199 anos. Sete de setembro e um Brasil entregue — a quem?

"A Pátria", de Pedro Bruno, 1909.

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 07 Setembro 2021

 

Enquanto os homens
Exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais
(Caetano Veloso, “Podres Poderes”, 1984)

 

A comemoração do bicentenário da independência do Brasil está por começar. Entretanto, o sentimento comum de desamparo e desesperança entre brasileiros e brasileiras faz com que o ducentésimo aniversário pouco seja percebido, afinal o centésimo nonagésimo nono atrai os olhos, corações e mentes para o pavor. Vive-se neste país de 212 milhões de habitantes a mais mortal epidemia já registrada, a maior crise hídrica da história, catástrofes ambientais irreversíveis, a reinterpretação da história dos povos originários pela mão da lei, os maiores índices de desmatamento já registrados, a volta ao Mapa da Fome, o maior índice de desemprego, e se não bastasse o sentimento de luto do dia-a-dia, o flerte do Poder Executivo do país com o simbolismo bélico, autoritário e violento, com uma impudente ameaça de golpe a ser celebrada no dia pátrio.

 

 

 

“Ler a história permite-nos conhecer o chão concreto”, como afirma a historiadora Heloisa Starling, em entrevista concedida ao IHU. Para refletir sobre o peculiar e apreensivo 07 de setembro de 2021, convidamos os leitores e as leitoras para ler e escutar os materiais publicados recentemente pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


A primavera por vir: uma alegoria fracassada em 2021

 

Purificar o Subaé
Mandar os malditos embora
Dona d'água doce quem é?
Dourada rainha senhora
Amparo do Sergimirim
Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságuam em mim
Nascente primária
Os riscos que corre essa gente morena
O horror de um progresso vazio
Matando os mariscos e os peixes do rio
Enchendo o meu canto
De raiva e de pena
(Caetano Veloso e Maria Bethânia, “Purificar o Subaé”, 1982)

 

 

 

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, publicado em 09 de agosto, reuniu centenas de estudos científicos da última década confirmando os alarmes de décadas passadas: o clima no planeta Terra está mudando pela ação humana e em alguns pontos a situação é irreversível. No Brasil alguns efeitos já são perceptíveis, e a Amazônia é situação mais preocupante. “Considero a perda de floresta que estamos vendo na Amazônia brasileira irreversível para este século. Mesmo que iniciemos processos de replantio e recuperação, eles levarão muitas décadas para atingir o patamar que hoje existe. A Amazônia já tem a sua mortalidade de árvores aumentada, e com um aumento ainda maior na temperatura do planeta os efeitos podem ser desastrosos nas próximas décadas”, afirmou Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, em entrevista ao IHU.

Para além da absorção de carbono, a Amazônia é crucial para a regulação das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do país. Neste sentido, Buckeridge ainda constata que o novo regime climático “ao afetar os biomas brasileiros, particularmente a Amazônia, a Caatinga e o Cerrado, provocam-se efeitos sobre a estabilidade do clima em toda a região Sudeste, causando secas prolongadas que atingirão em cheio o agronegócio brasileiro”. O pesquisador Paulo Artaxo, que auxiliou no desenvolvimento do relatório do IPCC, na mesma entrevista ao IHU frisa esses pontos: “os impactos sociais e econômicos das mudanças climáticas serão enormes. Basta termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro está perdendo de recursos: são bilhões de dólares por causa da seca que está atingindo uma parte significativa do Brasil”.

As notícias de agosto para o panorama ambiental do Brasil foram de fato catastróficas. A instabilidade climática alternou períodos de frio intenso e calor fora de época, o que, segundo meteorologistas da MetSul, pode induzir plantas a entender que o inverno acabou e a primavera está chegando para florescer.

 

Crise hídrica, energética e econômica e o retrocesso do carvão

 

Outro forte impacto já sentido pelos brasileiros, o que também aumenta a crise na ciência e na economia, é a falta de chuvas e a crise hídrica, a maior dos últimos 91 anos. A crise é tão grande, que até mesmo o monitoramento desta, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, está ameaçado de sofrer um apagão, como relata esta reportagem do Observatório do Clima, reproduzida pelo IHU: "quando já estamos vivendo a maior crise hídrica em 91 anos, situação crítica que demanda previsões de clima confiáveis, o Inpe está sem verba para o pagamento de energia elétrica. Como consequência, a projeção é de que, com o orçamento atual, o Tupã [supercomputador do INPE usado para as pesquisas] tenha que ser desligado em agosto. Contudo, essa ferramenta é essencial para a elaboração de previsões de tempo e clima, tratamento e coleta de dados meteorológicos, emissão de alertas climáticos e pesquisa e desenvolvimento científico, e não pode parar".

 


Foto: Tony Winston | Agência Brasília

 

Atingindo diretamente o bolso dos brasileiros, a conta de luz se tornou muito mais cara, com o aumento da cobrança da bandeira vermelha patamar 2 em 49% no mês de agosto - na sequência de um aumento de 52%, feito em junho. Uma reportagem do Greenpeace, reproduzida pelo IHU, expõe a realidade das famílias na periferia de São Paulo, mas que representam grande parte do povo brasileiro: "Com a pandemia, todos perderam o emprego. O marido faz bicos para contribuir com os malabarismos necessários para colocar comida na mesa e ainda pagar todas as contas que chegam cada dia mais altas. 'Antes eu pagava R$50,00 (na conta de luz), mas agora foi pra cento e poucos reais', relata. À falta de renda se acumula a incerteza do alimento no prato, da água que acaba todos os dias na torneira e o problema das dívidas".

O aumento da conta de luz se dá também pelo acionamento das usinas termelétricas. No caso do estado do Rio Grande do Sul há fatos ainda mais emblemáticos disto: o projeto da Mina Guaíba e a instituição do Polo Carboquímico do Rio Grande do Sul.

 

 

Em entrevista concedida ao IHU, o jornalista Flávio Tavares aponta o tamanho do retrocesso que as políticas estaduais estão representando: "A [Mina Guaíba] é um projeto totalmente obsoleto e não somente por uma questão tecnológica. O problema é que há muitos anos já se descobriu o malefício do carvão. É como se fôssemos substituir a energia elétrica pelo lampião a querosene. É inexplicável o atraso ao qual estamos sendo submetidos no Rio Grande do Sul, um estado que tinha uma legislação avançadíssima citada até mesmo na Europa". 

O engenheiro ambiental Eduardo Raguse, também em entrevista ao IHU, foi enfático sobre o quanto esses projetos contribuem para a catástrofe climática que vivemos: "Investir nestes projetos significa que estamos em uma estrada em direção a um abismo, cercados por placas mostrando que ele está ali, avisando para frear e mudar urgentemente de direção, e, ao invés de seguir os avisos, pisamos no acelerador. Dentro do carro está a qualidade de vida de nossos filhos e netos".

Para além das falhas éticas, morais e políticas destes projetos, estudos do Instituto de Energia e Meio Ambiente - IEMA, constatam que as termelétricas, além de aumentar o custo da energia elétrica, vão demandar ainda mais água, justamente na maior crise hídrica dos últimos 91 anos. "De 70% a 80% da água captada pelas termelétricas não volta para a bacia hidrográfica em questão, pois evapora após o resfriamento do sistema. Por exemplo, uma usina termelétrica a gás natural pode demandar, aproximadamente, 1.000 litros de água por MWh. Uma usina desse porte funcionando o dia todo corresponde ao abastecimento público diário de uma cidade de aproximadamente 156 mil habitantes, consumindo 24 milhões de litros de água. No caso das usinas a carvão mineral, a demanda aproximada pode ser de 2.900 L/MWh, correspondendo ao abastecimento público de 450 mil habitantes", apresenta Isis Nóbile Diniz, do IEMA, nesta reportagem reproduzida pelo IHU.

Sendo a primavera um engano, o mês de setembro perde o simbolismo do reflorescimento. E nesta semana, mais uma data, o dia 05 de setembro, reconhecido como Dia da Amazônia no Brasil, se firma como recordação da tragédia. Não obstante, pode haver esperança, se estudos como o da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência forem levados a sério. A coleção “Povos Tradicionais e Biodiversidade: Contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças” demonstrou que em terras indígenas apenas 2% da mata é desmatada. Como no Brasil há um grande porém permeando as perspectivas de avanço, as terras indígenas vivem também nesta semana uma das maiores ameaças dos 199 anos desta “nação”.

 

 

Leia também sobre o relatório do IPCC e a crise hídrica

 

 

Um projeto contínuo, mais que bicentenário, de extermínio dos povos indígenas - e de impávida resistência

 

"Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito"

 

(Caetano Veloso, “Um índio”, 1977)

 

 

O mito da construção miscigenada do Brasil serviu por anos para a construção da identidade brasileira. A brasilidade formada pela confluência de culturas, costumes e traços europeus, africanos escravizados e indígenas buscou dar sentido a uma nação. A nação que foi formada voltada para o Atlântico conseguiu capitanear recursos e formar as grandes metrópoles no litoral do país. As regiões do centro-oeste e noroeste do país foram ganhando maior visibilidade para o desenvolvimento econômico, até chegarmos no século XXI como as principais regiões do conflito ambiental, político e econômico. Os povos indígenas que resistiram por séculos nessas terras, veem-se hoje tão ou mais ameaçados que os litorâneos estiveram nos séculos passados. Há pelo menos algumas décadas, o Brasil encampa como política de desenvolvimento a “sua colonização para o Oeste”, e os poucos dos entraves institucionais para isso, são resolvidos pela violência, ou pelo lobby.

Os simbolismos desta “semana da pátria” aparecem também na perseguição das elites agrárias aos povos nativos desta terra. No 1º de setembro, o Supremo Tribunal Federal julgaria a tese do Marco Temporal, um dos maiores afrontes às conquistas de direitos dos povos indígenas no Brasil. A tese do Marco Temporal desconfigura a Constituição Federal e impõe sobre os indígenas a obrigação de comprovar que ocupavam as terras desde antes de 1988. Sem esse reconhecimento, as terras indígenas ficam à mercê dos interesses comerciais, sobretudo, de ruralistas e garimpeiros. O presidente Jair Bolsonaro já reafirmou o seu apoio ao Marco Temporal. Ou seja, é um avanço considerável para que “nem um centímetro a mais de terra indígena seja demarcado”.

Contra mais esta violência na sua história, os povos indígenas organizaram a maior manifestação desde a Constituinte de 1988. No acampamento Luta pela Vida, em Brasília, 170 povos se reuniram para pressionar o STF e assegurar a manutenção dos direitos estabelecidos na Constituição de 1988. O acampamento foi montado em 22 de agosto, com a previsão inicial de ficar por uma semana na capital federal, mas os indígenas mantiveram-se organizados e em protesto conforme o STF adiou o julgamento. Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Apib, explicou o tom da importante manifestação: "Estamos realizando a maior mobilização de nossas vidas, em Brasília, porque é o nosso futuro e de toda humanidade que está em jogo. Falar de demarcação de terras indígenas, no Brasil, é falar da garantia do futuro do planeta com as soluções para a crise climática".

 


Foto: Scarlett Rocha/Apib

 

As organizações indígenas e a de apoio à causa defendem contra o Marco Temporal a Teoria do Indigenato. Esta teoria é uma tese antiga, desenvolvida por João Mendes Júnior, em 1902, e é o que embasou os direitos territoriais dos povos indígenas na Constituição de 1988. Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva: “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional da UFRJ, manifestou-se contra a Tese do Marco Temporal e apresentou as problemáticas concepções filosóficas sobre o tempo que a tese implica, além do aniquilamento do que fora assegurado na Constituição. "Considerem o absurdo de um direito originário que só vale até uma certa data. A tese do marco temporal congela uma situação multissecular de expoliação territorial, transformando-a em 'direito' (inclusive com insinuação solerte de 'privilégio'). Ela equivale a recusar aos povos indígenas seu futuro; a expulsá-los da história como agentes, relegando-os ao passado. A intenção mal oculta de tudo isso é fazer com que os povos originários desapareçam aos poucos como povos. Aos poucos ou rapidamente, porque há pressa: é preciso acabar com tudo antes que tudo acabe", afirmou Viveiros de Castro em conferência promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, no final de agosto.

O julgamento do STF refere-se a um pedido de reintegração de posse do governo de Santa Catariana contra o povo Xokleng, no caso, o Marco Temporal entra como um dos argumentos a favor do estado e que pode influenciar diretamente na interpretação dos marcos regulatórios das demarcações indígenas. O fato do julgamento estar na Suprema Corte torna a situação dos povos indígenas ainda mais sensível perante a outros projetos de lei que podem ganhar força, caso haja mudança na interpretação da Constituição. Leonardo Barros Soares, cientista político, especializado em política indigenista, afirmou em entrevista ao IHU que, caso a reintegração seja avalizada, “a tese do marco temporal ganhará um fôlego renovado para tentar se impor como a tese majoritária; a vedação da ampliação de terras indígenas já homologadas dará respaldo legal a muitas situações de injustiça histórica; os militares aumentarão a ingerência sobre terras indígenas em áreas de fronteira ou no caminho de projetos desenvolvimentistas; os ecossistemas e as sociedades indígenas sofrerão severos impactos da liberação da exploração econômica desenfreada em terras indígenas” .

 

Leia mais sobre o Marco Temporal

 

 

Nem fuzis, nem feijão. Os brasileiros têm fome

 

"Vamo comer
Vamo comer feijão
Vamo comer
Vamo comer farinha
Se tiver
Se não tiver então
Ô, ô, ô, ô"

(Caetano Veloso, "Vamo comer", 1987)

 

 

 

A volta do Brasil ao Mapa da Fome gera sentimentos ambíguos a todos os brasileiros. Para além da tristeza e indignação de boa parte da população, há a surpresa de se reviver uma realidade que parecia superada, mas que também há alguns anos já se percebia que estava voltando, isto é, a fome nos espanta, mas também não surpreende.

O economista André Luiz Passos descreve o tamanho do retrocesso do Brasil em questão de segurança alimentar, em artigo publicado por Brasil Debate e reproduzido pelo IHU: "O estudo do IELA-FUB aponta que, em dezembro de 2020, a insegurança alimentar atingiu 59,4% dos domicílios brasileiros. 31,7% estão em situação de insegurança alimentar leve, 12,7% moderada e aterradores 15% em situação de insegurança alimentar grave – a fome propriamente dita. Analisada a porcentagem de domicílios em situação de insegurança alimentar por região do país, vê-se que algum tipo de carência alimentar alcança 51,6% dos lares da região Sul; 53,5% das famílias da região Sudeste; 54,6% dos moradores em domicílios da região Centro-Oeste; 67,7% dos domicílios da região Norte e impressionantes 73,1% dos domiciliados na região Nordeste. A insegurança alimentar grave, faceta mais perversa desse enredo, atinge em cheio 29,2% dos lares nortistas e 22,1% dos nordestinos".


Região Norte é a segunda do país mais afetada com a insegurança alimentar ficando atrás, somente, do Nordeste onde o índice ultrapassa 70%. Infográfico: Food For Justice. Reprodução: Brasil de Fato.

 

A pandemia acentuou o problema que já se constatava desde o final dos governos de Dilma Rousseff e início de Michel Temer. A política de desmonte do Estado brasileiro, a desvalorização do salário mínimo, a falta de emprego e a falta de políticas consistentes de seguridade social somaram-se às quase 600 mil mortes causadas pelo coronavírus. Foram centenas de milhares de famílias desestruturadas, social, afetiva e economicamente, devido à morte de familiares. Sandro Sacchet, economista do IPEA, aponta, em entrevista ao IHU, que 20% das famílias brasileiras são dependentes de programas de transferência de renda e seguridade social, e que o desemprego no Brasil chegou em 2021 no patamar recorde de 14,7%.

No entanto, o fim do Auxílio Emergencial de 600 reais em dezembro de 2020, e maiores restrições para conseguir um Auxílio três vezes menor em 2021 resultou, segundo o Ministério da Cidadania, em mais de 22 milhões de brasileiros foram excluídos do auxílio emergencial em 2021, como apura esta reportagem do Brasil de Fato, reproduzida pelo IHU. Em abril deste ano, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE fez um levantamento do preço médio das cestas básicas nas capitais brasileiras. De acordo com a pesquisa, o novo Auxílio não banca nem 50% do preço médio das cestas básicas, que sofreram uma inflação de 20%.

No mês passado, a realidade da fome no Brasil foi assunto de debate na Universidade de Coimbra, em Portugal. Leomar Daroncho, procurador do Trabalho, que foi conferencista do evento, associou a fome ao modelo de produção de commodities : “O estado do Mato Grosso, que tem o maior rebanho bovino brasileiro, com 31,7 milhões de cabeças, ganhou o noticiário com as pessoas fazendo fila para receber ossos de boi. O que está por trás de tudo isso, segundo ele, é o modelo de produção agrícola no Brasil. De tão equivocado, o país passou a aumentar a importação de leite, arroz, óleo e outros produtos básicos. As áreas disponíveis para agricultura estão sendo destinadas às commodities, e não necessariamente aos alimentos. A cana a maior parte vai pra etanol, temos ainda soja, com a maioria sendo exportada para ração animal e o milho. O Brasil está passando uma tragédia ambiental neste momento de fome”, disse Daroncho.

 

 

O impacto desta realidade é visível nas ruas. Como apresenta esta reportagem do jornal El País, os brasileiros trocaram a carne por ossos e pés de galinha, e o arroz e feijão de cada dia chegam aos pobres em grãos quebrados, isto é, o resto da colheita, que outrora era destinado apenas para a ração animal.

 

 

Por outro lado, enquanto o povo brasileiro passa fome, "em junho, o agronegócio bateu mais um recorde ao faturar 12,11 bilhões de dólares com a venda de produtos agropecuários para o exterior. A cifra é 25% maior que os 9,69 bilhões de dólares registrados no mesmo mês do ano passado. A marca recorde também fora superada nos meses de abril e maio", relata esta reportagem do Deutsche Welle, reproduzida pelo IHU. Um símbolo da disparidade entre o agronegócio e as reais necessidades da população brasileira, foi expressada pelo próprio governo federal, em homenagem ao Dia do Agricultor.

 

 

A Secretaria de Comunicação do Governo apagou a foto, mas o presidente Jair Bolsonaro fez questão de reafirmar o sentido dela na última semana, ao seu cercadinho no Palácio do Planalto: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”.

Anunciar fuzil em vez de comida, ou de morte e não vida, é mais uma estratégia retórica do presidente, e um reforço à mobilização contra a democracia no Brasil. Os últimos ataques do presidente foram ao sistema eleitoral e aos ministros do STF. E o presidente anunciou um "ultimato" a estes, com data para o dia do 199º aniversário do país. 

 

Leia mais sobre a fome e a crise econômica no Brasil

 

 

A festa pode virar um funeral. Como serão as ruas no Sete de Setembro?

 

"Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua

O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo prá lua
Nada continua
E o cano da pistola
Que as crianças mordem
Reflete todas as cores
Da paisagem da cidade
Que é muito mais bonita
E muito mais intensa
Do que no cartão postal

Alguma coisa
Está fora da ordem..."

(Caetano Veloso, "Fora da Ordem", 1991) 

 

Jair Bolsonaro escolheu o 07 de setembro de 2021, para dar seu ultimato às instituições democráticas. Na verdade, as ameaças ao longo de seu mandato foram várias, o que também deixa todos céticos sobre ser realmente um ultimato. No entanto, com os avanços do judiciário e do legislativo em investigações variadas sobre a participação da família Bolsonaro em esquemas de corrupção e a má gestão da pandemia no país, Bolsonaro declarou: “Tenho três alternativas: estar preso, ser morto ou a vitória”.

 

 

Segundo constata uma recente pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma base de apoio fundamental para as teses radicais do presidente são os Policiais Militares, como reporta o Estado de São Paulo: “o apoio aumentou 29% e crescimento foi maior entre oficiais do que entre praças [...] 'Não estamos falando de manifestações cívicas, mas da defesa da prisão de ministros do Supremo, do fechamento do Congresso e de outras pautas ilegais', disse ao Estadão o sociólogo e diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima”.

Um PM de São Paulo, ex-comandante do Rota, publicou um vídeo na semana passada convocando seus colegas para se somar às manifestações de apoio a Bolsonaro, e contra o STF e o Congresso. No vídeo, Ricardo de Mello Araújo, afirmou: "nós temos que dia 7 de setembro ajudar o nosso presidente Bolsonaro. A PM de SP participou dos principais movimentos do nosso país (...). Não podemos nesse momento em que o país passa por essa crise, com o comunismo querendo entrar (…). (…) Eu vejo que nós da PM de SP, a força pública, nós devemos nos unir. E no dia sete de setembro, todos os veteranos de SP, devemos estar presente na Avenida Paulista".

Em editorial, o Estadão relatou o clima da apreensão que Bolsonaro está criando em torno da data: "Não é bom o clima que vai se formando em torno do Sete de Setembro. Autoridades de São Paulo e de Brasília estão preocupadas com a tensão crescente nas redes sociais entre apoiadores do presidente e grupos contrários a ele".

Por outro lado, como fazem desde 1995 no dia 07 de setembro, os movimentos sociais, pastorais e movimentos progressistas das Igreja cristãs no Brasil seguem convocando para um "Grito dos Excluídos". Para bispos e bispas da Igreja Anglicana no Brasil, a solução das crises que o país vive passa essencialmente pelo "processo democrático, em especial se pensarmos no respeito às garantias de vida e na dignidade humana e ambiental", como relata o jornalista Edelberto Behs, em reportagem para o IHU. Em Manaus, o arcebispo Leonardo Steiner, na convocatória para o 27º Grito dos Excluídos e das Excluídas, também expressou a necessidade de mobilização contra as ameaças do presidente: “'É muito importante nos movimentarmos em busca de um Brasil melhor, em busca de um Brasil justo, em busca de um Brasil onde todos e todas possam se sentir à vontade'. O arcebispo insistiu em 'termos uma sociedade mais equânime, mais equilibrada, mais fraterna, mais justa', denunciando a difícil situação que vive o país em relação ao emprego, aos povos indígenas, ao meio ambiente. O objetivo é ajudar a sociedade a perceber que 'nós, todos juntos, podemos oferecer uma outra situação ao Brasil', enfatizando que 'sem a participação da sociedade, as coisas não mudam'. O arcebispo destacou a necessidade de 'buscar um outro modo da política', diante das manifestações do presidente Bolsonaro, que 'tem incomodado a muitas pessoas'”, reportou ao IHU, o jornalista Luis Miguel Modino.

 


Cartaz do 27º Grito dos Excluídos. Reprodução: CNBB

 

O que se prenuncia é um 07 de setembro de intensa mobilização. Não serão apenas desfiles pátrios, com estética militarizada e nacionalista. Serão protestos plurais, com "algumas facetas do Brasil", mas irreconciliáveis, nada miscigenados, tampouco podem ser pacíficos a curto ou médio prazo. 

 

Recordar os 60 anos da Campanha da Legalidade

 

Em meio às ameaças de golpe, mais que uma efeméride, recordar os 60 anos da Campanha da Legalidade é uma urgência para defender o Estado Democrático de Direito, como afirmou o historiador Carlos Guazzelli, em entrevista ao IHU.

Na mesma entrevista, o jornalista Flávio Tavares, que acompanhou o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, na resistência ao golpe militar, convocou para um nova mobilização popular: "a mobilização popular em 61 impediu um golpe já concretizado. Isso tem que ser revivido agora, neste momento, em que sofremos pressões, mas o golpe não se concretizou ainda".

Para Pedro Ruas, jurista e vereador de Porto Alegre pelo PSOL, é necessária uma reflexão conjunta sobre o que seria uma resistência hoje, para se inspirar no movimento liderado por Brizola. Na visão dele: "entendo que seria o que propôs Brizola, ou seja, o povo se organizar e ir para as ruas exigir, sim, o cumprimento da Constituição Federal na sua íntegra. Não aceitar passivamente as barbaridades que têm ocorrido, como o próprio genocídio do nosso povo pela falta de vacinas, pela falta de cuidados. Combater os desmandos e as ofensas às instituições democráticas promovidas pelo presidente da República. Então o povo resistir, organizadamente. Isso nos ensinou Brizola".

Um fator importante da resistência de 1961 se deu pela formação do Grupo dos Onze, como destaca o historiador Diego Martins, em entrevista ao IHU: "em termos de legados, acho que o projeto dos Grupos de Onze deixa um ensinamento: é preciso se organizar. Sem organização, os mais pobres e desamparados deste país são facilmente derrotados, basta ver os eventos mais recentes, desencadeados a partir do golpe de 2016. É uma sucessão de derrotas, que deve ser explicada pela politização dos setores da direita, não pode ser compreendida sem referência também à desmobilização popular promovida pelo lulismo".

 

 

Em palestra proferida no IHU Ideias da quinta-feira, 02 de setembro, o historiador Jorge Ferreira, professor da UFF, também destacou a importância da articulação entre governo do estado do Rio Grande do Sul, população, brigada e militares. "A população de Porto Alegre estava completamente mobilizada pela Legalidade. Eram 100 mil pessoas nas ruas. Brizola recolheu armas e distribuiu a quem quisesse, a Brigada também fez, fuzil, revólver, metralhadora. Todos devolveram as armas depois. Havia pessoas mobilizadas no interior do RS, regimentos militares apoiando a Legalidade. O comandante José Machado Lopes conversou com Brizola, assume o comando da Base Militar, e o 3º Exército se soma à Legalidade. Os sargentos também tiveram papel primordial, eles desarmaram os aviões na Base Aérea de Canoas para evitar bombardeio ao Palácio Piratini. Ou seja, não existe uma vinculação direta entre militares e golpes. Mas há uma esquerda militar que foi expurgada do exército pela ditadura militar", explica Jorge Ferreira.

 

Leia também sobre a Campanha da Legalidade

 

Cadernos IHU em formação Nº. 01, Populismo e Trabalhismo. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, publicado em 2005.

 

 

Cadernos IHU em formação Nº. 40, Campanha da Legalidade. 50 anos de uma insurreição civil, publicado em 2011.

 

 

Caetano e um tanto de Brasil cantado

"Penso em ficar quieto um pouquinho
Lá no meio do som
Peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom
Passo devagarinho o caminho
Que vai de tom em tom
Posso ficar pensando no que é bom

Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor
Nu com a minha música, afora isso somente amor
Vislumbro certas coisas de onde estou"

(Caetano Veloso, "Nu com a minha música", 1981

 

 

Ao longo deste artigo, escolhemos músicas de Caetano Veloso, um dos principais intérpretes do Brasil, um "artista engajado, sem sujar as mãos com a política", como descreve o professor Pedro Bustamente Teixeira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista ao IHU.

Por meio das suas músicas, Caetano descrevia os conflitos presentes em uma sociedade marcada pelas desigualdades, pela ditadura e pelo conservadorismo, mas que tinha em outra ponta uma cultura popular a ser resgatada, a ser divulgada. Adalberto Müller, professor de Estudos Literários na UFF, afirma que até mesmo após a ditadura, Caetano não vê o Brasil com a história resolvida, nem mesmo entende o capitalismo como o fim da História: “O que a canção do Caetano propõe é uma 'contraordem', o yanomami na floresta, o samba, o afro, numa ideia síntese que vem a partir da música e a partir de movimentos minoritários, apontando para uma questão ambiental, ecológica, biopolítica, discutidas também por Foucault e Deleuze. Caetano está propondo novas formas de pensar esses dilemas, novos caminhos”.

Para discutir de maneira mais profunda a carreira de Caetano e suas diversas fases, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU está promovendo o curso “Transcaetanos - tempo, tempo, tempo, tempo”. As aulas propõem uma mirada retrospectiva na longa carreira de Caetano Veloso que culmina no fim de um caminho e em uma nova perspectiva para a canção brasileira no século XXI. Os encontros são ministrados pelo doutor em Letras: Estudos Literários, Pedro Bustamante Teixeira, e ocorrem toda quinta-feira, das 14h às 16h, no Youtube do IHU, e posteriormente são publicadas no IHU Cast, o podcast do IHU, disponível nas plataformas Anchor e Spotify.

 

 

Confira também a Revista IHU On-Line, Nº 549, intitulada Caetano Veloso. Arte, política e poética da diversidade. A revista apresenta sete entrevistas sobre a arte e o caráter multifacetado de Caetano