Covid, doença do capitalismo em chamas

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24 Julho 2021

 

"Contra esta abordagem superficial e deliberadamente simplista, uma explicação séria da crise deve envolver uma crítica científica das condições sociais que permitiram o surgimento do vírus e do desenvolvimento da pandemia tal como esta ocorreu. A emergência sanitária da covid-19 aprofundou a desaceleração econômica em que a economia mundial já entrava em 2020 e lhe deu uma forma definida. Ademais, as relações sociais fundamentalmente antagônicas que definem o capitalismo contribuíram decisivamente para a origem, o curso e as consequências da pandemia", escrevem Murray Smith, Jonah Butovsky, professores de sociologia da Brock University e Josh Watterton, estudante em PH.D de sociologia pela York University, em artigo publicado por Outras Palavras, 22-07-2021.

 

Eis o artigo.

 

Dos cortes na Saúde às periferias aglomeradas e ao apartheid global das vacinas — tudo na pandemia expõe morbidez atual do sistema. E este, em emergência, tentou salvar primeiro os especuladores. Um novo livro sugere: não dará certo…

A convulsão social de 2020-21 pode muito bem marcar uma virada importante na história mundial. A emergência global de saúde pública trazida pela covid-19 e a crise econômica associada produziram efeitos sociais e políticos extremamente disruptivos e de longo alcance. Mesmo antes do início da pandemia – note-se –, a economia mundial já estava à beira de uma recessão severa, titubeando após uma prolongada – e notavelmente morna – recuperação da Grande Recessão de 2008-09. Foi só isso o que era capaz de apresentar após várias décadas de crescimento lento, austeridade e problemas persistentes de lucratividade na esfera do capital industrial, em que se produz o valor e o mais-valor. A recessão, então, foi grandemente ampliada por bloqueios (totais ou parciais) impostos pelos Estados nacionais às indústrias, serviços governamentais e pequenas empresas. Como resultado desse processo, chegou-se a níveis de desemprego e de contração econômica que rivalizam com aqueles observados na Grande Depressão da década de 1930.

Como se deve encarar essa crise global “combinada” ocorrida entre 2020 e 2021? Com poucas exceções, as respostas da mídia corporativa, dos estratos gerenciais profissionais, das elites políticas e de muitos economistas são notavelmente uniformes. Consistente com a maioria das avaliações convencionais sobre os atuais problemas da humanidade, vê-se essa ocorrência como um fenômeno natural: eis que, súbita e “misteriosamente”, surgiu um vírus invulgarmente infeccioso e furtivo… Diante dessa emergência, fala-se muito das decisões conscientes e das ações de indivíduos (profissionais de saúde, políticos, líderes empresariais e jornalistas da grande mídia) em reação a ele. Assim, minimiza-se o papel decisivo desempenhado por poderosas forças sociais estruturais que instigam, exploram e determinam a forma e a magnitude da crise.

Contra esta abordagem superficial e deliberadamente simplista, uma explicação séria da crise deve envolver uma crítica científica das condições sociais que permitiram o surgimento do vírus e do desenvolvimento da pandemia tal como esta ocorreu. A emergência sanitária da covid-19 aprofundou a desaceleração econômica em que a economia mundial já entrava em 2020 e lhe deu uma forma definida. Ademais, as relações sociais fundamentalmente antagônicas que definem o capitalismo contribuíram decisivamente para a origem, o curso e as consequências da pandemia.

De acordo com as principais autoridades médicas e epidemiologistas, a mortalidade devida ao Covid-19 – medida como “excesso de óbitos” em relação às médias observadas nos últimos anos – foi estimulada pela presença em parte da população de certas “comorbidades” ou “condições subjacentes”, tais como doença pulmonar, imunidade prejudicada, doença cardiovascular, diabetes, hipertensão e câncer. E esta, com certeza, parece ser uma evidência perfeitamente razoável. Mas tais morbidades clinicamente diagnosticáveis não são de forma alguma as únicas “condições subjacentes” que precisam ser consideradas para que se entenda bem as raízes da pandemia, sua propagação desigual, assim como a contração na economia global que desencadeou. Atenção séria deve ser dada, acima de tudo, aos determinantes sociais da doença: às condições socioeconômicas, aos contextos em que acontecem os comportamentos individuais, às ameaças à saúde e ao bem-estar de populações inteiras.

É preciso de início considerar os determinantes da saúde da população há muito destacados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por uma legião de outros especialistas. Os seguintes podem ser mencionados como aqueles que mais contribuem para o surgimento de morbidades humanas em geral (definidas estas como doenças ou como deficiências que afastam as pessoas do “estado normal”). Foram eles que criaram as condições que impulsionaram a propagação do vírus SARS-CoV-2:

aumento da desigualdade de renda e riqueza;

investimento inadequado em saúde pública universal;

a escassez e o custo de alimentos nutritivos e a prevalência associada de fome e obesidade;

infraestrutura social decadente ou inadequada (incluindo hospitais, clínicas comunitárias, instalações de cuidados de longo prazo e unidades de terapia intensiva);

ambientes urbanos insalubres (incluindo habitações degradadas e infestadas de pragas, escassez de mercados de alimentos frescos e escassez de espaços verdes e áreas de recreação públicas);

locais de trabalho que impõem estresses físicos e mentais debilitantes aos trabalhadores (escolher, por exemplo, entre comparecer ao trabalho quando doente ou perder parte de uma renda essencial);

governança política orientada para maximizar os lucros corporativos, em vez de promover a saúde e o bem-estar dos trabalhadores (por exemplo, as fatídicas decisões dos governos dos EUA e do Reino Unido em fevereiro-março de 2020 para priorizar o movimento ascendente contínuo dos mercados de ações sobre a necessidade de agir com rapidez para conter a propagação do coronavírus por meio de extensos testes, rastreamento, quarentena e confinamento);

opressão racial sistêmica e tratamento discriminatório de migrantes; conflitos entre Estados-nações que impedem uma cooperação internacional genuína no combate dos problemas globais;

guerras – eventos dilaceradores que são imediatamente destrutivos para todos aqueles que portam morbidades sociais;

a relação ruinosa que existe entre o processo implacável de acumulação de capital e os ecossistemas naturais dos quais a humanidade depende;

E, finalmente, as prioridades voltadas para o lucro e muitas vezes grotescamente distorcidas das empresas que compõem a indústria farmacêutica e a medicina privada.

Deve ser óbvio que essas “morbidades sociais” subjacentes tornaram a tarefa de derrotar o flagelo da Covid-19 (e, inclusive, a eliminação efetiva do vírus) muito mais difícil do que precisava ser. O que talvez não seja tão óbvio é que, ao longo da era capitalista, as ricas elites governantes quase sempre se opuseram à alocação de recursos suficientes para a criação de “bens públicos” e serviços sociais necessários para melhorar a saúde da população.

Além disso, as pesquisas e os investimentos regularmente feitos por empresas farmacêuticas com fins lucrativos não conseguem afetar decisivamente alguns dos piores riscos para a saúde e para o bem-estar humanos. Escrevendo durante os primeiros dias da pandemia, o socialista norte-americano Mike Davis observou num artigo, A Big Pharma abdicou da pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos e antivirais, o seguinte:

“Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente esse campo de pesquisa. Remédios para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência dos homens são líderes de lucro, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e os vírus tropicais que são considerados como assassinos tradicionais. Uma vacina universal contra a gripe – ou seja, uma vacina que tem como alvo as partes imutáveis das proteínas de superfície do vírus – tem sido uma possibilidade há décadas, mas que nunca foi uma prioridade lucrativa”.

Na verdade, foi somente após a eclosão da pandemia SARS-CoV-2 que as empresas farmacêuticas começaram novamente uma corrida competitiva para desenvolver uma vacina para combater esse tipo de vírus. Notavelmente, a pesquisa empresarial sobre SARS-CoV-1, iniciada no passado por um breve período, após a contenção bem-sucedida de seu surto em 2003, foi interrompida por não ser considerada lucrativa.

À luz da emergência SARS de 2003, bem como surtos de outros vírus “novos” nas últimas décadas (como MERS e Ebola), cientistas e funcionários da saúde pública há muito alertavam que uma pandemia de proporções potencialmente catastróficas era quase inevitável e que, portanto, era urgentemente necessário desenvolver uma gama de novas capacidades de prevenção e tratamento. Ou seja, medicamentos antivirais e vacinas, abundantes estoques de equipamentos de proteção individual para linha de frente dos trabalhadores de saúde, leitos hospitalares e unidades de terapia intensiva bem equipadas. Sob pressão implacável do “setor privado” (leia-se: da classe capitalista), no entanto, a maioria dos governos ocidentais ignorou esses avisos e persistiu com políticas que pioraram a maior parte das morbidades citadas acima, mesmo quando a pandemia já se aproximava.

A própria existência de condições sociais favoráveis à ocorrência de morbidades deve ser focada e explicada. Infelizmente, isso está sendo feito de modo completamente inadequado por pesquisadores acadêmicos (bem como por agências como a OMS); eis que se omitiram e se omitem de criticar o sistema socioeconômico mais amplo que é responsável por tudo. Deve-se perguntar: por que há uma tendência pronunciada para a elevação da desigualdade social? Por que o lucro privado é sistematicamente priorizado em relação à satisfação das necessidades humanas? Por que é gasto tanto em orçamentos militares quando muito mais precisa ser gasto pelos governos em saúde e assistência médica sem fins lucrativos? Por que uma ruptura crescente, de fato uma desarmonia desastrosa, está se desenvolvendo entre a sociedade humana e o mundo natural? E por que, apesar dos muitos avanços notáveis que foram feitos pelas ciências naturais ao longo do século passado, houve uma falta de progresso tão clara na criação de uma ordem social mais harmoniosa, cooperativa, próspera e ecologicamente sustentável para toda a humanidade?

Essas perguntas raramente são apresentadas e, muito menos ainda, respondidas em discursos “convencionais”. Sem surpresa, isso ocorre porque as respostas adequadas envolvem uma crítica completa do capitalismo contemporâneo – um modo de produção e um sistema social cujas contradições, crises tendenciais e irracionalidade fundamental foram postas, excepcionalmente, em relevo pelos eventos do ano passado.

 

Lucro capitalista versus necessidades humanas

 

A perda potencial de dezenas de milhões de vidas humanas devido à praga da Covid-19 (assim como, de outras pandemias que possam vir no futuro) é um acontecimento desastroso; contudo, como se sabe, o número catastrófico de mortes nunca foi inevitável. A humanidade possui o conhecimento científico e os recursos para evitá-lo. E ainda assim o mesmo pode ser dito para muitas outras mortes facilmente evitáveis ​​resultantes das patologias do capitalismo. As Nações Unidas estimam que cerca de 40 milhões de pessoas morrem a cada ano como resultado de fome, conflitos violentos e cuidados de saúde inadequados. Conclui-se que nos últimos trinta anos – desde o muito celebrado “triunfo do capitalismo sobre o comunismo soviético” – mais de um bilhão vidas humanas foram devoradas pelas operações do sistema socioeconômico globalmente dominante – vidas brutalmente sacrificadas no altar do lucro capitalista.

Isso é já a barbárie! Por que, então, os governos, a mídia de massa e a profissão médica não pedem uma ação imediata para parar o curso do flagelo capitalista? Por que eles não acompanham de perto o número de mortos por todas essas causas, visando esclarecer o público diariamente? A razão, claro, é simples: a maioria deles está emprenhada na continuação – na verdade, na expansão – do capitalismo. A classe capitalista, os políticos do sistema, assim como os jornalistas-propagandistas, a elite acadêmica – assim como as principais estrelas da profissão médica – há muito mostram sua disposição de sacrificar dezenas de milhões à fome, doenças e guerra para que o capitalismo possa florescer em escala global.

Tudo isso levanta uma questão interessante e importante: por que as poderosas redes sociais, essas forças e esses atores, reagiram à pandemia de SARS-CoV-2 de um modo que parece causar danos à máquina de obter lucro nos países capitalistas desenvolvidos do Norte Global? Uma boa resposta não pode ser fornecida aqui, mas alguns de seus elementos podem ser resumidos brevemente.

Em primeiro lugar, a pandemia de coronavírus não se limitou às nações mais pobres do Sul Global – isto é, elas não afetaram apenas as pessoas com pele negra ou parda que morrem em grande número de malária e outras doenças tropicais. Pelo contrário, parecia claro desde o início que o maior impacto da pandemia, pelo menos inicialmente, seria em países comparativamente ricos que têm grande número de idosos e pessoas brancas em suas populações. A nacionalidade e a raça (se não a idade) de muitas de suas principais vítimas foram importantes para forçar os poderes constituídos a aceitar que tinham uma séria emergência de saúde em suas mãos e que tinham de se comprometer a combatê-la (pelo menos por um tempo) de forma extraordinária e por formas economicamente disruptivas.

Em segundo lugar, mesmo os políticos capitalistas mais reacionários como Trump e Johnson perceberam que enfrentariam uma oposição política muito forte se agissem agressivamente segundo o impulso darwinista-cum-malthusiano de “deixar o vírus seguir seu curso”. Mais significativamente, uma forte resistência teria emanado das profissões mais reverenciados nas sociedades ocidentais: os profissionais de saúde. Basta lembrar como os profissionais médicos ficaram chocados nos primeiros dias da pandemia sobre o número de médicos, enfermeiras e paramédicos que estavam adoecendo – e às vezes morrendo – devido à covid-19. Crescia no início da pandemia de forma avassaladora o número de pacientes nos hospitais mal equipados em Milão, Madri e Nova York. O imperativo de achatar a curva – por qualquer meio que fosse necessário – era acima de tudo um imperativo para salvar os hospitais, as UTIs e o pessoal das ambulâncias de se tornarem vítimas da pandemia.

Terceiro, grandes segmentos da força de trabalho foram capazes de realizar seu trabalho on-line sob o regime de distanciamento social, apesar dos bloqueios, que geralmente eram apenas parciais no mundo ocidental. Ao mesmo tempo, muitas empresas “essenciais” (acima de tudo, as de processamento de alimentos, de medicamentos etc.) ficaram fora dos bloqueios desde o início, assim como a maioria dos pontos de venda de alimentos e medicamentos. O dano econômico foi extenso, mas o dano à lucratividade permaneceu em grande parte confinado a empresas menores, bem como aos setores de aviação, de turismo e de hotelaria.

Quarto, enquanto a massa de lucros gerados por meio da atividade especificamente produtiva na economia global como um todo caiu significativamente durante todo o primeiro semestre de 2020, os aportes dos bancos centrais e dos governos aos mercados financeiros e às corporações permitiram que as camadas superiores da classe capitalista pudessem obter grandes ganhos em seus portfólios e em suas fortunas pessoais.

Em 18 de junho, o Institute for Policy Studies informou que, nos três meses anteriores, os cinco bilionários mais ricos dos EUA (Bezos, Gates, Zuckerberg, Buffett e Ellison) viram um aumento em sua riqueza combinada de mais de 101,7 bilhões de dólares, ou seja, de 26%. Este ganho representou 17,4% do crescimento total da riqueza dos 643 bilionários dos Estados Unidos, que naquela época controlavam US$ 3,5 trilhões por meio de suas fortunas. Em 20 de agosto de 2020, Collins e Ocampo relataram no Counterpunch que os doze bilionários mais ricos dos EUA acumularam uma riqueza combinada de mais de 1 trilhão de dólares.

A onda de falências de empresas menos lucrativas abriu oportunidades para os maiores operadores expandirem suas participações de mercado, adquirindo ativos valiosos a preços de pechincha, enquanto que a criação de um “exército de reserva” muito ampliado fez do mercado de força de trabalho mais abundante do que antes o fora. Tudo isso era um bom presságio para a restauração da lucratividade no longo prazo para as economias capitalistas ocidentais que enfrentavam perspectivas sombrias no início de 2020.

Juntas, essas considerações apontam para a conclusão de que as elites capitalistas foram capazes de transformar, rapidamente, a queda desencadeada pela pandemia em seu próprio favor. Além do mais, sacrificando certos setores econômicos e pequenas empresas a bloqueios ruinosos, enquanto lideravam um coro do “estamos todos no mesmo barco”, eles foram capazes de preservar uma aparência de legitimidade imerecida aos olhos de muitos, ao mesmo tempo que aumentavam maciçamente sua própria riqueza e poder.

À luz de tudo isso, uma outra questão vale a pena ponderar. Dado que uma grave crise financeira e a contração econômica já estava ocorrendo no final de 2019, teria sido possível, na ausência da emergência sanitária Covid-19, ter convencido o público sobre a necessidade de um enorme injeção de fundos de bancos centrais e de governos em bancos, empresas e mercado de ações? Achamos que a resposta é simplesmente não. Uma simples repetição dos resgates extremamente impopulares de 2008-09 teria se deparado com uma torrente de indignação popular.

Do ponto de vista de certos interesses extremamente poderosos da elite, a pandemia pode muito bem ser vista como um desenvolvimento estranhamente bem-vindo – e até mesmo uma “bênção disfarçada”. Em qualquer caso, o princípio orientador dos “poderes constituídos” capitalistas em sua resposta à crise sempre foi inequivocamente claro: os lucros (a força vital do capitalismo) devem ter prioridade sobre tudo o mais.

 

Exploração, crise de valorização e morbidez capitalista

 

Como Karl Marx observou, “toda criança sabe” que as comunidades humanas dependem do trabalho para atender às suas necessidades e que todos devem desenvolver práticas de distribuição do trabalho social visando atender uma enorme variedade de tarefas economicamente vitais. Além disso, à medida que as sociedades se dividem em distintas classes sociais, a distribuição cooperativa do trabalho social assume necessariamente uma forma antagônica. Eis que os produtores diretos e os apropriadores do excedente social têm interesses opostos.

No entanto, nem toda ordem social criada pelos seres humanos foi tão decisivamente voltada para a produção mercantil quanto o capitalismo. Nesse modo de produção produz-se para o mercado, ou seja, para a troca monetária e para a obtenção de lucro em dinheiro. O que distingue o capitalismo é que a produção de mercadorias (definidas como produtos do trabalho destinado à venda no mercado) se torna um fenômeno generalizado.

Isso não significa que todo produto, efeito ou resultado do trabalho humano seja comercializado; no entanto, significa que a grande maioria dele o é. As mercadorias se tornam, de longe, os produtos economicamente mais significativos da trabalho humano; mais crucialmente, a própria força de trabalho (a capacidade de trabalhar) torna-se uma mercadoria que é comprada na esfera de troca de mercado com o objetivo de extrair o excedente de valor dos trabalhadores assalariados produtivos.

É precisamente sob essas condições que o processo de vida econômica fica sob o domínio da “lei do valor”, algo específico do capitalismo – uma lei que requer a medição do valor de todos os bens e serviços comercializados em termos de “trabalho social abstrato”, cuja “forma de aparência” mais importante é o dinheiro.

Nas condições de produção e troca de mercadorias capitalistas, os produtores diretos são separados da propriedade e do controle dos principais meios de produção, que são, agora, propriedade privada dos capitalistas. O monopólio de classe das fábricas, minas e até mesmo da terra – na verdade, de todos os principais ativos econômicos da sociedade – capacita os capitalistas a explorar sistematicamente a classe trabalhadora, ou seja, a extrair o trabalho excedente que gera valor excedente, que é a “substância social” do lucro e da renda capitalista.

Assim, os fenômenos da cooperação e da divisão de trabalho, encontráveis em todas as sociedades humanas, decorrem de uma lei natural que exige, conforme Marx, “a distribuição do trabalho social em proporções definidas”. Mas agora isso assume uma forma especialmente antagônica e anti-igualitária na sociedade voltada para a competição e para a exploração sistemática de um classe de produtores diretos por uma classe de grandes proprietários. Nesse contexto, deve ser óbvio que o slogan “estamos todos no mesmo barco” constitui um fato particularmente absurdo e uma falsidade ultrajante. Pois a realidade é que diferentes classes sociais (e até mesmo frações de classe) irão necessariamente experimentar eventos como a pandemia do coronavírus de maneiras muito diferentes.

Para ter uma avaliação completa da crise de 2020-21, no entanto, devemos também analisar o que é distintivo sobre o capitalismo do século XXI: as manifestações específicas de uma crise sistêmica que começou a tomar forma em resposta aos graves problemas de lucratividade da década de 1970 e como isso se desenvolveu e se intensificou nos últimos quarenta anos. Essas questões dizem respeito principalmente à crise de produção de mais-valor (ou “crise de valorização”) discutida longamente em Twilight Capitalism (“Capitalismo em crepúsculo”) – uma crise fundamentalmente enraizada no deslocamento de trabalho assalariado vivo (a única fonte de excedente valor) pela tecnologia economizadora de trabalho e assim, em consequência, a produção insuficiente de mais-valor em relação aos custos globais de produção e da reprodução capitalista.

Os acontecimentos preliminares à catástrofe de 2020-21 foram marcados pelos resultados de uma dupla e peculiar estratégia da classe capitalista para sustentar a lucratividade em declínio: por um lado, extrair o máximo de mais-valor possível do trabalho assalariado, do trabalho vivo e produtivo, por meio de um conjunto de mecanismos e de medidas neoliberais, incluindo a pilhagem temerária das “dádivas da natureza”; e por outro lado, para manipular os mercados de ações para sustentar valores patrimoniais tanto altos como irrealistas (ou seja, por meio de “lucros fictícios”) enquanto compele governos e bancos centrais complacentes a minimizar regulamentos sobre a atividade empresarial, reduzir os impostos corporativos e imprimir dinheiro conforme necessário para manter “estabilidade financeira”.

O resultado foi a distribuição de enormes volumes de dinheiro fácil para os escalões superiores da classe capitalista, mas também crescimento lento do PIB, fraca formação de capital no setor produtivo da economia e o acúmulo de empresas, consumidores, governos e estudantes fortemente endividados – em outras palavras, foram criadas enormes reivindicações de valor que ainda não haviam sido previamente criados. O capitalismo, mesmo em seus próprios termos, não pode mais funcionar adequadamente. As crises econômicas periódicas parecem agora mais profundas e mais ameaçadoras do que nunca. Este sistema decrépito voltado para o lucro também está revelando um incapacidade constitutiva de assegurar à humanidade um mundo sem guerras e sem devastação ecológica.

Para aqueles que se recusam a olhar para a realidade social através dos prismas distorcidos das ideologias e dos interesses capitalistas, acolhendo a complacência da classe média alta, a ignorância intencional ou os preconceitos malignos, deve ficar claro no período que se segue que a ordem mundial existente – orientada acima de tudo para a perpetuação da riqueza, do poder e do privilégio da classe capitalista – está se tornando cada vez mais irracional, insustentável e moralmente repugnante.

A humanidade não pode mais tolerar um sistema socioeconômico que subordina os interesses humanos mais fundamentais aos interesses efêmeros de uma minúscula classe dominante capitalista que se arroga o direito de possuir e controlar os principais ativos produtivos do mundo e de tomar todas as decisões importantes que afetam vidas de oito bilhões de pessoas – quase sempre para pior.

O livro Twilight Capitalism chama a atenção para a necessidade urgente de transcender – e não simplesmente reformar – este sistema obsoleto. Para a humanidade sobreviver e seguir em frente, a propriedade privada da classe capitalista dos meios de produção, distribuição e troca deve ser expropriado e colocado sob a propriedade e controle coletivo dos trabalhadores em uma sociedade socialista racionalmente planejada e administrada democraticamente. A meta é formar uma comunidade global comprometida fundamentalmente com a saúde, com o bem-estar e o desenvolvimento livre de cada indivíduo humano.

 

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