções no mercado do New Deal, e eles criaram a Universidade de Chicago como um lar rigorosamente dedicado ao livre mercado, como é até hoje. Entretanto, Simons, Viner e Knight começaram suas carreiras antes do estouro dos prestigiados físicos atômicos trazer enormes somas de dinheiro para o sistema universitário e criarem no pós-guerra uma tendência às “hard sciences”. Eles não veneravam equações ou modelos, eles se preocupavam com questões não científicas. Mais explicitamente, eles se preocupavam com questões sobre valores, quando valor era absolutamente distinto de preço.

Não é apenas que Simons, Viber e Knight eram menos dogmáticos que Hayek, ou que estavam mais propensos a perdoarem o Estado pelos impostos e gastos públicos. Não é o caso que Hayek seria intelectualmente superior. Mas eles entendiam, como princípio, que a sociedade não é o mesmo que o mercado, que o preço não é a mesma coisa que o valor. Isso fez com que eles fossem totalmente engolidos pela história.

Foi Hayek quem nos mostrou como ir da desesperança na condição de parte humana à majestosa objetividade da ciência. A grande ideia de Hayek age como o elo perdido entre nossa natureza subjetiva humana, e a própria natureza. E fazendo isso, ela coloca qualquer valor que não possa ser expressado como preço – como veredito do mercado – em uma condição de incerteza, como nada mais que uma opinião, preferência, folclore ou superstição.

Mais que ninguém, nem mesmo o próprio Hayek, foi o grande economista de Chicago, Milton Friedman, quem ajudou a converter governos e políticos ao poder da Grande Ideia. Mas primeiro ele rompeu com dois séculos de precedentes e declarou que a Economia é “em princípio, independente de qualquer posição ética particular ou julgamentos morais” e é “uma ciência ‘objetiva’, precisamente no mesmo sentido que outra qualquer ciência natural”. Valores de antes, mentais e normativos eram falhos; eles eram “diferenças sobre as quais os homens apenas podem, no máximo, brigar”. Existe o mercado e existe o relativismo, em outras palavras.

Mercados podem ser fac-símiles humanos de sistemas naturais, e como o próprio universo, eles não precisam ter autores ou valores. Mas a aplicação da Grande Ideia de Hayek para todos os aspectos de nossas vidas nega o que há de mais distinto em nós. Isto é, ela relega que o que há de mais humano sobre os seres humanos – nossas mentes e vontades – a algoritmos e mercados, nos deixando para repetir, como zumbis, as estreitas idealizações de modelos econômicos. Superdimensionando a ideia de Hayek, e elevando de forma radical o sistema de preços a um tipo de onisciência social, significa algo também radical, ao rebaixar a importância de nossa capacidade individual para racionalizar – nossa habilidade de prover e avaliar justificativas para nossas ações e crenças.

Como resultado, a esfera pública – o espaço no qual são apresentadas razões, e contestamos as razões dos outros – deixa de ser um espaço de deliberação e se transforma num mercado de cliques, curtidas e retweets. A internet é a preferência pessoal aprimorada por algoritmos: um espaço pseudo-público dentro de nossa cabeça. Ao invés de um espaço de debate no qual nós fazemos nosso caminho; como uma sociedade, por meio de consenso, agora existe um aparato de afirmação mútua banalmente referido como um “mercado de idéias”. O que se parece como algo público e lúcido, é apenas uma extensão de nossas próprias opiniões prévias, preconceitos e crenças, enquanto a autoridade de instituições e especialistas foi desalojada a favor de uma lógica de dados agregada: quando nós acessamos o mundo através de uma ferramenta de busca, seus resultados são dispostos, como o fundador do Google diz, “por repetição” [de acessos] – por um número infinito de usuários funcionado como um mercado, contínuo e em tempo real.

Deixando de lado as fantásticas praticidades da tecnologia digital, uma tradição mais antiga e mais humanista, a qual foi dominante por séculos, sempre distinguiu entre nossos gostos e preferências – os desejos que se expressam no mercado – e nossa capacidade de reflexão sobre essas preferências, que nos permite criar e expressar valores.

“Um gosto é quase definido como uma preferência sobre a qual você não discute”, o filósofo e economista Albert Hirschman certa vez escreveu. “Um gosto sobre o qual você discute, com outros ou consigo mesmo, deixa de ser um gosto ipso facto – ele se torna um valor.”

Hirschman desenhou uma linha entre a parte de uma pessoa que é uma consumidora, e a outra parte da pessoa que é uma fornecedora de razão. O mercado reflete o que Hirschman disse que as preferências são “reveladas pelos agentes quando eles compram mercadorias e serviços”. Mas, como ele coloca, homens e mulheres também “têm a habilidade de deixar de lado as suas vontades e preferências ‘reveladas’, para se perguntarem se eles realmente querem o que se é desejado e preferem aquilo que se é preferido”. Nós nos modelamos e às nossas identidades com base nessa capacidade de reflexão. O uso da capacidade da reflexão de um indivíduo é a razão; o uso coletivo dessas capacidades de reflexão é a razão pública; o uso dessa razão pública é criar leis e a sua política é democrática. Quando nós fornecemos razões para nossas ações e crenças, nós trazemos a nós mesmos a “sermos”: individualmente e coletivamente nós decidimos quem e o que nós somos.

De acordo com a lógica da Grande Ideia de Hayek, essas formas de expressão da subjetividade humana não possuem significado enquanto não forem ratificadas pelo mercado – como Friedman disse, elas não são nada exceto relativismo, tal como qualquer outra coisa. Quando a única verdade objetiva é determinada pelo mercado, todos os outros valores têm o status de mera opinião, todo o resto não passa de vento. Mas o “relativismo” de Friedman é algo que pode desqualificar qualquer reivindicação baseada na razão humana. Essa reivindicação seria um insulto sem sentido, pois todas as demandas humanas são “relativas” enquanto as ciências não são. Elas são relativas para a condição (individual) de ter uma mente, e a necessidade (pública) de ter razão e entender mesmo quando não podemos esperar prova científica. Quando nossos debates não podem mais ser resolvidos por deliberação em cima das razões, então os desejos caprichosos do poder determinarão o resultado.

Este é onde o triunfo do neoliberalismo se encontra com o pesado político no qual estamos vivendo atualmente. “Você tinha um único trabalho”, o velho jargão continua; e Hayek um grande projeto, como originalmente concebido nos anos 30 e 40, projetado para impedir uma queda no caos político e no fascismo. Mas a Grande Ideia foi sempre um desastre esperando para acontecer. Ela estava, desde o começo, gestando aquilo da qual ela dizia nos proteger. A sociedade concebida como um mercado gigante leva a uma vida pública entregue a intrigas bobas sobre meras opiniões; enquanto o público, finalmente, se depara, em frustração, para um líder forte, como o último recurso para resolver os problemas antes sem solução.

Em 1989, um repórter estadunidense bateu na porta de Hayek, então com 90 anos. Ele estava morando Freiburg, Alemanha Ocidental, no terceiro andar de um prédio em Uraschtraasse. Os dois homens se sentaram em uma sala iluminada pelo sol, com janelas dando para as montanhas, e Hayek, que estava se recuperando de uma pneumonia, colocou uma coberta sobre seu colo enquanto conversavam.

Este já não era aquele homem que certa vez assumira sua própria derrota para Keynes. Thatcher acabara de se corresponder com ele com um tom triunfal. Nada do que ela e Reagan haviam conquistado “seria possível sem os valores e crenças que nos colocaram no caminho direito e na direção direita”. Hayek estava agora empolgado e otimista com o futuro do capitalismo. Como o jornalista escreveu: “em particular, Hayek vê as gerações mais jovens com mais simpatia pelo mercado. Hoje, jovens desempregados na Argélia ou na Mianmar protestam não por um Estado de bem-estar social centralizado e planejado, mas pela oportunidade de comprar ou vender – jeans, carros, qualquer coisa – a qualquer preço que o mercado impor”.

Trinta anos se passaram, e é justo dizer que a vitória de Hayek não encontra rival. Nós vivemos no paraíso construído por sua Grande Ideia. Quanto mais perto o mundo pareça ser um mercado ideal governado apenas pela competição perfeita, mais perto ele está de ser governado por um comportamento humano regido por leis e pela ciência.

O que começa como uma nova forma de autoridade intelectual, enraizada numa visão de mundo apolítica, pode ser facilmente empurrado para uma política ultra-reacionária. O que não pode ser quantificado não deve ser real, diz o economista; e como você mede os benefícios da crença central do iluminismo – nominalmente, razão crítica, autonomia pessoal e auto-governo democrático? Quando nós abandonamos, por seu vergonhoso resíduo de subjetividade, a razão como forma verdadeira, e fizermos da ciência a única juíza de tanto da realidade e da verdade, nós criamos um vácuo que a pseudo-ciência ficou feliz em preencher.

A autoridade que o professor, o reformador, o legislador ou o jurista exercem não deriva do mercado, mas de valores humanistas como espírito público, consciência ou ânsia por justiça. Muito antes do governo Trump começar a desvalorizá-los, essas figuras foram drenadas de significado por uma explanação esquemática que não pode explica-los. Certamente existe uma ligação entre a sua crescente irrelevância e a eleição de Trump, uma criatura caprichosa, um homem sem princípios ou convicção para ser alguém coerente. Um homem sem uma mente, que representa uma total falta de razão, está liderando o mundo, ou, pelo menos, o arruinando. Como um corretor de imóveis de Manhattan sabichão, apesar de tudo, Trump, ele sabe o que ele sabe: que seus pecados ainda precisam ser punidos no mercado.

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