Fome no Brasil: agronegócio e desconstitucionalização de direitos

Fonte: Pixabay

Por: Jonas Jorge da Silva | 17 Agosto 2021

 

Para escancarar o escândalo da fome no Brasil, Fabiana Scoleso, da Universidade Federal de TocantisUFT, analisou as bases que estruturam o modelo de produção de alimentos no Brasil, a partir de sua subordinação aos interesses do capital transnacional, com o fortalecimento dos atores centrais do agronegócio e, em contrapartida, com o recrudescimento das condições de miserabilidade de uma grande parcela da população brasileira.

Scoleso foi a convidada do CEPAT para o quarto encontro da série de debates Crise sistêmica, complexidade e desafios planetários, para abordar o tema Produção mundial de alimentos: agronegócio e insegurança alimentar, ocorrido no último dia 14 de agosto.

A iniciativa conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Comunidades de Vida Cristã - CVX, Observatório Nacional Luciano Mendes de AlmeidaOLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.

 

Fabiana Scoleso na atividade "Produção mundial de alimentos: agronegócio e insegurança alimentar"

 

Como em um quebra-cabeça, a tarefa de Scoleso foi a de ir montando as peças que vão revelando as engrenagens de um sistema que determina o retorno do Brasil ao mapa da fome. Para ela, é preciso “identificar os componentes estruturantes do Estado neoliberal brasileiro”, tendo em conta a centralidade de categorias como “natureza, território e trabalho e o lugar que ocupam nas discussões sobre a democracia restritiva brasileira e seus dispositivos de marginalização e exclusão social”.

No entrelaçamento das crises: econômica, política, social e ambiental, nota-se as consequências de três décadas de neoliberalismo no Brasil, com o Estado atuando como agente do capital, pactuando arranjos jurídicos e políticos que favorecem a eliminação de qualquer direito que esteja na contramão do projeto de expansão do agronegócio.

Na raiz da problemática agrária brasileira está latente determinada organização social e técnica do trabalho que por um lado inclui uma pequena parcela de pessoas extremamente capacitadas e, por outro, exclui uma grande quantidade de pessoas impossibilitadas de viver no campo. Essa dinâmica se configura em uma agricultura intensiva baseada na expropriação e expulsão daqueles que não se encaixam no modelo imperante.

Se o capitalismo por natureza sempre é expansionista, para Scoleso, com o neoliberalismo, essa expansão é marcada pela flexibilização de direitos, em diversos âmbitos da vida em sociedade. É o que ela classifica como um processo de desconstitucionalização de direitos. Para atender às demandas mais lucrativas do mercado mundial de alimentos, os ajustes e a organização do Estado sempre se dão em favor dos interesses do agronegócio, mesmo que não beneficiem a população brasileira em seu conjunto.

Assim, o país vive um processo de reprimarização da economia. Não por acaso, assiste-se a uma dinâmica contínua de desconstrução da indústria brasileira, ao mesmo tempo em que o agronegócio cada vez se fortalece mais. O capital transnacional, muito interessado nas riquezas do país, promove contínuos investimentos em pesquisas, em tecnologias agregadas ao agronegócio e no desenvolvimento de uma logística que confere cada vez maior agilidade para as exportações, etc.

Citando a socióloga argentina Maristella Svampa, Scoleso chamou a atenção para o que se considera o consenso das commodities, com a concentração do interesse na produção de grãos e a chegada dessas corporações transnacionais e seu domínio nas cadeias do agronegócio. Se no Brasil, atualmente, há recordes de produção de grãos é porque mecanismos foram implementados com esse foco, buscando responder às grandes demandas externas, em detrimento da própria população brasileira, cada vez mais ameaçada pela insegurança alimentar.

Por exemplo, em relação à Agricultura 4.0, Scoleso destacou que “há uma série de empresas de aplicativos que também oferece serviços para o agronegócio. É preciso entender essa processualidade em que estão organizados para que, no caso brasileiro, se avance em um processo combinado e desigual”.

Nessa lógica do consenso das commodities, “a expansão avança sobre a natureza, os territórios e o mundo do trabalho”, avalia. Conforma-se um metabolismo que é antissocial, pois arrasa a natureza, entra em conflito com os territórios, como no caso dos povos indígenas, causa desemprego e insegurança alimentar.

Para Scoleso, é na ótica dessas opções políticas que é possível interpretar o fato de que, ao final de 2020, a fome tenha alcançado 10,3 milhões de pessoas no Brasil (7,7 milhões em áreas urbanas e 2,7 milhões em área rural) e que o desemprego tenha atingido 14,4% da população. Um claro exemplo desse quadro é a deterioração do importante Programa de Aquisição de AlimentosPAA, com cortes em investimentos de 95%, nos últimos oito anos. Um outro é o esfacelamento da legislação trabalhista. “Nem na informalidade as pessoas estão conseguindo tirar renda para sobreviver”, lamentou.

Citando a Pesquisa de Orçamentos FamiliaresPOF, do IBGE, que mede o índice de restrição dos brasileiros ao acesso à comida, Scoleso constatou que “metade das famílias de zonas rurais do Brasil tem convivido com a insegurança alimentar. No campo, a proporção de insegurança alimentar é classificada como grave”.

 

André Langer, do CEPAT e Fabiana Scoleso, da UFT, na atividade "Produção mundial de alimentos: agronegócio e insegurança alimentar"

 

De um modo geral, há uma drástica redução de recursos do Estado para programas importantes que poderiam favorecer um equilíbrio no preço dos alimentos e auxiliar no combate à fome. Por exemplo, o papel da Companhia Nacional de AbastecimentoCONAB em operacionalizar programas nessa direção se encontra fragilizado. Na avaliação de Scoleso, é por isso que nesse período de pandemia foram os movimentos sociais que assumiram o protagonismo em proteger a população da fome, com cestas básicas, diante da ausência de iniciativas mais incisivas do Estado.

Com dados do Relatório Luz da Sociedade Civil para a Agenda 2030, publicado no dia 17 de julho de 2021, Scoleso ressaltou que “2020 encerrou com 113 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, o que representa mais da metade da população do país. Dentre as 169 metas que constam nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, 80% delas estão em retrocesso, estagnação ou ameaçadas, entre elas, a erradicação da pobreza, fome zero e redução das desigualdades.

Em sua opinião, esse relatório demonstra o momento em que estamos e porque chegamos até aqui. É o mais atualizado documento que aponta para o retorno do Brasil ao Mapa da Fome, ao assinalar que:

- 60% da população brasileira passou os últimos 13 meses sem saber se teria o que comer no dia seguinte;

- 27 milhões de pessoas passaram a viver em situação de extrema pobreza, com menos de R$ 246 por mês;

- Inflação em alta de 4,52% (IPCA) – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo;

- Alta no preço dos alimentos de 14,08% em comparação a 2019;

Não por acaso, a introdução ao relatório foi intitulada dessa forma: O retrato do Brasil em 2021: um país em retrocesso acelerado.

Como já mencionado, na avaliação de Scoleso essa catástrofe anunciada se dá por um processo de desconstitucionalização de direitos, com o enfraquecimento do arcabouço legal promotor de sociedades inclusivas. É nessa direção que se assiste a uma desregulamentação das instâncias fiscalizadoras do governo brasileiro, com o sucateamento de importantes órgãos estatais, bem como a fomento de políticas de austeridade que impactam diretamente nos recursos para a saúde, educação, proteção social, igualdade racial e de gênero, meio ambiente, ciência, tecnologia, etc.

Scoleso também apresentou apontamentos de outra instituição de renome internacional, a ActionAide, que em 16 de outubro de 2020, no Dia Mundial da Alimentação, lançou uma nota com cinco fatores sobre o aprofundamento da fome no Brasil:

1. A extrema pobreza, uma vez que, de acordo com o Banco Mundial, 14,7 milhões de pessoas se encontram em extrema pobreza no Brasil, o que representa 7% de nossa população;

2. O desmonte das políticas públicas de segurança alimentar, que afetou o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA da Agricultura Familiar, o Programa Nacional de Alimento Escolar - PNAE, o Programa de Cisternas, o Programa de Restaurantes Populares e o Bolsa Família, que tem 1,5 milhão de famílias na fila de espera, embora já estejam habilitadas para receberem essa transferência de renda;

3. A demolição da estrutura institucional com a extinção, por exemplo, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em 2016, e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e NutricionalCONSEA, em 2019;

4. A destruição dos meios de subsistência, com a devastação ambiental, no que pode ser considerado um colapso ambiental;

5. A alta no preço dos alimentos básicos e a redução do auxílio emergencial. No final de julho de 2020, 41 milhões de pessoas estavam sem emprego no Brasil. Além disso, pesa muito o impacto do desmonte da CONAB e da Política de Garantia de Preços Mínimos.

No lado avesso de tudo isso, em contradição com os severos problemas atravessados pela maioria da população, o agronegócio vai muito bem. Segundo Scoleso, não faltam investimentos e estímulos de grande porte para esse setor, com planos e programas robustos, como, por exemplo, o Plano Safra 2021/2022, na ordem de R$ 251 bilhões para os produtores rurais.

Os agentes do agronegócio contam com um forte lobby da Bancada Ruralista, que mais do que a grande representação no Congresso Nacional, também investem em think tanks, com estratégias de expansão e de avanços de seus interesses sobre a natureza, para sempre ampliar sua margem de riqueza. Segundo Scoleso, das exportações em 2020, 48% foram do setor do agronegócio, com um aumento de 4%, ao passo que outros setores tiveram queda de 4%. Hoje, o Brasil é o maior produtor e exportador de soja em grão, café e suco de laranja, três importantes commodities.

 

Igor Sulaiman Said Felicio Borck, do CEPAT, Fabiana Scoleso, da UFT e André Langer, do CEPAT, na atividade "Produção mundial de alimentos: agronegócio e insegurança alimentar"

 

Todos esses aspectos demonstram a seletividade das políticas que geram novos modelos de produção, expropriação e dominação de classe. Para Scoleso, é preciso prestar atenção nessa lógica que fortalece o agronegócio, pois há um movimento para disciplinar até mesmo a agricultura familiar, retirando a sua capacidade de resistência.

Com isso, a agricultura familiar também corre o risco de se tornar apenas mais um elo da cadeia de valor do agronegócio. Na medida em que o capital estrangeiro, o Estado e aos agentes do agronegócio vão modificando a legislação e as regras, disciplinam o modo de produzir em favor dos mais fortes.

Além disso, com a Agroindústria 4.0, o uso de informações e dados obtidos pelas grandes corporações tecnológicas permitem uma permanente reestruturação produtiva. Com essa tecnologia em favor da classe capitalista transnacional e com os resultados visíveis da fome em um território tão rico e produtivo como o brasileiro, torna-se notório que o sistema não é capaz de produzir equilíbrio, apenas interesses irreconciliáveis, conforme analisado por Scoleso.

Trata-se de um antagonismo de interesses entre aqueles que querem perpetuar um modelo de concentração e maximização de lucros, tornando os alimentos mercadorias, e os que resistem e lutam para sobreviver e preservar seus modos de vida. Daí o assédio e ataque aos territórios, a pressão sobre as comunidades e povos indígenas e a supressão de direitos sociais.

Esse é um modelo que só produz desigualdade e miséria. Scoleso é muito clara na avaliação dessa realidade: “A miserabilidade é objetiva, não é um objeto da imaginação. A fome é algo objetivo, as pessoas precisam comer diariamente. Não ter saúde, não ter educação, é algo objetivo. Ou seja, esse processo de marginalização e de miserabilidade são processos dados por esse movimento, por essa estratégia, por essa expansão e por esse complexo coordenado e ordenado internacionalmente, que determina, portanto, esse tipo de subordinação e que coloca as nossas populações em risco absoluto”.

 

Eis a íntegra da exposição e do debate.

 

 

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